#MaréBunkerDePotência e Não de Bandidos é #OQueDizemAsRedes

Moradores Tomam as Redes e Mostram Maré como Bunker de Potência

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Esta é a nossa mais recente matéria da série #OQueDizemAsRedes que traz pontos de vista publicados nas redes sociais, de moradores e ativistas de favela, sobre eventos e temas que surgem na sociedade. 

Maré Vive postA reportagem exibida às 18h45 do dia 26 de agosto pelo telejornal RJ2, da TV Globo, e reproduzida pelo G1, com o título original “Bunker de bandidos: Complexo da Maré tem 244 foragidos da justiça”, no portal e redes sociais do veículo, recebeu duras críticas ao classificar o Complexo da Maré, que possui 140.000 moradores, como um “bunker” de criminosos. Mareenses, jornalistas de mídias comunitárias e comerciais, políticos e artistas protestaram nas redes sociais. A hashtag #MaréBunkerDePotências foi uma das mais usadas no Twitter no dia seguinte, 27 de agosto.

A matéria produzida e apurada por Erick Rianelli, Felipe Freire, Guilherme Santos e Leslie Leitão para o telejornal a partir de inquéritos policiais afirma que: “quadrilhas especializadas em diversos crimes, espalhando terror no Rio, em cidades da Região Metropolitana e de fora do estado, mas com uma coisa em comum: elas têm a mesma base, a Maré”. De acordo com a reportagem são 244 foragidos vivendo na região.

G1 Altera Manchete, Mas Não Contém a Onda Maré de Potências

A repercussão e audiência das críticas foi tão grande que o G1, no mesmo dia, às 20h02, alterou a chamada da matéria para: “Complexo da Maré concentra mais de 240 foragidos da justiça; moradores vivem acuados”. Porém, no link da reportagem, ainda se pode ter acesso ao título original da reportagem que qualifica a Maré como um “bunker de bandidos”.

O portal G1 também apagou o post da reportagem com a primeira “manchete” na rede social do Twitter.

Mas diversos posts com críticas, feitos com o compartilhamento do post original publicado pelo G1 no Twitter, deixaram um rastro da tentativa de gerenciar a crise: “Esse Tweet não está disponível”, conforme podemos perceber no post feito pelo fundador do jornal Voz Das Comunidades, Rene Silva.

Entretanto, na era digital do jornalismo, conforme relatório sobre notícias digitais do Instituto para Estudos de Jornalismo Reuters da Universidade de Oxford, o acesso de notícias é feito majoritariamente a partir de celulares. Segundo dados levantados pelo Google em 2019, 70% dos brasileiros usam smartphones para ler notícias. Com isso, é simples “printar”, ou capturar a imagem do que se parece na tela, e repassar essas imagens, o que foi feito em massa, apesar do G1 ter apagado a publicação. Imagens da matéria original passaram a circular na internet e ser a principal imagem das vozes das favelas nas redes se opondo ao discurso criminalizante da reportagem.

A partir da hashtag #MaréBunkerDePotências o Instituto Marielle Franco, além de outros comunicadores comunitários, jornalistas, movimentos sociais, intelectuais negros, artistas, políticos e mareenses, passaram a contar a história da potência da Maré, provocando o debate e a disputa de narrativas nas redes sociais.

Em matéria publicada no jornal Brasil de Fato, a jornalista e comunicadora popular, Gizele Martins, mestre em Comunicação, Educação e Cultura em Periferias Urbanas (FEBF-UERJ), integrante do Movimento de Favelas do Rio de Janeiro, moradora da Maré, afirma: “Somos ‘bunker’ de solidariedade, lazer, cultura, trabalho, estudos, vida comunitária e comunicação comunitária”, e completa que a Maré “saiu na última quarta-feira em diversos veículos da mídia, mas infelizmente não foi noticiando as ações de solidariedade neste momento de pandemia. Uma delas é o trabalho da Frente de Mobilização da Maré que atende hoje mais de 3.000 famílias por mês com doações de alimentos, além de toda a favela com produção de comunicação sobre a Covid-19. Também não foi falado na mídia sobre o histórico e importante espaço de memória comunitária e favelada, assim como é o Museu da Maré, o primeiro museu construído dentro de uma favela no mundo”.

Mídias Comunitárias

A Maré, localizada na Zona Norte, é formada por 16 favelas e é o maior conjunto de favelas da cidade. Foi oficialmente reconhecida como bairro do Rio de Janeiro em 1994. Quem nasce na Maré é mareense, termo cunhado pelo jornal O Cidadão, mídia comunitária local com mais de 20 anos de existência. O arquipélago de nove ilhas na Baía de Guanabara, onde pescadores moraram por mais de 8.000 anos, começou a formar as favelas da Maré a partir de 1940, com a expansão da cidade e a construção do campus universitário da UFRJ, na ilha do Fundão.

O conjunto de favelas da Maré é conhecido internacionalmente. É a origem e casa de iniciativas artísticas, audiovisuais, companhias de teatro, empreendedores, intelectuais, fotógrafos, cineastas e movimentos de ativistas de direitos humanos. Tem uma forte mídia comunitária, com O Cidadão, Maré de Notícias, Maré Vive a revista internacional Periferias, entre outros veículos locais e incluindo ainda observatórios de análises críticas sociais como o Observatório de Favelas, Instituto João Maria Aleixo e o data_labe (laboratório de produção de dados e narrativas). Lá também está um dos mais importantes e originários cursos de pré-vestibular comunitário, do CEASM, ONG que acaba de fazer 23 anos onde estudaram intelectuais como Marielle Franco, Renata Souza, Gizele Martins—e tantos outros mareenses que puderam acessar o ensino superior a partir do curso—além de diversos outros trabalhadores com diferentes profissões sem ou com passagem em bancos escolares.

A produção comunitária da Maré é referência para outras favelas, jornalistas e comunicadores comunitários dentro do Rio de Janeiro e para o país, dentre eles, o jornal Fala Roça, da Rocinha, que também publicou crítica ao estigma sobre as favelas e seus moradores construído ao longo de anos pelo jornalismo de mídias comerciais.

Pela hashtag #MaréBunkerDePotências nas redes sociais também se destacou como a criminalização das favelas pelo jornalismo tradicional é feito pelo discurso da violência, e como essa produção de narrativas prejudica a vida no dia a dia para as comunidades, e pode até atrapalhar o jornalismo comunitário.

Ainda que o portal G1 tenha alterado a chamada da matéria, a produção, edição e conteúdo da reportagem segue sendo veiculado. Neste contexto, outras vozes nas redes lembraram que a condução da reportagem—o tratamento dado a informação e cobertura—não se trata de um erro, mas de uma prática preconceituosa comum da mídia ao reportar notícias de violência. O que revela a comunicação comunitária como local de representação de vozes das favelas, periferias e trabalhadores em geral.

Frente de Mobilização da Maré

Em meio a pandemia da Covid-19, sem apoio e negligenciados pelo Estado, foram moradores da Maré que se organizaram para minimizar os efeitos da crise gerada pela pandemia, atendendo mais de 3.000 famílias por mês com doações de alimentos. A Frente de Mobilização da Maré teve início em 19 de março e reúne 14 organizações: Maré 0800, Maré Vive, Casulo, Roça Rio, CEASM, Museu da Maré, ONG Pra Elas, RatoPretoStudio (@coronafavelado), Agência LABirinto, Ativa Breakers Crew, Podcast Renegadus, CEC Orosina Vieira, Yoga na Maré, Roda Cultural do Parque União, somando mais de 100 moradores aproximadamente.

A Maré tem uma população maior do que 93% dos municípios brasileiros, com um dos maiores números de coletivos e de redes. A Maré é grande. Existem muitas Marés dentro da Maré. Na ausência de dados públicos oficiais confiáveis sobre a pandemia da Covid-19, inclusive, o trabalho destas redes locais se destaca pelo protagonismo na coleta de dados, conforme pode ser conferido no Painel Unificador nas Favelas. Segundo último release do Painel: “até hoje, as favelas com contagem mais precisa são as que fazem parte das 16 favelas do Conjunto de Favelas da Maré e cinco comunidades de Itaguaí.” A contagem na Maré, realizada pela Redes da Maré, é mais um exemplo de como a ação comunitária está salvando vidas e produzindo soluções, na ausência do Estado no que se trata de prevenção, mitigação e investimento público.

Durante todo o dia 26 de agosto, telejornais e sites jornalísticos, em diversas matérias, questionaram o porquê da polícia não estar entrando nas favelas para conter crimes. Há dois meses, o Supremo Tribunal Federal aprovou a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), que restringe operações policiais nas favelas devido a pandemia. Com a medida, houve 76% de queda no número de mortos e feridos no Rio de Janeiro nos dois últimos meses.

O acompanhamento das redes sociais traz à tona como a reportagem fez um recorte jornalístico em que um único “lado” da Maré é mostrado, generalizando todo o território das 16 favelas como o local e abrigo do crime para ações criminosas, reduzindo a agência e potência de uma população de mais de 140.000 moradores a um grupo de “244 foragidos”. A matéria chega a dizer que “a Polícia Civil diz que eles são uma pequena parte de milhares de bandidos que controlam as 16 favelas da Maré”, enquanto não chega a dizer que são uma minúscula parte (.01%) da população da Maré, uma população, como se vê pelos relatos acima, realizadora e potente para nossa cidade.

Diminui dezenas de milhares de vozes da Maré a voz da polícia e do crime: “São, segundo a polícia, grupos especializados em roubos de carros na Zona Sul, sequestros relâmpagos na Zona Norte, responsáveis por ataques a depósitos na Baixada Fluminense e assaltos a bancos em São Gonçalo, na Região Metropolitana. As ações ocorrem até fora do estado, em Minas Gerais”, RJ2 e G1.

Apesar da reportagem narrar a organização de uma rede de grupos criminosos que, de acordo com a reportagem e a Polícia Civil, abriga-se na Maré, a matéria não menciona ou questiona como essa rede tem acesso a quantidade de armas, um “arsenal de guerra” ou como esse arsenal chega até as favelas.

Gizele Martins afirma: “As mídias comerciais, historicamente, neste país intitulam sem pudor os moradores de favelas, os seus territórios, os seus costumes, a sua cultura, as suas músicas, as suas falas, a cor de suas peles sempre com o intuito de criminalizar, marginalizar, violentar e inferiorizar todos os que moram nestes locais empobrecidos e habitados por uma maioria de população negra”.

O uso da palavra “bunker” em matérias jornalísticas sobre violência relacionada às favelas é comum, conforme pode se conferir em pesquisa no Google. Ao se pesquisar “bunker do tráfico” surge diversas notícias, vídeos e imagens como a capa do Jornal O Globo de 25 de novembro de 2010, na ocasião da ocupação do Complexo da Penha. De acordo com o dicionário Houaiss, “bunker” é uma palavra de substantivo masculino que significa “estrutura ou reduto fortificado, parcial ou totalmente subterrâneo, construído para resistir aos projéteis de guerra”, com sentido “abrigo muito protegido”.

Tony Marlon, colunista do portal Uol, em coluna publicada em 28 de agosto, afirma: “Quando você diz que o lar de muitos é um ‘bunker de bandidos’ cria-se uma ideia de que é preciso acabar com aquele lugar, e tudo que couber nele, pois só assim a sociedade estará a salva. Você vai restaurar a vida de um filho ou filha quando uma mãe estiver chorando por sua partida por ser, simplesmente, alguém que mora onde mora?”

Frente Maré. Foto por Patrick Mendes


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