Uma Abordagem Piramidal para a Urbanização das Favelas: Regularização e Participação (Parte 2)

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Esta é a segunda matéria de uma série de seis sobre a aplicação da Pirâmide de Meléndez à urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro. Este conceito foi concebido pela autora desta série como uma metodologia para alcançar resultados mais coerentes e sustentáveis na urbanização de favelas. Inspirada na Hierarquia de Necessidades de Maslow, a pirâmide de Meléndez é composta por dez blocos, cada um representando um conjunto de elementos indispensáveis. Principalmente com base na multidimensionalidade, interdependência e simultaneidade, a pirâmide aborda os aspectos físicos, políticos, econômicos, sociais, culturais e psicoemocionais das favelas. Leia a série inteira aqui.

Esta segunda matéria aborda a importância da regularização, prestação de serviços básicos e participação comunitária na urbanização das favelas. Neste período pré-eleitoral das eleições municipais—que coincide com o agravamento das consequências da negligência do Estado, nas favelas, devido à pandemia da Covid-19—o RioOnWatch considera oportuno publicar essa série como estímulo para reflexão sobre políticas públicas para o desenvolvimento pleno das favelas do Rio.


Na base da Pirâmide de Meléndez para a Urbanização de Favelas estão as necessidades básicas essenciais para o desenvolvimento das favelas do Rio. Ela começa com a regularização e a garantia das necessidades básicas. Juntos, como elementos complementares, a regularização fundiária fornece acesso aos serviços e privilégios da cidade, colocando os moradores da favela em condições de igualdade em relação aos demais cidadãos.

Regularização e Necessidades Básicas

A maioria dos moradores das favelas vive sem garantia de posse, enfrentando assim uma ameaça de remoção persistente, mesmo ao longo de gerações. Portanto, para que a urbanização de favelas seja sustentável, a regularização é essencial. No entanto, a regularização da posse pode levar à especulação imobiliária, gentrificação e deslocamento pelo mercado—apresentando um dilema entre satisfazer a necessidade de formalização dos direitos fundiários e a necessidade de prevenir o deslocamento.

Instrumentos legais como a titulação individual por usucapião têm se mostrado inadequados para a regularização nas favelas do Rio quando a meta dos moradores é a permanência em suas casas e comunidades, por fomentar novos riscos de especulação imobiliária e gentrificação. E a concessão de uso em favelas localizadas em terras públicas se mostrou instável, com o famoso exemplo da Vila Autódromo que foi removida apesar da concessão de 99 anos. Outra opção promissora é a regularização por usucapião coletivo, embora até hoje haja poucos casos nos quais podemos nos basear para uma conclusão.

É importante ressaltar que o Brasil possui uma designação legal especial chamada Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS). Este instrumento permite que favelas demarcadas como ZEIS sejam regulamentadas de acordo com um conjunto mais flexível de regras de zoneamento, e garante que sejam reconhecidas e preservadas como zonas de moradia popular. Essa ferramenta, portanto, geralmente permite regulamentações de planejamento inovadoras que favorecem a urbanização e permanência das favelas.

Com base nas lições produzidas por meio dessas várias abordagens existentes, há agora um movimento no Brasil para permitir o estabelecimento de Termos Territoriais Coletivos (TTC) nas favelas, como foi feito com grande proveito em San Juan, Porto Rico. Se introduzidos, os TTCs trarão uma abordagem personalizada para a titulação e o desenvolvimento comunitário nas favelas beneficiadas, ao mesmo tempo que proporcionarão maior equidade e estabilidade em termos gerais ao estoque de moradias do Rio. O TTC é uma forma de propriedade coletiva da terra que visa garantir direitos e segurança de posse para famílias de baixa e média renda. O primeiro pré-requisito para o estabelecimento de uma TTC em favela é a regularização fundiária. O TTC, administrado pela comunidade, passa a ser a pessoa jurídica que possui e administra as terras, incluindo, se assim o desejar, a fixação de tetos para o valor das construções. A regularização fundiária inclui tanto a propriedade coletiva da terra quanto os direitos individuais de superfície e, por consequência, das construções. Essa modalidade permite um equilíbrio saudável entre a propriedade privada e a garantia dos direitos à terra. Dentro de uma estrutura TTC, os terrenos podem ser adquiridos por meio de compra, venda ou doação.

Garantindo moradias populares para perpetuidade, o TTC possibilita que os moradores permaneçam em suas comunidades com pouco risco de especulação imobiliária, gentrificação ou execução hipotecária. Diferentemente da titulação individual, as terras pertencentes ao TTC são permanentemente retiradas do mercado. A lógica por trás do modelo TTC é que as favelas não operam segundo uma lógica estritamente mercadológica, pois produzem muitos ativos não monetizáveis, como ajuda mútua, produção cultural, sentimento de pertencimento e outros, que não são reconhecidos pelo mercado, mas são valiosos para os moradores, e é por isso que tantos moradores de favelas optam por permanecer em seus bairros, mesmo que tenham condições para sair.

No contexto do Rio, o TTC se apresenta como uma perspectiva promissora, mas com algumas limitações. Um modelo de projeto habitacional público auto-construído, o Conjunto Esperança na Colônia Juliano Moreira, Jacarepaguá, está agora explorando o estabelecimento de seus direitos à terra por meio de um TTC que será adaptado às suas necessidades específicas. Enquanto isso, a favela dos Trapicheiros vem dando passos para se tornar o primeiro piloto de TTC no país.

A titulação coletiva não é novidade no Brasil, onde as comunidades indígenas e quilombolas, têm seus direitos coletivos à terra reconhecidos. O artigo 68 da Constituição concede aos indivíduos de origem quilombola o direito de receber o título dessas terras. Quando aplicados ao contexto urbano, os quilombos, juntamente com TTCs, oferecem inspiração para o reconhecimento respeitoso dos valores coletivos desenvolvidos nas favelas do Rio.

Participação Comunitária e Organização

Continuando com nossa abordagem, a base central de nossa pirâmide destaca o imperativo da participação e organização da comunidade. Para que a urbanização da favela produza resultados eficazes e sustentáveis, os moradores devem possuir e “inventar seus próprios espaços” em todos os estágios do ciclo de urbanização: do projeto à avaliação. Idealmente, uma abordagem de subsidiariedade seria adotada, com moradores, colaboradores externos, voluntários, profissionais multidisciplinares, pesquisadores e—necessariamente—doadores co-projetando em pé de igualdade, de acordo com suas necessidades, interesses e habilidades. Isso contrasta com o que aconteceu durante os meses de alta atividade do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no Alemão, por exemplo, quando moradores foram “consultados”, porém suas necessidades não foram traduzidas em política pública, resultando no teleférico ao invés de saneamento. Na urbanização de favelas não existem atalhos para resultados de qualidade, e a urbanização só pode ter sucesso quando uma sinergia entre as pessoas, suas necessidades e seus lugares habitados são priorizados, ouvidos e realizados.

A participação e organização da comunidade facilita a identificação de prioridades e necessidades e otimiza o uso de recursos. Além disso, reduz custos devido à própria dedicação dos moradores, o que pode ajudar a revitalizar as economias locais.

A pirâmide de Meléndez de urbanização de favelas. Arte por Natália Melendez Fuentes

Em geral, as favelas representam um grande desafio para planejadores e tomadores de decisão devido às suas formas complexas e únicas, implicações sociais e importância comprovada na economia e na evolução das cidades. Qual a melhor maneira de reduzir esse desafio do que reconhecer e premiar a agência daqueles que melhor conhecem as favelasseus moradores? O controle dos moradores sobre o seu desenvolvimento, além da consulta, é fundamental na urbanização de favelas. Um dos poucos exemplos do Rio, de controle do cidadão sobre o processo de planejamento, são os projetos de autoconstrução de moradias públicas do Programa Minha Casa Minha Vida-Entidades (MCMV-EN), dos quais o Conjunto Esperança é um exemplo.

Por sua vez, as pessoas de fora das favelas devem transcender a noção de que sabem o que é melhor para as comunidades. Um programa que não permite um controle comunitário sólido e significativo enfraquece os moradores como “subcidadãos”. Uma abordagem paternalista para a urbanização não é construtiva nem sustentável. Além disso, medidas inclusivas aumentam o orgulho da comunidade, o senso de pertencimento e a cidadania.

O controle e o engajamento da comunidade podem ser complementados por meio de um modelo de ajuda mútua, no qual a entidade financiadora atua principalmente como provedora e aliada técnica, enquanto grande parte do trabalho é realizado ou coordenado pela comunidade. Já inerente à tradição brasileira de mutirão, o modelo de ajuda mútua supera o paternalismo e garante o controle da comunidade sobre os resultados, empoderando os moradores em seu relacionamento com a cidade maior. Além disso, quando os moradores decidem e implementam medidas, as necessidades são avaliadas com mais precisão e, portanto, os resultados tendem a ser mais relevantes e econômicos. Com controle comunitário, o vazamento de recursos públicos devido à corrupção também será reduzido.

No Rio, o modelo de ajuda mútua já se aplica à maioria das favelas e, em alguns casos, à infraestrutura pública (por exemplo, o sistema de esgoto da Asa Branca e o sistema de abastecimento de água do Morro da Formiga). As favelas no Rio tradicionalmente respondem ao fracasso das autoridades em atender às necessidades de interesse público. Muitas vezes, moradores fornecem o que deveriam ser serviços públicos, como transporte, creches ou até centros médicos. O Plano Popular da Vila Autódromo é um exemplo de autoplanejamento na ausência do Estado, que questiona a eficiência e validade das abordagens de cima para baixo para o desenvolvimento local.

Um valor agregado da participação comunitária é a maneira como ela se relaciona com o respeito pela cultura e tradições locais. Abordagens localizadas permitem que os moradores de cada favela aprimorem sua identidade específicao que, por sua vez, contribui para a sustentabilidade, coesão e autoestima local.

Esse é a segunda matéria de uma série composta por seis partes. Leia a série inteira aqui.

Natalia Meléndez Fuentes é mestranda em Construção e Design Urbano em Desenvolvimento na Unidade de Planejamento de Desenvolvimento Bartlett na University College de Londres. Sua pesquisa analisa os elementos psicoemocionais das favelas e da urbanização de favelas, principalmente na América Latina, e como trazê-los à tona.


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