O Termo Territorial Coletivo e a Luta pelo Direito à Cidade: Diálogo Sobre Rio e Moçambique [VÍDEO]

Click Here for English

Como parte das atividades do Circuito Urbano 2020 da ONU-Habitat, o GT do Termo Territorial Coletivo (TTC), facilitado pela Comunidades Catalisadoras (ComCat)*, realizou no dia 20 de outubro, a LIVE interativa “O Termo Territorial Coletivo como Instrumento de Transformação da Realidade Urbana: Um Debate a Partir das Experiências do Rio de Janeiro e Moçambique”. O evento contou com a presença, como palestrantes, de duas pesquisadoras e quatro lideranças comunitárias do Rio de Janeiro, todos envolvidos com a luta pelo direito à cidade. Eles apresentaram um pouco de suas experiências no tema, e de que forma o TTC pode contribuir com essa luta.

O evento foi mediado por Felipe Litsek, pesquisador, advogado e membro do GT do TTC, e contou com a presença de Ailton Lopes, segundo secretário da Associação de Moradores da comunidade Trapicheiros na Tijuca; Eleonora Dobles, Assistente de Programas da ONU-Habitat e formada em Governança nas Grandes Metrópoles, com o seu Trabalho de Conclusão de Curso, realizado em Moçambique, sobre o funcionamento do mercado informal da terra em Maputo; Marcello Deodoro, membro da Comissão de Moradores da Comunidade Indiana, na Tijuca e participante do Conselho Popular; Maria da Penha, moradora da comunidade Vila Autódromo e co-fundadora do Museu das Remoções; Neide Mattos, moradora do Conjunto Esperança na Colônia Juliano Moreira, pelo programa Minha Casa Minha Vida—Entidades; e Tarcyla Fidalgo, coordenadora do Projeto TTC, pela ComCat, e doutoranda em Política e Planejamento Urbano pelo IPPURUFRJ

Nas palavras de Ailton, o evento “trouxe compreensão para quem não conhecia o TTC e ampliou os conhecimentos de quem já o conhecia”. O evento demonstrou que mesmo em contextos distintos, como o brasileiro e o moçambicano, existem as mesmas ameaças de remoção e gentrificação, apesar da terra no caso de Moçambique ser toda do Estado. No caso do Brasil, onde existe um processo em andamento para introdução do instrumento TTC, as lideranças comunitárias, todas engajadas no GT do TTC, deram emocionantes depoimentos enfatizando o que buscam do instrumento: proteção legal para conseguirem permanecer em seus territórios seja contra remoção do Estado ou especulação imobiliária do mercado, e ferramentas para fortalecer e manter a mobilização comunitária.

Em sua apresentação sobre o que é de fato e como funciona o Termo Territorial Coletivo, Tarcyla expôs que, antes de mais nada, o TTC é um instrumento para a garantia de segurança da posse para populações vulneráveis. E que trata-se de um modelo de gestão coletiva do território, caracterizado pela separação entre a propriedade da terra (coletiva) e a propriedade das casas e construções (individual). Unindo ações jurídicas, sociais e de planejamento urbano, o TTC tem por objetivo a garantia de permanência dos moradores em seus locais de moradia e a oferta de habitação acessível economicamente por famílias de baixa renda, de forma perpétua.

A terra é de propriedade do TTC, ou seja, de uma organização local sem fins lucrativos formada pelos moradores e gerida de forma coletiva. A casa, as benfeitorias, assim como os quintais, pertencem aos moradores individualmente, por meio de título de direito de superfície formalizado em cartório. Desta forma, ao tornarem-se legalmente superficiários de suas casas, os moradores têm o direito de utilizá-las como bem entenderem, podendo vender, alugar ou doar para familiares. A terra, no entanto, é permanentemente retirada do mercado, o que ajuda a manter o custo da moradia acessível. 

O ciclo dos megaeventos no Rio de Janeiro trouxe a maior onda de remoções da história da cidade, e segundo Tarcyla, ficou demonstrado que as opções de titulação que temos atualmente não são garantia de permanência no território. Comunidades inteiras, com ou sem títulos, sofreram com as remoções, tanto as provocadas pelo Estado e seu aparato repressivo, quanto as mercadológicasquando, por conta da gentrificação e especulação imobiliária, os padrões de vida da região aumentam ou pressão é feita para se vender suas casas à empreendedores impelindo os moradores a se mudarem. Foi a partir dessas questões e inspirados pela história de sucesso do Fideicomiso de la Tierra del Caño Martín Peña em San Juan, Porto Ricoúnico TTC na América Latina e um dos poucos implementados em favelas no mundoque foi fomentado pela ComCat o Projeto TTC, com o objetivo de trazer o instrumento para a realidade das favelas e comunidades cariocas, apresentando seu potencial e pensando de que forma pode-se implementá-lo aqui na cidade. 

Apesar das diferenças, Eleonora salientou que são impressionantes as similaridades entre Moçambique e Brasil. Além da colonização portuguesa e certas heranças culturais conjuntas, a precariedade urbana é um traço em comum em ambos os países: “A maior parte de Maputo, capital de Moçambique, são territórios informais conhecidos como caniços, a maior parte deles localizados na periferia da cidade, e muito parecidos com as favelas brasileiras”.

A partir de sua independência em 1975, o novo governo moçambicano tomou como sua principal medida a nacionalização das terras do país: a terra vira propriedade do Estado e fica proibida sua venda. Não há posse, há direito de ocupação, o Duat (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra). “A Lei das Terras Moçambicanas de 79 é considerada uma das mais progressistas do mundo na questão fundiária. A partir da finalidade social da terra, comunidades, além de somente indivíduos, podem ter legalmente garantidos o direito coletivo ao uso e aproveitamento da terra a partir do Duat”, disse Eleonora.

Novas legislações recentes porém, modificaram em parte tal lei, permitindo a troca e venda de Duats, e hoje em dia já não é possível evitar um conhecido problema de metrópoles ao redor do mundo: a gentrificação. “Polana Caniço é o mais gritante exemplo” diz Eleonora. Bairro litorâneo e central de Maputo, era tradicionalmente habitado por populações de baixa renda, só que de alguns anos para cá, em nome de uma suposta revitalização urbana e por perigos de inundações, moradores estão sendo removidos para áreas periféricas da cidade, liberando terrenos em uma área valorizada da cidade para especulação imobiliária. Cenário muito conhecido pelos cidadãos cariocas. Segundo Eleonora, o TTC tem tudo para ser um instrumento essencial para combater tal dinâmica de pressão especulativa ocorrendo em Maputo.

Todas as lideranças comunitárias presentes na live já sofreram experiências com ameaças de remoção, e a partir das similaridades com a situação moçambicana, enfatizaram o desejo de permanecer em seus territórios e a esperança de encontrar no TTC uma proteção legal para esse fim. Ailton, morador da comunidade dos Trapicheiros, uma das duas primeiras comunidades piloto do Projeto TTC, contou que “Aqui [no Trapicheiros] há muito valor de pertencimento. Muitos moradores aqui nasceram e aqui querem viver, é onde seus avós nasceram também e vivem até hoje. Eu fiquei muito encantado com o TTC, é uma ferramenta diferenciada, uma forma de proteção: não seremos mais uma comunidade frágil, seremos blindados contra as ameaças da gentrificação, da especulação imobiliária e das remoções e fortaleceremos nosso senso de comunidade”.

Neide, moradora do Conjunto Esperança, a outra comunidade piloto do Projeto TTC, afirma que se preocupa muito com o dia de amanhã: “Não temos ainda a titularidade da terra. Tenho muito medo que 20 anos de história se percam por conta da especulação imobiliária. O TTC veio como uma tábua de salvação, ele nos trará uma titulação coletiva e uma base sólida para termos a garantia de se manter na terra e eu poder passar minha casa, meu troféu, para meu filho”.

Quando perguntados sobre qual é a importância das comunidades se manterem organizadas, e como tornar a favela de fato parte da cidade, as lideranças das favelas presentes, foram unânimes ao afirmarem que é a partir do poder da mobilização comunitária, do fortalecimento do orgulho e da identidade social do favelado que o estigma sobre a favela pode ser superado. 

Marcello, ativista popular da comunidade Indiana, afirma que o principal problema das favelas é a sua invisibilidade social: “É necessário mostrar pra quem não mora na favela que nós existimos e temos potência, temos voz. É preciso cultivar a identidade das favelas, para não termos vergonha de ser quem somos”, disse ele. “E também manter a comunidade ativa na sociedade, participando de conselhos, fóruns, audiências públicas, promovendo economias solidárias e sustentáveis. Tudo isso divulga nossa comunidade, pessoas de fora vem nos conhecer e agregam valor a nossa luta. Temos que tirar esse estigma que a favela é um antro perdido”.

Dona Maria da Penha, notória liderança comunitária da Vila Autódromo, também afirma que tem muito orgulho de ser favelada: “Podemos ser pobres de dinheiro, mas somos ricos em experiências, em solidariedade, em amor no coração. Não temos medo da vida. Enfrentamos a vida com dignidade. Todo favelado tem que ter orgulho do seu lugar”. Ela conta também da importância da auto-organização popular e da troca de experiências ao visitar outras comunidades: “O morador das favelas precisa ter esse conhecimento de seus direitos. Em nossa luta por exemplo, criamos o Museu das Remoções junto com dois professores e os moradores. Nosso museu tem duas propostas: guardar a memória dos moradores que se foram, e ser uma ferramenta contra as remoções”.

Neide completou dizendo que nada se consegue sozinho, é precisa se unir e se organizar: “A capacidade da comunidade em se organizar é sua força no futuro. Uma andorinha só não faz verão, o povo unido consegue fazer a diferença”.

Assista à Live Aqui:

*Tanto o RioOnWatch quanto a Rede Favela Sustentável são iniciativas da Comunidades Catalisadoras


Apoie nossos esforços para fornecer assistência estratégica às favelas do Rio durante a pandemia de Covid-19, incluindo o jornalismo hiperlocal, crítico, inovador e incansável do RioOnWatch — doe aqui.