Esta matéria faz parte de uma série de matérias sobre as eleições municipais de 2020, com enfoque nas perspectivas das favelas do Grande Rio.
Nas últimas eleições, no dia anterior à votação, entreguei aos meus pais um pedaço de papel com os números dos candidatos que deveriam votar. A cola havia sido um pedido deles próprios. Minha mãe ainda repassou a dela a minha irmã, nove anos mais velha do que eu. Da família, eu sou a única a acessar o ensino superior. O fato de eu ter mais anos de estudo, na visão deles, me capacita para entender as coisas que eles dizem não entender. Entre essas coisas, está a política.
Se por um lado, a falta de explicação aos acontecimentos e o uso de palavras difíceis dificultam o entendimento, por outro a falta de interesse é alimentada pela frustração acumulada eleição após eleição. Aos 62 anos, minha mãe está descrente do processo eleitoral e decidiu não votar esse ano. Prefere justificar o voto.
A rejeição às eleições não se traduz, no entanto, em afastamento da política. “Você viu?” Ela inicia a conversa desse jeito. Muito ativa nas redes sociais, minha mãe acompanha os acontecimentos da política nacional e sempre puxa assunto comigo sobre o tema. Ela quer saber a minha opinião e, mais do que isso, parece querer saber qual a avaliação que eu faço da opinião dela. Se concordamos, ela fala mais. Se discordamos ela para, pergunta e escuta. Um processo natural e sutil no nosso dia a dia.
“Eu acredito que as informações hoje chegam mais facilmente, então quando eles me perguntam algo eu não sei bem se é para eles entenderem, mas eu vejo que a minha opinião é importante. Sempre me perguntam para saber a minha opinião sobre o assunto”, avalia Raphael Fernandes, de 26 anos. Ele vive com a mãe, o padrasto e dois irmãos na Vila Cruzeiro, no bairro da Penha, Zona Norte.
Para Raphael, o interesse pela política nasceu por causa dos avós, que o criaram em um ambiente onde política era sim assunto a ser discutido, pensado e aprendido. Aos 16 anos ele já tinha título e votou pela primeira vez, um pleito que terminou com a vitória de Dilma Rousseff para presidência. Na primeira eleição na qual participava, viu seu candidato ser eleito. Se no começo as tendências políticas do avô, um petista declarado, podem ter o influenciado, anos depois esse espaço de influência passou a ser ocupado por ele.
“Na eleição em que a Dilma tentava o segundo mandato ele não sabia bem em quem votar, ele estava um pouco desanimado e não sabia se queria de novo o PT. Tivemos algumas conversas sobre isso na época”, lembra o Raphael. O avô terminou optando em manter o voto em Dilma naquele ano. “Hoje, eu vejo que minha família sempre pergunta em quem eu vou votar, e por que eu vou votar nessa pessoa… São pessoas que não têm aquele hábito de pesquisar muito o candidato, eles vão muito pelo que ouvem, por aquilo que o candidato fala na televisão, mas não têm o hábito de pesquisar, de buscar saber qual atenderia melhor sua realidade”, explica o estudante de psicologia.
Já na casa de Maiara Santos, de 26 anos, o cenário é um pouco diferente. Não há muito interesse em pesquisar e menos ainda em assistir propaganda política na TV. “Minha mãe diz sempre a mesma frase: estou cansada de ser enganada”, conta. No entanto, nas últimas eleições em 2018, a movimentação em torno das propostas dos candidatos foi atipicamente mais intensa. “Meu pai tinha falecido nesse mesmo ano por causa de negligência médica, ele era atendido pelo sistema público de saúde. Então, quando víamos os absurdos de alguns candidatos, a revolta era ainda maior. Eu percebia minha mãe muito mais integrada nos assuntos que eu levantava”, lembra Maiara.
Ela e a irmã foram as primeiras da família a acessar o ensino superior. Foi na universidade que Maiara começou a se interessar por política, passou a ter contato com realidades e informações que até então conhecia bem pouco. A formação em jornalismo em uma instituição pública na Baixada Fluminense aproximou a jovem da política do dia a dia, para além de candidatos e partidos. “A partir dessa imersão, eu pude ver como não era só falar em política, mas ser um ser político. Isso foi se refletindo diretamente no que eu publicava nas redes sociais, e nas minhas conversas dentro de casa quando falávamos sobre racismo, desigualdade social, machismo”, lembra.
Trazer às discussões e conhecimentos que passou a acessar na universidade para dentro de casa é, na visão de Maiara, uma forma de retribuir os esforços dos pais em sua educação. O pai da jornalista parou de estudar durante o ensino médio e a mãe terminou apenas o ensino fundamental. É com ela que Maiara vive atualmente em Santa Cruz, Zona Oeste. “Normalmente, tudo que ela não entende pergunta para mim ou deixa passar e diz que não tem muita cabeça pra isso”, explica Maiara. “Ela ainda tem bastante dificuldade de entender o que é politicamente mais consciente em relação a termos racistas ou LGBTQfóbicos, por exemplo. É um embate quase que diário para tratar dessas coisas”.
O embate em torno das lutas identitárias é algo cotidiano na vida de Raphael Fernandes, que vive na Vila Cruzeiro. O diálogo com a família paterna é mais difícil, segundo ele, por conta de um posicionamento mais conservador: “Eles entendem tudo que eu falo, mas são pessoas que têm mais dificuldade para lidar com alguns temas”. Enquanto a família materna, especialmente seu núcleo familiar, tem um pensamento político mais próximo ao dele e se mostra mais disposta a ouvir e aprender.
“Eu sou gay. Então, aqui em casa tem esse entendimento do que é o movimento LGBTQ+, da importância de você não esconder do mundo que tem um filho gay, de você saber que tem uma pessoa na sua casa que, entre aspas, vai dar pinta… Isso, na minha casa já é uma coisa bem desconstruída. A minha mãe pode não entender o que é o movimento em si, mas ela se movimenta pela causa”, explica o estudante de psicologia.
Mais Acesso à Educação e Habilidades Digitais
Uma pesquisa, feita às vésperas das últimas eleições, tentou compreender qual papel os jovens desempenham na política, especialmente no que tange a formação de opinião dos seus familiares e da comunidade ao seu entorno. O estudo, do Instituto Data Popular, revelou que os jovens, entre 16 e 33 anos, têm conquistado maior poder nas decisões familiares, inclusive na escolha do voto.
Entre os fatores mencionados para explicar esse fenômeno, destacam-se a maior escolaridade, isto é, os jovens de hoje têm tido mais oportunidades de estudo que seus pais tiveram. Isso favorece o segundo tópico: muitos passam a contribuir de forma significativa ou até se tonam a única fonte de renda da família. E, por fim, a grande intimidade com a internet e suas ferramentas, que oferece mais possibilidades para pesquisar, conhecer outras realidade e, principalmente, fazer-se ouvir.
O fato de terem crescido com a presença constante de celulares e da internet torna esses jovens mais hábeis no uso de ferramentas e, principalmente, mais atentos às mudanças da opinião pública e no comportamento geral da sociedade. Eles passam a estar em uma posição de referência quando essas “atualizações” de pensamento entram em cena. “A gente conversa muito no dia a dia sobre o porquê de algumas falas, algumas situações ou formas de se colocar acabam sendo homofóbicas ou racistas, por exemplo. O porquê de alguns termos ou atitudes serem preconceituosos mesmo que eles não percebam ou tenham intenção de ser”, explica Raphael Fernandes.
O levantamento realizado também descobriu que os jovens estão bastante pessimistas em relação à política partidária. Seis em cada dez pessoas, entre 16 e 33 anos, acreditam que o país estaria melhor se não houvesse partido. No entanto, 80% dos ouvidos no estudo reconhecem a importância da política no seu dia a dia e para 70% o voto pode fazer a diferença no país. Isso indica, que apesar da descrença nos atores e instituições políticas atuais, há certa esperança no processo democrático.
Interessados no tema, os jovens costumam pesquisar previamente os candidatos, suas propostas e as funções a serem exercidas. Falam sobre isso abertamente com familiares, amigos e vizinhos e podem ser vistos como referências na hora da decisão. “Sempre deixo muito claro quais são [meus candidatos] e minha mãe segue o meu fluxo. Na hora de fazer a colinha, ela sempre me pergunta os números, porque não grava mesmo ou não sabe em quem votar e vai pela minha cabeça. Tenho certeza que ela vai chegar na véspera das próximas eleições e me perguntar o número de quem eu vou votar para vereador”, observa Maiara Santos.
Jaqueline Suarez é jornalista e estudante de mestrado na UFF. É também comunicadora popular e vídeo-documentarista