Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria do RioOnWatch com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.
Tendo como um dos seus propósitos “entender que podemos e devemos utilizar a tecnologia em prol do desenvolvimento e crescimento socioeconômico das favelas” nos dias 4, 6 e 8 de novembro foi realizada, pelo projeto Tela Preta Tech, a 1ª Jornada da Educação Favelada, de forma online. Focando no contexto particular da educação nas favelas, o evento reuniu educadores das comunidades e jovens moradores.
O Tela Preta Tech, que organizou a Jornada, é formado por uma equipe de quatro mulheres: Livia Almeida, graduanda em engenheira civil na UFRJ; Natacha Carvalho, graduanda em letras na UFRJ; Paloma Porfirio, graduanda em ciências sociais na UFRJ e Renata Siqueira, cientista social e doutoranda em engenharia de produção pela COPPE/UFRJ. O Tela Preta Tech surgiu ao longo deste ano sob a necessidade de uma linha de trabalho que unisse tecnologia e educação nas áreas periféricas, através da inclusão digital e do empoderamento ativo principalmente das mulheres negras. O programa Ubuntu_Labe—“de inovação aberta em cidades inteligentes para a redução da desigualdade racial no Rio de Janeiro”—serviu como um ponto de encontro para as fundadoras.
A 1ª Jornada da Educação Favelada foi o primeiro projeto do Tela Preta Tech: “Observando as transformações impostas pela pandemia, percebemos a necessidade de pautar a educação e tecnologia a partir de outro olhar ainda não abordado. Assim nasce a 1ª jornada de educação favelada”.
Entrevistada para essa reportagem, Renata afirmou que “a educação é o motor da transformação. Ela desenvolve a consciência crítica para que as pessoas se entendam como indivíduos capazes de mudar sua realidade e a realidade dos outros”. Já Paloma afirma que “a concepção de favela vem de um processo de negligência. A educação amplia nossa visão e altera essa percepção negativa criada do território”. Natacha—frente ao fato de que acesso à educação nas periferias, que já era limitado, ficou ainda mais comprometido pela chegada da pandemia e da dependência tecnológica—refletiu que “há discussões em curso sobre educação híbrida e de como a educação está migrando cada vez mais para meios tecnológicos. Mas isto não faz o menor sentido para as favelas, não há recursos”.
No primeiro dia da Jornada o tema foi “Educação Favelada”, tendo como palestrantes o educador popular e coordenador do Unifavela, Laerte Bruno e Renata Siqueira do Tela Preta Tech.
“Quem está pensando em educação?” perguntou Renata Siqueira dando início à Jornada. “A educação não é para o estudante preto, favelado e marginal. Isto é um problema quando a maioria da população não pertence às classes A e B”. Nesta linha, Laerte destacou a importância de uma aplicação contextualizada da educação para conseguir potencializar a capacidade de seus alunos. “Não se trata apenas de dar um conteúdo. Para uma progressão efetiva você tem que se adaptar à metodologia do território, pois muitos adolescentes têm que combinar trabalho e estudos.”
Segundo Laerte a falta de referências impede os mais jovens de se sentirem capacitados para concretizar seus sonhos. Neste contexto, um trabalho de estimulação correto na educação é essencial para uma orientação eficiente. A escolha das narrativas do mundo palpável dos estudantes permite que eles se sintam identificados com seu ambiente. Laerte aponta a importância de perceber as favelas como potência: “Para mim, a favela é música, luz e ancestralidade”.
Neste primeiro dia da Jornada houve consenso entre os educadores presentes de que as escolas públicas são pontos de referência para os bairros para além da educação, pois fornecem alimentação para alunos e inclusão dos alunos em contextos culturais, e que a pandemia interrompeu este grande apoio local.
No segundo dia da Jornada o tema foi “Educação e Tecnologias”, tendo como palestrantes Christian Basílio, estudante de Gestão Pública na UFRJ e co-fundador do Ubuntu_Labe e Gilberto Ramires, graduando em tecnologias educacionais pela Universidade Estácio de Sá.
Christian lembrou como já existem várias demonstrações tecnológicas dentro da favela: “Para pensar tecnologia na favela é preciso ampliar a visão e vivência de tecnologia para além de redes sociais, que poderia começar pela construção da valorização do que já se tem hoje na favela. A tecnologia é nós”.
Segundo Christian, o racismo algorítmico é uma característica natural da tecnologia ocidental presente em tudo, desde Instragram e seus filtros branqueadores até os dispositivos faciais de reconhecimento. “A tecnologia é moldada desta maneira porque é um reflexo do mercado branco que a cria, promovendo a marginalização dos negros… Embora a tecnologia possa ser usada como um instrumento de mudança social, é difícil ter igualdade de oportunidades e atender às exigências socioeconômicas quando há barreiras de racismo estrutural no meio”, argumentou Christian.
Paloma Porfirio apontou como podemos reverter este processo de afastamento tecnológico através da adaptação do pensamento computacional: “A tecnologia deve levar o estudante a se tornar um pensador criativo, a se desenvolver através de um trabalho coletivo que envolva a experimentação de novas formas de se relacionar com o mundo… Incentivar os estudantes a ter essa criatividade é essencial para desenvolver suas qualidades”. Segundo Paloma, para poder aplicar este pensamento criativo, é necessária a união de quatro elementos importantes: autoestima, impulso inicial; referências e acesso; apoio mútuo e força comunitária; e por fim, oportunidades.
Gilberto pontuou que a tecnologia é um conjunto de técnicas, implementadas de muitas maneiras diferentes, exemplificando que “o projeto Marginal Yoga, por exemplo, utiliza a tecnologia de autocuidado do corpo e a aplica na Baixada Fluminense“. Gilberto defendeu o conceito de afro-futurismo como uma forma de contemplar as possibilidades reais da população preta ocupar e dirigir seu futuro através do poder coletivo. “Trabalhar com educação é trabalhar com responsabilidade”, concluiu.
Renata Siqueira destacou que quando se fala de educação favelada, mesmo que as trajetórias sejam individuais, as conquistas são coletivas. Compartilhar as próprias experiências a fim de compreender e empatizar com o outro proporciona um senso de ancestralidade e conexão que permite valorizar não apenas a própria experiência, mas a experiência do outro. “Isto é o que é conhecido como quilombo de afeto“, afirmou Renata.
No terceiro dia da Jornada o tema foi “Favela e Futuro”, tendo como palestrantes Rosa Diaz, cientista social e coordenadora de projetos e relacionamento com OSCs do Atados Rio e Gizelly Vinagre, moradora de Guadalupe, formada em Comissária de Vôo, graduanda em relações internacionais na UFRJ e bolsista de Ciências Contábeis na Universidade Veiga de Almeida.
Rosa Diaz explicou como a plataforma Atados utiliza socialmente a tecnologia, colocando futuros voluntários em contato com organizações. “Em tempos de crise, a formação de laços entre pessoas é importante para ser capaz de organizar e fazer mudanças reais.” Rosa contou que durante a pandemia, as demandas aumentaram 45% em comparação com os anos anteriores, e houve também uma grande mobilização digital para doações.
“Sempre se diz que a favela é a periferia, mas para mim é o centro”, disse Renata. Junto com outros educadores, Renata faz parte do Instituto Bola pra Frente no Complexo do Muquiço, na Zona Norte. “Temos que colocar nossa visão de mundo lá fora para que possamos nos reinventar criando referências… O Muquiço no mundo e o mundo no Muquiço”, disse Renata. O Instituto Bola pra Frente é o único lugar extra, no local, onde os estudantes podem ter acesso a atividades esportivas, educacionais e culturais com uma metodologia de educação integrada.
“Através do projeto Bola pra Frente, em uma andança pela favela [do Muquiço], descobri o motivo do padrão das casas e a forma como é visto de cima… tem a ver com os trabalhadores da ferrovia de Deodoro… inclusive meu avô trabalhou [na ferrovia] e eu não sabia”, disse uma das jovens participantes da Jornada.
Giselly Vinagre que faz parte do Instituto Bola Pra Frente declarou que apesar das muitas dificuldades no seu processo educativo, o Instituto Bola Pra Frente lhe proporcionou segurança suficiente para continuar, e poder suficiente para dizer: “Eu quero não apenas que minha vida mude, mas também a vida dos outros”.