Este artigo inaugura a série do pesquisador convidado Jeffrey Omari*, sobre tecnologia da informação e comunicação nas favelas do Rio.
Um morador de uma favela na Zona Norte contou uma história de como o proprietário do imóvel em que reside lhe deu um aviso para desocupar seu apartamento e exigiu que ele se mudasse rapidamente. O morador tinha outras opções de moradia na favela e não estava muito preocupado. Ele achou cômico, entretanto, o proprietário ter enviado o aviso através do Facebook. Segundo ele, receber esse tipo de correspondência formal através das informais redes sociais, como o Facebook, é cada vez mais comum em favelas pelo Rio de Janeiro.
A internet tornou-se uma parte indispensável da vida nas favelas cariocas, assim como em qualquer outro lugar do mundo. Para os moradores destas comunidades, o acesso à internet e a sua capacidade de promover uma sociedade mais democrática são essenciais para o dia-a-dia. Desta forma, a disponibilidade do equipamento (como os computadores, notebooks, tablets, celulares e LAN houses) para facilitar o acesso é essencial para uma série de atividades sociais, culturais, financeiras e políticas que dirigem a vida na favela. A questão do acesso à tecnologia nestas comunidades muitas vezes é ofuscada pelas inúmeras preocupações quanto às iniciativas de pacificação. Entretanto, com a aprovação recente do Marco Civil da Internet no Brasil–uma “Carta Magna da internet”–a questão do acesso à internet nas favelas está começando a receber mais atenção.
Os estudantes do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV conceberam originalmente o Marco Civil em 2009. Foi tido como uma prioridade constitucional pelo governo brasileiro após as divulgações de Edward Snowden sobre espionagem americana, e foi transformada em lei em abril de 2014. O Marco Civil versa sobre regras de neutralidade na rede, privacidade online, retenção de dados e responsabilidade dos intermediários (provedores). Neutralidade na Rede–a ideia de que os servidores de internet devem lidar com diferentes tipos de acesso online igualmente, sem discriminação quanto à velocidade de acesso (a forma como a internet funciona agora)–é garantida no Brasil com a lei de 2014. Este princípio só foi adotado nos Estados Unidos em 2015. Em relação à privacidade online, o Marco Civil da Internet estabelece regras em três categorias: (1) princípios e direitos do usuário, (2) especificações sobre a retenção de dados, e (3) o acesso aos dados pessoais. Em um esforço para garantir sua própria privacidade online e escapar do alcance da campanha de espionagem da NSA, o Brasil está programando para iniciar a construção subaquática de cabos de fibra ótica que atravessariam o Atlântico de Fortaleza até Portugal. O mais importante, entretanto, no que se refere às questões relativas à tecnologia nas favelas, é que o Marco Civil afirma que o acesso à internet é um requisito para os direitos civis. Ademais, no Brasil o acesso à tecnologia é fundamental para noções de democracia e participação cívica que são inerentes aos direitos civis.
A ideia de que o acesso à tecnologia é um direito se expressa através da instalação e uso de “gatos” para televisão a cabo ou Internet banda larga, como tradicionalmente é feito com as necessidades básicas de luz e água. Esta obtenção ocorre através de sistemas sofisticados de fiação, que podem ser instalados tanto por amadores quanto por profissionais, comercialmente. Em algumas favelas, gatos estão entrando em desuso devido ao aumento da presença de provedores formais de serviço de Internet e a repressão policial. Embora muitos moradores recebam bem a presença dos provedores de serviço de internet em suas comunidades, alguns moradores de favelas sentem falta dos “gatos”, já que o gato equivalia a um serviço subsidiado.
Estudos recentes começam a focar mais nestas e em outras preocupações em torno do acesso à tecnologia em favelas. O Observatório de Favelas, por exemplo, publicou um estudo quantitativo fornecendo dados estatísticos sobre a forma como certas comunidades (Complexo do Alemão, Cidade de Deus e Rocinha, Manguinhos e Complexo da Penha) no Rio de Janeiro usam a internet. Além disso, David Nemer, doutorando em Informática Social na Universidade de Indiana, conduziu um trabalho de campo etnográfico sobre o uso da tecnologia nas favelas de Vitória, ES, e publicou o livro ”Favela Digital: o outro lado da tecnologia” em 2013.
No entanto, pouca pesquisa etnográfica tem sido produzida no que se refere ao acesso à internet como requisito à democracia. Como o equipamento que facilita o acesso às redes sociais é adquirido ou acessado pelos cidadãos de baixa renda? Como o acesso à tecnologia empodera ou desempodera os moradores de comunidades informais? De que forma o acesso ao material tecnológico também provoca riqueza social? E qual o impacto das LAN houses–usadas para promover a inclusão digital oferecendo acesso à internet–aos moradores das favelas?
A série de artigos que será apresentada em seguida fornecerá uma visão sobre estas preocupações no contexto das favelas do Rio de Janeiro.
*Doutorando da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, Jeffrey Omari estuda o acesso à internet e direito digital no Rio de Janeiro.