Mais de 60 moradores de favelas, defensores públicos, trabalhadores de ONGs e observadores encheram a capela no alto da Rua Laboriaux, na Rocinha, no domingo para uma reunião de três horas organizada por moradores de várias favelas da Zona Sul e Zona Norte. Apelidado de “Favela Não Se Cala”, o grupo se reúne uma vez por mês, em uma comunidade diferente a cada vez. No mês passado, eles se encontraram em uma capela na entrada do Cantagalo ao longo da escadaria familiar para aqueles que não usam o hoje famoso elevador.
“Todo mundo que quiser fazer um comentário terá a chance de falar”, explicou André Luiz, da Babilônia, um dos facilitadores do grupo. A finalidade da reunião foi a de partilhar experiências de diferentes comunidades quanto às interações recentes com a Prefeitura, especialmente sobre o processo de ‘melhoria’ das favelas, incluindo remoções de casas, regulação de serviços públicos, e as negociações em torno da despropriação de casas e as indenizações do governo referentes a esse processo.
“Uma coisa injusta neste processo são as inconsistências nas contas de serviços públicos que as pessoas, de repente, têm que pagar por causa da regularização”, disse Ricardo Duarte, da Rocinha. Ricardo disse que as contas estavam vindo mais caras do que devido legalmente, mas que as pessoas estavam aceitando os valores porque não estavam bem informadas. Em alguns casos, os preços eram quase tão altos quanto o valor total do aluguel. “As pessoas estão achando ques as coisas estão ruins na Babilônia porque eles estão sendo cobrados R$300 por mês da Light, mas na Estradinha (uma parte do Morro do Tabajaras, em Botafogo), as pessoas estão tendo que pagar R$600”.
“Enquanto isso, na Rocinha”, continuou ele, “o PAC foi concluído a tempo para as eleições, o governo está construindo um teleférico que os moradores não pediram, estamos tendo que pagar multa para ter eventos de música na comunidade, e as pessoas estão sendo coagidas a aceitar R$46.000 por suas casas ou serão removidas para Bangu onde conjutos habitacionais estão sendo construídos”. Enquanto Duarte falava, uma equipe de filmagem tinha três câmeras em sua direção. Eles estavam filmando um vídeo do evento para compartilhar no futuro.
Deley de Acari, um líder da comunidade da Zona Norte, falou em seguida. “Em Acari as pessoas estão aceitando muito menos dinheiro do que suas casas valem em negociações com a Prefeitura, porque eles não sabem o que é padrão. Eles estão aceitando 20 mil, 30 mil reais”. No passado, o Secretário de Habitação Jorge Bittar disse que 25 mil reais seria o valor mínimo com o qual a Prefeitura teria de indenizar alguém por sua casa, e isso era se fosse um barraco de madeira.” Assim como na Rocinha, Acari está prestes a receber intervenções do PAC, que incluem pavimentação de ruas e melhoria de espaços públicos. Na sua entrada fica um hospital público, o segundo maior da cidade, sem manutenção, que foi concluído em 2008.
“Cuidado com os projetos que são para supostamente trazer dinheiro para a comunidade”, continuou Deley. “Há um monte de conversa, por exemplo, sobre o shopping que está chegando ao Complexo do Alemão, mas o dinheiro que for feito lá não vai ficar na comunidade. E todos vocês devem continuar a compartilhar suas experiências e discutir tudo isso. Se você precisar, não hesite em entrar em contato comigo ou com o André”. Vários números de telefone foram trocados durante e após a reunião; Ricardo Duarte anunciou seu e-mail e número de telefone duas vezes para que todos pudessem ouvir.
Defensores públicos, trabalhadores de ONGs e residentes falaram sobre a importância de se discutir o que está acontecendo com os moradores de suas e outras comunidades. “Um monte de pessoas não têm acesso à Internet ou não consegue ler sobre isso. Isso precisa ser uma conversa que você tem com o seu vizinho e dentro de sua casa também”, disse a arquiteta Fátima Tardin, recebendo uma salva de palmas. Mais palmas foram ouvidas diante várias outras observações, e ao longo do evento houve alguns momentos emotivos durante os quais as discussões pararam inteiramente.
Um chapéu vermelho do MST foi passado recolhendo contribuições para o grupo; um dos organizadores enfatizou que o Movimento não aceita dinheiro de organizações, apenas de pessoas físicas.
Elisângela Sena do Pavão-Pavãozinho foi uma das últimas a falar. “Eu fiz uma lista de algumas coisas que estão acontecendo no Cantagalo e Pavão que eu quero compartilhar com todos vocês. Como vocês sabem, nós temos a UPP lá, assim como algumas obras públicas que estão sendo feitas. A energia está cortada há 12 dias no Cantagalo. De vez em quando ficamos sem água. Nunca foi assim antes”. Elisângela usou o termo “remoção branca” para descrever o processo de gentrificação que vem acontecendo na comunidade devido a preços cada vez mais altos de aluguéis. “Além disso, as pessoas estão sendo cobradas R$400 por um mês de eletricidade quando tudo o que têm em sua casa é uma geladeira e duas luzes”.
“O que estamos fazendo no Cantagalo é indo de porta em porta para documentar tudo isso, ver como as pessoas estão, perguntar o quanto eles estão sendo cobrados de electricidade. Recomendamos vocês a também fazerem isso. E as pessoas do Cantagalo estão muito revoltadas: nós tivemos reuniões com centenas de pessoas que não foram tão calmas como esta”. Ela convidou todos os presentes para um evento às 18h, no sábado, 9 de março, na quadra do Pavão-Pavãozino, onde estarão líderes de várias comunidades das Zonas Norte e Sul contando histórias e mostrando vídeos de suas experiências. O encontro vai ser seguido por eventos musicais e culturais.
Luiz encerrou a reunião enfatizando que este foi o início de uma conversa que irá continuar entre os moradores a “médio e longo prazo”. Depois de três horas de discussão, os bancos ainda estavam cheios e participantes continuavam do lado de fora nos degraus da escada da igreja. “Nós não podemos continuar a pensar individualmente sobre isso”, disse ele a uma audiência atenta. “O sistema quer nos eliminar, mas nós somos mais do que apenas uma vista bonita. Há toda uma história aqui”.