Na manhã de terça-feira, 13 de março, uma equipe de demolição contratada pelo Governo do Estado, chegou a comunidade Beira Rio em Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro, para demolir casas desocupadas, em um processo de remoção que está em andamento há quatro anos. Chegando sem aviso prévio, sem alertar os moradores que ainda vivem em casas adjacentes, cortando o fornecimento de energia e demolindo as casas, recentemente desocupadas, sem a documentação oficial necessária, a atividade do grupo acabou por ser interrompida em torno das três horas da tarde, quando os moradores, apoiados pela presença da mídia no local, chamaram policiais da UPP para investigar a legalidade das demolições.
A demolição de terça-feira é apenas o mais recente evento de um processo brutal de remoção, arrastado desde 2009, e iniciado meses depois de o então Presidente Lula ter lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) neste complexo de favelas da Zona Norte da cidade. Coordenado pela Secretaria de Obras do Governo do Estado, PAC Manguinhos é um programa de urbanização com o objetivo de melhorar a acessibilidade, habitação, serviços de saúde, educação, esporte e entretenimento, cultura, trabalho e renda, e assistência social na comunidade, através de um investimento total na primeira fase de mais de R$574 milhões. Depois do início das obras, Manguinhos recebeu uma nova biblioteca e um centro cívico, projetos habitacionais e uma nova estação de trem.
No entanto, reclamações quanto a implementação das obras, violações de direitos humanos e de falta de participação são constantes. Em uma entrevista recente, Fernando Soares, coordenador do Laboratório de Direitos Humanos da RedeCCAP, disse que “as pessoas achavam que ia ser um projeto de urbanização para a favela… Se é um projeto de habitação e saneamento, os beneficiários deveriam ser os moradores da favela, mas os moradores não são consultados sobre o tipo de projeto que querem. O projeto é elaborado a portas fechadas e as desculpas são sempre as mesmas: ‘Nós estamos mudando o pneu enquanto o carro está correndo. Ou você toma isso agora e em pouco tempo você se acostuma, ou você não vai conseguir nada”‘.
Para os moradores de Beira Rio, na parte da favela mais próxima ao rio, perto da Fiocruz e a estação de trem de Manguinhos, as obras do PAC significam que moradores devem perder suas casas, na maioria dos casos, de várias décadas.
Vanderley Pereira da Silva, estudante de enfermagem de 30 anos e morador de Beira Rio, descreve como o Estado se aproximou deles em 2009: “Eles dizem que tem que sair, vocês estão em lugar de invasão, isso é propriedade do Estado, vocês tem que sair para serem feitas as obras para a população em geral. Foram marcando as casas e chamando pessoas individualmente para estabelecer as indenizações”.
Como em inúmeras desapropriações e remoções por toda a cidade, os valores oferecidos aos moradores de Beira Rio são muito baixos. Inicialmente, foram oferecidos aos moradores cerca de R$6.000 a R$6.500 de compensação, a opção de compra assistida ou um apartamento em um conjunto habitacional. Com a continuação da resistência, a remuneração oferecida subiu para médias entre R$17.000 e R$30.000, porém isso ainda está muito aquém do valor legalmente estabelecido e do valor de mercado necessário para os moradores pagarem uma propriedade equivalente dentro de um raio de 1km, que por lei o Estado deveria fornecer.
No total, 900 famílias serão removidas da margem do rio e o local será utilizado para a construção de um centro de esportes e, de acordo com o portal de Governo, um complexo de apartamentos do Minha Casa, Minha Vida para realojar as famílias removidas, que receberão aluguel social enquanto os apartamentos são construídos. No entanto, muitos moradores de Beira Rio estão rejeitando a oferta de um apartamento não edificado; eles simplesmente querem um valor de compensação que lhes permitirá comprar uma casa na sua comunidade, Manguinhos.
Com as obras do PAC, a ocupação militar e instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), os preços das casas em Manguinhos, como no resto da cidade, dispararam. Vanderley cita casas do outro lado do rio valendo entre R$100.000 e R$120.000. Outro morador viu uma casa próxima de 70m2 sendo vendida por R$210.000. Confrontado com as ofertas de compensação baixas, que significam ter que se mudar para regiões mais distantes e periféricas com menos serviços públicos e infra-estrutura, Vanderley e outras cinco famílias de Beira Rio estão entrando na justiça para exigir uma compensação justa por suas casas.
No entanto, a sua resistência, agora em seu quarto ano, significa viver em condições cada vez mais precárias e perigosas, uma vez que demolições, como as que ocorreram na terça-feira, acontecem com regularidade. Assim que um morador é realocado e desocupa o imóvel, as equipes contratadas pelo Estado vêm com marretas e tratores para demolir as casas e deixar os escombros. Neste processo, o fornecimento de água e de energia elétrica aos moradores remanescentes é cortado, a poeira invade o ar, o entulho atrai mosquitos da dengue, baratas e ratos, e casas desocupadas parcialmente demolidas são ocupadas por dependentes químicos desabrigados. Os moradores estão sem iluminação pública e coleta de lixo há três anos.
Essas condições, deliberadamente criadas pela política de demolição de casas deixando os escombros, trouxeram sérios problemas de saúde para os moradores. A sujeira e poeira constante levaram a irmã mais nova de Vanderley a ser hospitalizada por problemas respiratórios. A filha de dois anos de idade de seu vizinho contraiu bronquite. O bebê de outro vizinho tem problemas respiratórios e de pele. Em uma casa em frente, José Ramalho, um motorista de ônibus de 56 anos de idade e morador antigo, tropeçou nos escombros, cortando seu braço e danificando as terminações nervosas e habilidades motoras de sua mão esquerda. A alguns metros da casa de Vanderley, Dejanira, de 98 anos, ficou tão traumatizada quando as marretas foram derrubando as casas do lado da sua, que desde então mal fala ou sai da cama.
Moradores dizem que o terror psicológico é muito difícil de se conviver.
Vanderson de Guimarães, de 45 anos, morador de Beira Rio há 13 anos, e que vive com sua esposa e filhas gêmeas em uma casa de três andares e 12 cômodos, acredita que os preparativos em curso para a Copa do Mundo e Olimpíadas estão por trás das remoções. Sobre o barulho dos tratores demolindo a casa de um vizinho na nossa frente, ele diz: “Como essa localidade aqui é muito bem situada, entre o aeroporto internacional e o Maracanã, eles querem maquiar o mais rápido possível para quem vem de fora de outros países acharem que aqui é um mundo de maravilhas. Não entendem que estão quase expulsando gente daqui”.
Ele destaca também a ilegalidade da ação do Estado, dizendo: “Nos temos direitos sobre isso aqui, nos temos direito de moradia que faz parte da Constituição. Mas passam em cima da lei sem mais nem menos…como os políticos irão ganhar muito com esses eventos que irão acontecer na cidade, eles estão passando por cima de tudo e todos”. Referindo-se às condições deploráveis em que eles são deixados para viver, ele acrescenta, “As pessoas tentam conseguir se manter vivas assim, mas o governo que tem o dever de nos proteger simplesmente passa por cima da gente”.
Seu vizinho e parceiro de resistência, Vanderley, que consegue manter a calma durante toda a demolição, diz: “pela Constituição nos somos todos iguais. Eu não tenho nada contra a Zona Sul, quem mora lá, mas eu duvido que na Zona Sul eles agiriam da mesma forma que estão agindo com a gente. A gente não está contra a Copa e as Olimpíadas, nós queremos nossos direitos. Até que ficamos contente quando o Rio foi eleito, mas a forma que estão lidando com as comunidades está me deixando muito triste”.
Fotos de Luiz Baltar e AF Rodrigues da Agência Imagens do Povo.