Essa é a segunda matéria de uma série de três sobre a História da Urbanização nas favelas do Rio de Janeiro. Clique para ler a Parte I e Parte III.
Ande por uma favela no Rio hoje e você poderá observar corrimãos e escadas de concreto em meio aos becos mais orgânicos e a casas não tão simétricas. A menos que haja movimento de trabalhadores no local – ou dando uma pausa pro cafezinho – em macacões azuis e capacetes, esses recursos de infraestrutura foram provavelmente implementados pelo Favela-Bairro, programa de urbanização que ocorreu entre 1994 e 2008.
Antes do Favela-Bairro, obras de infraestrutura nas favelas cariocas criaram um total 200.000 metros de novas linhas de esgoto e a implementação de 31 programas de saúde comunitária em diferentes bairros. A reforma da Constituição brasileira de 1988 estabeleceu o direito ao usucapião, o direito a se manifestar livremente, e o direito de ir e vir. Entretanto, foi de fato o Plano Diretor da cidade em 1992, que primeiro declarou abertamente nos artigos 148 e 151 o objetivo de “integrar as favelas à cidade formal” e “preservar seu caráter local”. Este foi um grande avanço em relação ao Código de Obras de 1937, cuja linguagem tratava a favela como “aberração”.
Com as novas diretrizes do Plano Diretor, e devido à sua quase derrota por Benedita da Silva, que nascera na favela, o Prefeito do Rio eleito em 1993 César Maia propôs seis projetos municipais de melhorias em bairros. O programa Favela-Bairro, projeto que foi aprovado pela Prefeitura e idealizado pelo Luiz Paulo Conde, arquiteto e na época Secretário Municipal de Urbanismo, seria coordenado pela recém-criada Secretaria Municipal de Habitação com o apoio da COMLURB, a companhia de coleta de lixo municipal, juntamente com a CEDAE, companhia de água do estado. O projeto proposto planejava melhorias gerais em infraestrutura, serviços sociais, regulamentação imobiliária e a implementação de uma creche em cada favela urbanizada. Ao invés de focar em residências particulares, como fez o CODESCO na década de 1960, o Favela-Bairro definiu espaços públicos como sua prioridade, além de prometer que cada projeto de urbanização “será amplamente discutido pelos membros da comunidade”.
Para o financiamento, Maia solicitou fundos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O prefeito assinou um contrato em 1995 com o BID, que forneceu 180 milhões de dólares, acompanhados por mais 120 milhões de dólares do Governo do Estado, para a primeira fase do projeto. Em 2000, um orçamento idêntico foi determinado para a sua segunda fase.
Para selecionar as favelas que iriam receber as primeiras obras, os planejadores organizaram todas as favelas cariocas por tamanho: médias, grandes ou pequenas. As comunidades médias de entre 500 e 2.500 lares, que em conjunto representavam 40% dos moradores de favela em toda a cidade, seriam as primeiras beneficiadas. Estas comunidades foram então analisadas e classificadas por dificuldade de construção no local. Os 40 lugares mais viáveis foram escolhidos e, dentre estes, 16 foram selecionados pelo Prefeito e Subprefeitos para receberem os primeiros projetos. Para o design dos projetos específicos, houve um concurso aberto de arquitetura entre empresas privadas, e o governo trabalhou com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) para selecionar os vencedores.
Até a conclusão da primeira fase do programa Favela-Bairro, 38 favelas tinham recebido melhorias, incluindo favelas beneficiadas por programas paralelos, como o Favela Bairrinho para comunidades com menos de 500 lares, e Grandes Favelas, para comunidades com mais de 2.500 lares. A segunda fase do Favela-Bairro, de 2000-2005, começou durante o mandato do Prefeito Luiz Paulo Conde (1997-2001) e continuou durante o segundo mandato de César Maia (2001-2005), contando com a urbanização de outras 62 favelas e 24 loteamentos irregulares. O desenvolvimento da segunda fase do programa se expandiu na inclusão de creches e centros de informática, oferecendo treinamento em higiene e desenvolvimento da comunidade e até algumas titulações de propriedade.
Algumas avaliações iniciais do programa Favela-Bairro elogiaram o caráter inovador do projeto. Em 2005, na sede do BID foi realizado o aniversário de dez anos do programa, reconhecendo-o como “o mais ambicioso programa de urbanizações em favelas no mundo”. Marcelo Burgos, historiador especializado em favelas e coordenador do Departamento de Sociologia da PUC-Rio, escreveu em 2005 que ele tinha “grande esperança que o programa levaria a uma revitalização e maior capacitação de organização política nas favelas”, acrescentando que “a luta pelos direitos tinha encontrado um importante aliado no programa Favela-Bairro”. O Favela-Bairro foi sem dúvidas um salto ideológico em relação as antigas intervenções estatais em favelas, e, agora que mais alguns anos se passaram, é possível melhor observar os resultados concretos de suas conquistas.
Um Exemplo do Favela-Bairro na Zona Norte
Entre a Avenida Brasil e o Rio Padre Lima, a uma hora de metrô da Zona Sul do Rio, 8.500 casas compõem a favela de Acari. Acari, que fora outrora uma área de plantação de açúcar, estabeleceu-se como favela após a inauguração da Avenida Brasil pela Zona Norte em 1945, e é hoje uma das dezenas de favelas que cerca a rodovia em ambos os lados. Como muitas das favelas da Zona Norte, é plana. Carros dirigem pelas ruas. O correio chega até as casas. Mas Acari certamente se qualifica como uma favela e, segundo uma avaliação de 2000, é também a área com o menor Índide de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas na cidade de Rio de Janeiro.
Com respeito à urbanização, Acari viveu várias iterações diferentes de programas de urbanização e melhoramentos. O primeiro foi uma pequena iniciativa independente organizada pelo reitor da PUC-Rio em 1980, que instalou alguma infraestrutura de saneamento e pavimentação. Em 1996, mais infraestrutura de saneamento foi instalada pelo programa nacional PROSANEAR. Em 2006, a segunda fase do programa Favela-Bairro veio a Acari para pavimentar mais ruas, instalar mais bueiros e canos de esgoto e reforçar as paredes dos canais de drenagem.
Deley da Cunha, conhecido como “Deley de Acari”, é diretor da programação cultural de uma escola pública, desenvolve diversos projetos comunitários, milita em movimentos de direitos humanos, e mora em Acari há 20 dos seus 74 anos. Da Cunha diz que estes programas de urbanização trouxeram serviços essenciais que os moradores mereciam depois de pagar impostos sobre serviços e mercadorias durante décadas. Ao seu ver, o design urbano das favelas é belo e único, lembrando antigas e densas cidades europeias de Portugal e Itália, e os reparos de reforço às estradas foi o passo certo para a preservação deste design.
Mas o comentário principal de Da Cunha sobre os programas de urbanização é a respeito da qualidade dos serviços que, muitas das vezes, a sua principal valia foi a repavimentação de obras anteriores deterioradas. Um córrego em Acari foi pavimentado quatro vezes, recebendo somente novas camadas de cimento e um corrimão. “Não é porque os trabalhadores são incompetentes”, diz Da Cunha. “Tem a ver com a qualidade dos materiais usados”. Em algumas ruas, os trabalhadores do Favela-Bairro não tiraram as camadas antigas antes de botar o cimento novo, e isso foi acontecendo duas ou três vezes até que o nível da rua subiu e ficou mais alto que o piso das casas. Assim a água da chuva corre pra dentro das casas invés de correr para o esgoto.
Outras pesquisas sobre o programa Favela-Bairro como por exemplo a pesquisa de Bruno Alves de França sobre a longevidade das urbanizações na Praia da Rose e Sapucaia, e o estudo longitudinal de Janice Pelman em quatro favelas no Rio, demonstram os mesmos sucessos e as mesmas deficiências. O programa de urbanização Favela-Bairro de fato operou uma mudança em relação ao estigma das favelas, tratando-as como comunidades dignas e merecedoras de fundos públicos em larga escala, mas ao mesmo tempo vários projetos deterioraram rapidamente por falta de manutenção e pela qualidade inferior dos materiais usados.
Da Cunha diz que mesmo após os programas de urbanização, Acari continua sendo favela e não “bairro”: “A favela não é a forma física de uma comunidade”, ele argumenta, “mas sim as pessoas que moram lá”, de onde elas vêm e principalmente o modo como elas se relacionam. Da Cunha conta a história da Cidade Alta, um dos vários conjuntos habitacionais que receberam moradores de favelas reassentadas. Ele conta que a Cidade Alta parou de ser um condomínio e passou a ser uma favela assim que os moradores chegaram, e que isso não é nada ruim pois os elementos culturais das favelas são valorizados pela cidade à fora. “Aqui em Acari por exemplo, tem o grandioso ensaio da escola de samba e uma festa baile funk todo fim de semana”, ele acrescenta, “culturalmente, nós temos uma cidade favelada”.
Sobre Participação e Progresso
Apesar dos termos do programa Favela-Bairro terem estipulado que um de seus objetivos seria obter a “maior participação possível” de moradores no planejamento dos projetos, Da Cunha conta que não se lembra de participação pública durante a implementação do programa em Acari. Ele conta que a participação de moradores com respeito ao desenvolvimento da comunidade é em geral bem forte – a creche foi construída pelas mães da comunidade e existem várias organizações comunitárias culturais para jovens em Acari – ele até sonha em trazer o orçamento participativo para a comunidade. Mas a abordagem do Favela-Bairro foi de cima para baixo.
Até 2008 o programa Favela-Bairro alcançou 168 favelas e loteamentos no Rio de Janeiro. Um estudo quantitativo do BID de 2005 mostrou que em 37 comunidades servidas pela primeira fase do programa houve um aumento significativo no acesso à água e saneamento, em comparação com outras comunidades que não foram atendidas pelo programa, sendo o impacto maior nas favelas mais pobres. O estudo também consta que os projetos de saneamento não impactaram o índice de mortalidade infantil devido à doenças transmitidas por vetores, e tampouco causaram um acréscimo nos alugueis nas comunidades servidas pelo programa, considerando o aumento de renda dos bairros vizinhos. Além disso, o estudo deixa claro que o objetivo do programa Favela-Bairro é abordar os resultados da falta de habitação na cidade a preços acessíveis e não tratar, em primeiro lugar, as condições que forçam as pessoas a viverem em condições informais. O assunto sobre o que leva as pessoas à morar nesses assentamento deve ser abordado no futuro, como deve-se também acrescentar o acesso à serviços sociais para o aprimoramento do programa de urbanização.
Nas palavras de Janice Perlman,
“Favela-Bairro foi um passo corajoso na direção certa, mas não foi ‘o ideal’. Não houve uma avaliação das melhores práticas, somente práticas que foram melhores que outras em um determinado tempo e lugar. Quando uma ideia inovadora alcança o nível de implementação e começa a ser rotina, suas contradições internas viram novos desafios a serem abordados”.
Devido à combinação da pressão interna e internacional, e o crescente número de votos dos moradores de favelas, o programa Favela-Bairro, de fato, representou a rotinização de programas de urbanização direcionados às favelas como parte da política oficial da cidade e a adição de serviços sociais na segunda fase do programa foi uma indicação das tendências dos programas de urbanização seguintes. O próximo programa nas favelas implementado em escala nacional, o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) de 2007 forneceu mais de US$300 bilhões de dólares em infraestrutura e assistência social à comunidades pobres em todo o país.
Como a urbanização local tornou-se consenso na política do governo para as favelas nas décadas de 1990 e 2000, a avaliação destas políticas tem exigido uma mudança de olhar, não apenas nas intenções destes programas, mas também na sua implementação. “Espero que a construção do programa de urbanização nas favelas mantenha o uso de materiais de boa qualidade”, diz Da Cunha em Acari, “e com o mesmo senso de urgência que há em obras em outras partes da cidade”. No final dos anos 2000 este ainda não era o caso. Entre 2005 e 2008, os projetos Favela-Bairro estavam atrasados e sem fundo, com muitos empreiteiros abandonando o projeto pelas dificuldades das condições de trabalho. Logo depois, no entanto, esses projetos em atraso teriam uma nova fonte de financiamento e um novo nome, o do Morar Carioca.
A parte final desta série composta em três partes, relatará a história do programa Morar Carioca desde o ano 2010 até hoje. Clique aqui para acessar a Parte I, A história das urbanizações nas favelas no Rio de Janeiro: 1897-1988.
Referências bibliográficas
Alves de Franco, Bruno. “Urbanização de Favelas no Rio de Janeiro: as favelas de Praia Rosa e Sapucaia 12 anos após a experiência do Programa Bairrinho”, Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
Alvito, Marcos. As Cores de Acari: Uma Favela Carioca. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2001.
Burgos, Marcelo Baumann. “Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro: as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro”. In: Zaluar, Alba; Alvito, Marcos (Orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
Freire de Lucena, Andréa. “As Políticas Públicas de Saneamento Básico no Brasil: Reformas Institucionais e Investimentos Governamentais.” Revista Plurais (Online), v. 1, 2006.
Perlman, Janice. Favela: Four Decades of Living on the Edge in Rio de Janeiro. New York: Oxford University Press, 2010.
Soares, Fabio and Yuri. “The Socio-Economic Impact of Favela-Bairro: What do the Data Say?” Washington, D.C.: Inter-American Development Bank Office of Evaluation and Oversight, 2005.