Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.
O ano era 2001, início do século XXI, o Brasil teve fatos marcantes como lançamento da cédula de R$2,00, o governo canadense suspendeu a importação de carne bovina do Brasil, por causa da doença da vaca louca e ainda ocorreram explosões na plataforma P-36, na Bacia de Campos, deixando onze funcionários mortos.
Apesar destes acontecimentos, o que mais precisa permanecer na memória foi a maior crise energética do país, a famosa “crise do apagão”. No último ano de governo, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou, em 1 de julho de 2001, o início dos blecautes que afetariam gravemente o setor de energia elétrica. A escassez de chuvas naquele período foi um complicador para a geração energética, já que 90% da eletricidade era produzida por usinas hidrelétricas. Ou seja, sem chuva o nível dos reservatórios foi insuficiente para manter o padrão desejável para os geradores de energia funcionarem adequadamente.
Embora a natureza não tenha ajudado no processo de abastecimento elétrico, foi apontado como causa da crise elétrica o despreparo do governo e a falta de planejamento, já que havia a ausência de linhas de transmissão para manejar a geração de energia de onde havia sobra para locais onde havia falta de eletricidade.
Na ocasião, o clima de incerteza era constante. Diante desta realidade e das medidas a serem tomadas, o programa Roda Viva, exibido na TV Cultura, propôs um debate com especialistas no assunto. No desenrolar da conversa algumas opiniões ganharam corpo. Flávia Lefevre, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC)—única mulher presente no debate—indagou diretamente para o então Secretário Nacional de Energia, Afonso Henriques Moreira Santos: “Nós [do IDEC] temos feito trabalhos em favelas em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Paraná. Eu tenho aqui contas de pessoas que demoram meses sem conseguir pagar a Moran [companhia elétrica] para conseguir se reconectar. Esta alternativa que o governo está lá [no Planalto Central] agora discutindo está considerando essa realidade? Considera-se que energia elétrica é um serviço essencial de interesse público, que [o poder público] constitucionalmente tem obrigação de garantir para as pessoas esse serviço?… Nossa preocupação é a seguinte: Nós vamos conseguir pelo menos ligar a geladeira? Nós vamos conseguir ter o básico, ou nós vamos ter uma exclusão maior ainda?”
Historicamente, as favelas e as periferias foram os locais mais desinvestidos pelo poder público. Bruno Almeida, 36 anos, historiador, morador de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, e atuando no o Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH), reflete sobre a crise energética de 2001: “Acredito que faltou interesse dos governos para informar a sociedade brasileira. O sistema de produção de energia elétrica no Brasil sustentado basicamente por grandes hidroelétricas e termoelétricas é importante até hoje, mas existem outras formas de produção de energia. Na época, [deveria] ter sido dado mais apoio a energia solar, uma vez que os equipamentos podem se adequar a todo tipo de residência e espaço físico disponível e permitem que o cidadão—que ou consome parte da sua renda no custeio da despesa com energia elétrica, ou infelizmente tem que recorrer ao furto de energia, o “gato”—tenha a sua dignidade restaurada, com acesso digno e justo à energia elétrica”.
Outro marco na crise elétrica foram as medidas do governo para forçar a população a racionar energia durante o período de 1 de julho de 2001 a 19 de fevereiro de 2002. Para o uso domiciliar a regra era que acima de 100 quilowatts/hora por mês, a redução de 20% era obrigatória, e os que não aderiram ao pacote passaram pelo risco de ter a luz cortada por três dias na primeira infração, e seis dias em caso de reincidência. O governo federal também elaborou uma sobretaxa para consumos de 200 quilowatts/hora por mês. Nestes casos eram pagos 50% a mais sobre o que excedesse esse patamar. Para a redução de consumo elétrico ser eficiente, entre 2001 e 2002, foi feita uma campanha de conscientização, estimulando a troca de lâmpadas incandescentes por fluorescentes e a compra de eletrodomésticos mais econômicos.
Para Bruno Almeida, “outras questões não poderiam ter sido ignoradas, como o fato de que muitos fornecimentos de energia de casas de favela e periferias não possuíam contrato de serviço… e [nesses casos] quando o fornecimento de energia foi comprometido, além da ausência da possibilidade da reclamação pela falta do serviço, [existia] o risco de perda de aparelhos e acesso à água potável, pois as bombas d’água precisavam estar ligadas boa parte do dia—uma vez que esse serviço também era, e ainda é, precário. Além [da perda] de alimentos que precisavam de refrigeração comprometer a renda mensal dessas pessoas, aumentando consideravelmente e de forma indireta os danos causados pelo apagão e o racionamento de energia. As tarifas altas, naquela época, eram um absurdo. Comprometeram a renda mensal dos mais pobres, fazendo que a sua renda fosse só para custear os serviços básicos, engessando o acesso a outros serviços… Não sobrava dinheiro para o lazer fora de casa, restringindo seu acesso ao lazer à televisão”, conta o historiador.
A Crise do Apagão nas Favelas Cariocas
Zélia Marques, 53 anos, comerciante, moradora da favela Vila Beira Mar, Duque de Caxias, conta que na época do apagão, desligar geladeira, televisão e ventilador—para frear os altos valores a serem pagos no final do mês—virou rotina em toda a comunidade. “Depois de um certo ponto acostumamos. Corríamos para desligar os eletrodomésticos, acender velas [que] mantinham-se em locais altos, e dentro de copo ou pirex, pois haviam filhos pequenos… ou até mesmo para não causar um incêndio. Durante um tempo, recorremos somente às velas e depois a um lampião a gás, [que] na época era mais econômico. Aqui na comunidade ficávamos sentados na porta de casa até que a luz voltasse. Muitas das vezes recorremos [para amenizar o calor] ao famoso banho de mangueira, ou até mesmo pegar um ventinho na porta de casa”, relembra.
Zélia é embaixadora da organização internacional Litro de Luz, que atua em mais de 20 países. A iniciativa tem o objetivo de levar luz até moradores de comunidades que não possuem acesso adequado à energia elétrica ou que vivem sem luz em suas casas e ruas, utilizando tecnologia simples e econômica, composta por garrafas plásticas, painéis solares, baterias e lâmpadas LED. Com sua consciência ambiental, Zélia relata como vivenciou a maior crise elétrica do Brasil: “Para mim foi muito ruim, pois [eu] tinha um pequeno comércio… me trouxe prejuízos, perdi televisão, geladeira, entre outros, e muitos vizinhos perderam também, e eu ainda por cima estava grávida. Sem contar nas casas de madeira que pegaram fogo. Muita tragédia. Uma lembrança muito triste durante o apagão [ocorreu] ao sabermos que um barraco pegou fogo e nele morreu uma criança. Ficou marcado”.
Em uma entrevista para o programa televisivo Fantástico, em julho de 2001, o então Presidente Fernando Henrique Cardoso, ao ser questionado pela repórter sobre o fim do apagão, respondeu: “Depende um pouco dessa relação com a sociedade. Se a sociedade continuar como está convicta, ajudando as empresas a continuarem como estão, nós vamos superar isso. Eu quero mesmo anunciar em 2002 que nós superamos para sempre essa crise. Que nós continuemos construindo e melhorando a qualidade de energia”.
Em relação à fala do então presidente, Zélia questiona: “Até onde vai a falta de empatia de um líder de uma nação? Depois…, não houve mais blackouts como este… Devido ao ganho de mais dinheiro por parte do governo, vi famílias perderem as únicas coisas que tinham conquistado com muito suor, e vi vidas sendo ceifadas”, finaliza.
19 de Fevereiro e as Lembranças Atuais
No dia 19 de fevereiro de 2002, há exatamente 19 anos, foi decretado o fim do racionamento em todo o país. Lembranças tristes e prejuízos ficaram para muitas pessoas. Sempre contando com apoio e união dos vizinhos, Verônica Brasil, 34 anos, técnica de enfermagem e moradora da Cidade de Deus, Zona Oeste, presenciou em sua volta longos períodos sem energia elétrica.
“Em 2001 e até o início de 2002 eram constantes na Cidade de Deus os apagões. Ficamos dias e noites sem luz e eles [funcionários da Light] alegavam que a empresa não entrava na localidade porque tinha conflitos—algo que não era a verdade daquele momento. Nossa realidade era ficar nas calçadas esperando o sono chegar, com as crianças, e tentando aliviar a intensidade do calor com ar ambiente. Na época, eu tomava banho gelado e não enxugava o corpo. Aliviava temporariamente. Ficava com velas [acessas] quando tinha dinheiro para comprar. Na época, minha mãe estava desempregada e era bastante difícil adquirir velas. Sempre ficávamos próximos a entrada da casa, onde entrava um pouco de luz da lâmpada de emergência da vizinha que morava em frente a minha casa. Foi tenso porque já tínhamos dificuldades financeiras, e não podíamos guardar comida na geladeira porque estragava tudo”, relata.
Verônica complementa: “Tenho a lembrança das pessoas falando sobre o descaso do governo com as comunidades, [sobre] a falta de atenção às necessidades básicas das favelas e aos moradores que trabalhavam indo se arrastando para o trabalho, sem ter tido uma boa noite de sono. Minha mãe perdeu uma geladeira e uma TV na época. Lembro do presidente. Ele poderia e deveria ter olhado para a nossa nação com mais carinho e respeito”.
Muito sobre a história da crise do apagão—que de acordo com o Tribunal de Contas da União custou ao país R$45 bilhões—pode ser encontrada em uma busca pela internet, mas muitos jovens nunca ouviram sobre a temática na grade escolar. É o caso de Rayssa Pereira, moradora da favela Pantanal, Duque de Caxias, assessora de mobilização e juventudes na ONG Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, que só soube da existência do fato neste ano.
“Foi bem curioso e também assustador pensar que as pessoas ficaram literalmente no escuro. E pensar nas questões de segurança, alimentação, saúde física e mental, dentre outras coisas que tiveram desdobramentos a partir dos apagões. Eu só descobri sobre essa crise agora, e isso já tem [quase] 20 anos. Pensar que essa história, que também fez parte da minha vida—pois na época eu era uma bebê—não foi contada e nem mesmo estudada na escola, é mais um sinal de que nossas histórias continuam sendo apagadas e o Estado é responsável por isso. Infelizmente, o acesso à luz, assim como outras estruturas que são primordiais para viver bem, como o acesso a água e saneamento básico são muito precarizadas”, reflete Rayssa.
Sobre o artista: Anna Paula Rodrigues é designer e ilustradora freelancer, formada em desenho industrial pela UFRJ. Anna Paula—que atua com a questão antirracista quanto a estética e beleza—trabalha como designer gráfica em diversas ONGs do Rio de Janeiro.
Sobre autora: Beatriz Carvalho, cria de Vilar dos Teles em São João de Meriti, é jornalista, mídia-ativista, feminista e toca o Mulheres de Frente.
Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.