Esta é a nossa mais recente matéria sobre a Covid-19 e seus impactos sobre as favelas.
A história popular das escolas de samba do Rio desde seu inicio, foram construídas a partir do ritual de sociabilidade dos negros pós abolição, principalmente, entre as favelas e os subúrbios carioca. Os cânticos, a forma de dançar, os enredos, toda essa tradição, ganha corpo e se constrói enquanto campeonato na primeira metade do século XX, mais especificamente em 1932, sediado pela primeira vez na Praça Onze, berço da Pequena África com o concurso das agremiações do samba, organizado pelo jornal Mundo Esportivo.
Hoje a disputa divide-se em regiões distintas da cidade. A mais famosa fica entre as esquinas dos prédios ‘balança mais não cai’ com a Agência dos Correios, Zona Central da capital carioca, e o espaço que ficou conhecido como Sambódromo da Marques de Sapucaí, construído a partir de 1983 e inaugurado no ano seguinte, 1984.
O Rio de Janeiro, berço do samba, e também popularmente conhecido como o palco do maior espetáculo da terra, carrega um ditado popular que diz: o ano só começa após a quarta-feira de cinzas. O dito se constitui por conta da relevância histórica, simbólica e cultural que é dada ao feriado. Em 2021, os dias reservados para a festa de Momo, estão diferentes. Dessa vez o espetáculo construído pelas agremiações do samba, não estão com suas alegorias, passistas, alas das comunidades e a saudosa velha guarda das escolas, desfilando na avenida.
À altura do campeonato, muitas escolas já estariam desfilando e outras já teriam até mesmo cumprido seus ritos nas avenidas com “um porre de felicidade”, parafraseando o samba da União da Ilha de 1989. Ao sambódromo é dada uma grande visibilidade econômica e midiática, todos os anos. Com a maioria dos ingressos inacessíveis para a população mais pobre da cidade, o espaço é, majoritariamente, ocupado por classes com mais recursos. Por outro lado, o subúrbio carioca não deixa de pôr seu desfile na rua. É na Zona Norte, onde fica o bairro de Campinhos, que desfilam as escolas de samba do grupo de acesso da Série Prata e Série Bronze. Mesmo com menos recursos financeiros, às escolas da Intendente Magalhães, em Campinhos, ano a ano, não deixam de apresentar seu belo desfile e abraçar seu povo.
Mas esse ano, os heróis dos barracões—como cita o samba História pra Ninar Gente Grande da Estação Primeira de Mangueira no ano de 2019—não terão passagem. O som, bailado, as cores e seus inúmeros sambas enredos que são contadas ao longo das noites de carnaval, tanto na Intendente Magalhães quanto na Sapucaí, dão espaço para o apagar das luzes e brilhos, esperado por tantos.
É na tentativa de conter a amargura da maior crise sanitária do último século—que já tirou cerca de 238.532 mil vidas (em 14/02), no Brasil, inclusive de muitos componentes das escolas de samba—que pela primeira vez, desde 1919, o carnaval oficial da cidade não está abrilhantando o Rio de Janeiro, popularmente conhecido como capital do samba. Sem som, sem enredo, sem abre alas e sem as baianas, é assim que a Sapucaí e a Intendente Magalhães atravessam o feriado do carnaval.
A Interrupção do Carnaval de 2021 pelo Novo Coronavírus
Em 11 de março de 2020, logo após o desfile das escolas de samba do Rio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o mundo estaria vivendo sob a pandemia do novo coronavírus. Após aquela data a vida de muitos ganharia outros contornos e incertezas diante do cenário que passou a ser desenhado dia após dia, inclusive no mundo do samba.
Foi com as incertezas e agravamento da pandemia, que o desfile oficialmente agendado para fevereiro de 2021, foi cancelado e adiado para julho, pelo governador em exercício Cláudio Castro, porém o prefeito do Rio, Eduardo Paes, anunciou o cancelamento do carnaval em julho também. A partir de todas as incertezas que passaram a circundar a sociedade, inúmeros aderecistas, costureiras, ferreiros, carpinteiros, desenhistas e diversos outros segmentos das escolas de samba, ficaram sem receber seus salários e passaram a viver de ajuda, auxílio emergencial, ou das tentativas de reinventar-se ao longo do ano de 2020, para sobreviver.
A precariedade dos operários do samba não difere da precariedade de inúmeros trabalhadores brasileiros que foram largados e abandonados à própria sorte, sendo alguns com recursos e outros sem nenhum, como é o caso dos componentes e trabalhadores das escolas de samba.
Foi também nesse contexto que inúmeros componentes e trabalhadores das escolas de samba foram perdendo sua vida para o vírus que assola todos os dias inúmeras famílias, mas é principalmente a população mais pobre do país que acaba perdendo a luta desigual pela sobrevivência em todo o território brasileiro. E é desses rostos na maioria das vezes que são construídas as faces das agremiações do samba.
‘Estou Me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar’: À União do Parque Acari
A dimensão que tomou as escolas de samba no grupo especial, por vezes faz a população esquecer os grupos de acesso. Um dos símbolos da identidade local, em Acari, Zona Norte, é a Escola de Samba União do Parque Acari. A associação comunitária popular, ainda bastante jovem no quadro das agremiações, carrega em seu corpo toda sua expertise e experiência de outros sambas ou dos bambas.
A organização recreativa surgiu a partir da fusão das co-irmãs e vizinhas, Corações Unidos do Amarelinho e a Favo de Acari. Ambas as escolas nasceram como blocos de rua, até conseguirem documentar-se e filiar-se às agremiações das escolas de samba. Com a união entre as agremiações, em 2018 foi fundada a União do Parque Acari. Apesar da sua pouca idade, a escola vinha fazendo sucesso na Intendente Magalhães até seu último desfile em 2020 com o enredo, No Início a Criação, o Céu, a Terra e o Mar, Com Isso a Junção Cada um Com seu Par. Viva o Amor!
Seu nome, surge em homenagem a comunidade União do Parque Acari que nada mais é que a junção das localidades de Acari e Amarelinho.
Em 2021, não fosse a pandemia, a escola faria seu terceiro desfile, na Série Prata, na Intendente Magalhães, com o enredo: A Coroa Imperiana nos Braços do Acariense, em homenagem ao Império Serrano de Madureira.
Relatos de Trabalhadores do Carnaval
Índio, de 22 anos, morador de Acari, é um componente e trabalhador da agremiação União do Parque Acari, que já desfilava pelo pavilhão da Favo de Acari antes da fusão. Frente à União do Parque Acari, ele lamenta a não realização do desfile em 2021, e lembra toda a problemática que o coronavírus trouxe para o país e para os trabalhadores do samba: “Eu enxergo esse ano sem desfilar como um ano muito difícil. Foi um baque fatal para muitos do mundo do samba, para todos do Brasil. Essa pandemia está acabando com famílias, com muitos empregos de pessoas que precisam trabalhar para sobreviver e também afetando os trabalhadores do carnaval”.
Índio é muso da escola e desfila há oito anos no carnaval, além de dedicar-se a outras funções dentro da agremiação. Na União do Parque Acari, ele acumula funções na secretaria, e na confecção de fantasias, seu trabalho se desenvolve em diversas frentes. Hoje, após o carnaval de 2021 ter sido cancelado, ele está se sustentando a partir de um outro emprego que conseguiu, até a volta oficial dos preparativos para o carnaval de 2022. O carnaval para ele é tudo.
“Eu tenho um cargo de destaque. Eu sou muso, mas eu não só sambava. Aquilo ali é também o meu trabalho. Graças a Deus, hoje eu tenho meu emprego, mas eu vivia daquilo. E sem o carnaval, eu não vivo. Eu nasci para sambar, eu nasci para o samba, eu me criei no samba e no samba eu vou morrer com certeza”, conta Índio.
Índio também fala sobre a relevância da agremiação para a comunidade: “A importância da escola é levar o nome da comunidade para fora. Mostrar para o povo o que é uma escola de samba, mostrar para o povo que a comunidade de Acari quer diversão, alegria e sobretudo respeito”.
Apesar do seu otimismo com o carnaval, ele aponta que é necessário que se olhe para a festa, temendo a não realização do espetáculo até no próximo ano. “Espero que quando voltar, a renda seja alta porque querendo ou não as escolas vão ter que colocar dos seus bolsos, por conta das perdas e despesas que tiveram. E se não quiserem pagar as escolas de samba, não terá desfile no ano que vem de novo”, conclui.
Por outro lado, a 1ª Porta-Bandeira do Paraíso do Tuiuti, Danielle Nascimento, fala sobre sua atuação em 2020, no processo de ajuda aos integrantes que passaram por dificuldades. Daniele, junto com seu par, o mestre-sala Marlon Flores foram convidados pelo mestre-sala Diogo de Jesus e a porta-bandeira Ruth Alves para compor o projeto Bailado Solidário, junto a outros onze casais de porta-bandeira e mestre-sala do grupo especial, em apoio a outros integrantes do mesmo segmento que passaram por dificuldades financeiras.
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No projeto, Danielle ajudou a angariar fundos, entre doações e leilões para compra de cestas básicas e donativos para quem ficou sem renda. A porta-bandeira, que tem uma rica história no mundo do samba, desfila à frente de escolas de samba há 32 anos e desde então, nunca havia permanecido um ano fora da maior passarela do samba. Sobre não estar na avenida em 2021, Daniele diz: “É certo não entrarmos na Avenida em um período de pandemia. Não é só o carnaval parado, é o mundo, e é por uma causa maior, justa. Tudo certo, e sim a melhor decisão é não ter desfiles”.
Ela também fala sobre o impacto do projeto Bailado Solidário no momento de desamparo na vida dos trabalhadores do carnaval: “Graças a Deus conseguimos ajudar diretamente mais de 200 famílias. Recebemos um retorno super positivo das famílias que além desse suporte das cestas, em um momento delicado, receberam todo o carinho e atenção do grupo. Todos se sentiram lembrados, e valorizados”, mas Danielle pondera: “É o nosso trabalho… o que lamento é que a maioria de nós ficou sem amparo e suporte neste período. O mundo parou, não sabemos quando vamos ter carnaval, mas as contas chegam”.