Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas. Leia a matéria original por Fabio Teixeira, em inglês, no Reuters aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil.
Antes mesmo de começar a árdua tarefa de contabilizar as mortes por coronavírus nas favelas, Anna Paula Salles e sua equipe negociam o acesso com traficantes de drogas e milícias armadas que as controlam.
É um trabalho perigoso—em uma visita a uma favela em Itaguaí, uma cidade do estado do Rio, a equipe composta por mulheres teve que fugir para se salvar depois de ser pega em meio a um tiroteio entre facções de traficantes e a polícia.
Anna Paula vê uma contagem precisa das vítimas [da Covid-19] como uma parte crucial da luta contra a pandemia em um país que enfrenta um aumento brutal de mortes por Covid-19.
Na primeira semana de abril, o número de mortes diárias no Brasil ultrapassou 4.000 pela primeira vez, aproximando-se do recorde de um único dia que os Estados Unidos registraram em 20 de janeiro de 4.405 mortes.
Mas aqueles que tentam contar as mortes nas favelas do Rio acreditam que o verdadeiro número de mortos é ainda pior, com muitos casos e mortes não notificados pelas autoridades.
“Estamos em estado de guerra”, disse Anna Paula, que perdeu parentes próximos e muitos amigos para a doença. “A contagem nunca para.”
Dados do governo mostram 226 mortes por Covid-19 em todo Itaguaí desde o início da pandemia, mas Anna Paula e sua equipe contabilizaram 212 mortes apenas em uma favela, do Engenho.
A senhora de 51 anos é um dos vários colaboradores de um painel lançado no ano passado pela organização sem fins lucrativos Comunidades Catalisadoras* [com 20 parceiros, entre eles os coletivos de Anna Paula e Douglas]. O painel reúne dados do coronavírus em favelas do Rio para tentar dar uma imagem mais verdadeira do impacto devastador.
A Comunidades Catalisadoras se baseia em informações do governo e de relatórios de notícias, mas também em um grupo de relatores baseados em favelas, geralmente lideranças locais. Um ano depois, muitos deles estão sentindo o desgaste.
“É um trabalho estressante”, disse Anna Paula à Thomson Reuters Foundation por telefone. “Precisamos entrar de forma muito estratégica e com foco.”
Estigma
O Brasil está lutando contra um surto de coronavírus que está saindo do controle, com hospitais lotados e com poucos suprimentos essenciais.
Douglas Heliodoro desistiu de contar as mortes por coronavírus em sua favela depois que os moradores pararam de responder às suas pesquisas, temendo que fossem obrigados a entrar em quarentena.
Para muitos dos mais de 60.000 moradores de Rio das Pedras, ter que ficar em casa em vez de ir para o trabalho significaria não poder colocar comida na mesa.
“Eles temem o estigma”, disse Douglas, um mobilizador comunitário que também dirige um coletivo local. “Há muita (subnotificação), mas ouvimos de boca em boca que muitas pessoas estão morrendo.”
Essa é a realidade enfrentada pela maioria das cerca de 1,3 milhão de pessoas que vivem nas favelas do Rio, onde as taxas de infecção por Covid-19 são mais altas devido à má nutrição, moradias apertadas e problemas de saúde.
No mês passado, a Comunidades Catalisadoras e dezenas de outras instituições com foco em favelas publicaram uma carta aberta dizendo que os moradores deveriam ter prioridade nas vacinas.
“Há muita subnotificação e é maior nas favelas”, disse Theresa Williamson, diretora da Comunidades Catalisadoras. “Com os dados que temos… já sabemos que (as favelas) são mais vulneráveis.”
O painel coordenado pela Comunidades Catalisadoras traz informações de 230 das cerca de 1.000 favelas do município e mostra 3.943 mortes (em 17/04).
Theresa disse que a utilização de dados públicos tem melhorado [com a aplicação de uma metodologia de contagem por área de influência de CEPs, realizado por uma parceira do painel, da Fiocruz], mas muitos dos relatores locais mudaram o foco das suas ações para alimentar os necessitados e aumentar a conscientização, ao invés de contar casos.**
Em janeiro a situação piorou com o fim de um subsídio governamental, aumentando a demanda por distribuição de alimentos.
Douglas está entre os que agora se concentram em ajudar, distribuindo alimentos básicos e difundindo a conscientização sobre a vacina.
“Estou angustiado porque há tão pouco que posso fazer”, disse ele.
Não É Apenas um Número
Um lugar onde as mortes ainda estão sendo contadas por uma organização local é a Maré, um complexo de 16 favelas que abriga mais de 140.000 pessoas, onde [a Fiocruz,] o principal instituto epidemiológico público do Brasil abriu um centro de testes gratuito em parceria com organizações sem fins lucrativos locais.
O centro faz da Maré uma das poucas favelas com uma avaliação precisa do peso do coronavírus na população, disse Daniele Moura, que coordena a comunicação da Redes da Maré, uma das organizações sem fins lucrativos envolvidas.
A Maré atualmente lidera o painel coordenado pela Comunidades Catalisadoras em número de casos, com 3.287 confirmados e 171 mortes (em 17/04).
Ter uma contagem precisa, no entanto, não ameniza a dor de quem perdeu alguém com a doença, disse Daniele, cujo pai morreu de Covid-19.
“Tenho uma grande dificuldade pessoal em ver este número apenas como uma figura”, disse Daniele. “Quando eu vejo, lembro que meu pai está entre eles.”
*Comunidades Catalisadoras é a organização sem fins lucrativos que publica o RioOnWatch.
**Pequenos revisões foram feitas, nessa versão em português, para corrigir informações com base no conhecimento interno que o RioOnWatch tem de como funciona o Painel Unificador.