Esta pesquisa faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.
Os problemas com energia elétrica nas favelas são crônicos e vêm desde o seu surgimento. O Estado falha ao entregar um serviço de baixa qualidade, e moradores—com improvisos—acabam sobrecarregando as redes e com isso toda a população das favelas sofre. São dias sem energia em suas casas, alimentos e eletrodomésticos perdidos e segundo os moradores, tudo isso piora no verão.
Um levantamento* de dados foi realizado entre 4 e 24 de março pelo Laboratório de Dados e Narrativas na Favela do Jacarezinho (LabJaca) sobre a percepção de moradores da favela sobre a energia elétrica. A pesquisa no Jacarezinho, Zona Norte, trouxe em números um cenário já bem conhecido e frequentemente falado pelos moradores. Dentre os 40 entrevistados, 50% afirmam que sofrem com a falta de luz pelo menos uma vez por semana, 12,5% dizem faltar luz duas vezes por semana, 6,3% garantem que sofrem do problema três vezes ou mais na semana. Neste cenário, 68.8% sofrem com falta de luz pelo menos semanalmente. Já que 18,8% não souberam responder, isso deixa só 12,4% afirmando que falta luz menos que semanalmente.
Quando foi perguntado qual foi o maior período que ficaram sem luz, o resultado foi abismante: 25% dos moradores entrevistados já sofreram a falta de luz por mais de uma semana contínua. Este bloco se compôs dos: 5% que afirmaram ficar sem luz por duas semanas; 10% que relataram ficaram até três semanas sem luz; 5% que afirmaram ficar mais de um mês sem luz; e 5% que afirmaram ficar mais de dois meses sem luz na sua residência sem que nada fosse feito.
Como podemos ver no gráfico abaixo 72,7% dos entrevistados afirmaram que há menos de um mês tiveram falta de luz em casa.
Imagine o prejuízo de ficar dias sem luz: para começar os alimentos da geladeira estragam, e com a frequência com que falta luz na comunidade, muitos eletrodomésticos e eletrônicos são danificados.
Também perguntamos sobre isso aos moradores e dentre todos os entrevistados, apenas 36% não tiveram prejuízos financeiros com os apagões. Os demais se dividem em problemas variados desde dos 42% que declararam que ficam dias sem luz e por isso perdem alimentos e os cerca de 22% que relataram que perderam eletrodomésticos variados como geladeira—o mais frequente na lista—seguido de freezers, computadores, aparelhos de som, televisão e demais aparelhos mantidos na rede elétrica.
Esses problemas são gravíssimos e esses prejuízos não são cobertos pelo Estado nem pela agência administradora de abastecimento de energia no Rio de Janeiro, a Light. Seguindo o princípio da dignidade humana, a garantia do acesso à energia elétrica é um direito fundamental, indispensável para assegurar qualidade de vida para o cidadão brasileiro. Conforme o artigo 22, da Lei n.º 8.078 de 1990: “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais contínuos”.
No entanto, apesar desse reconhecimento da Lei, o precário serviço de abastecimento de energia elétrica nas favelas confronta o regime de Estado democrático de direito que pressupõe a garantia de direitos básicos para a população. No caso do serviço de energia elétrica nas favelas—como ficou demonstrado no levantamento que o LabJaca realizou no Jacarezinho—não é garantido um serviço qualificado. Isso só nos leva a crer que para certos grupos sociais esse bem é negligenciado.
Quando Isso Acontece a Quem Recorrer?
As opções sobre a quem recorrer não são tantas. Perguntamos aos moradores a quem eles recorrem quando falta luz em suas casas e fizemos essa nuvem de palavras com as respostas geradas. Fica nítida a rede de apoio montada dentro da própria comunidade, sendo ela formada pela associação, eletricistas da favela e parentes como mais citados, mas essa rede também denota a falta de confiança na própria Light e no poder público para resolver eventuais demandas. É comum o pedido de socorro a Associação de Moradores em posts nos grupos da comunidade com foto de postes pegando fogo. A Associação reforça que a falta de manutenção somada a sobrecarga de energia gera risco para os moradores e principalmente para as crianças da favela.
Tudo Piora no Verão
Verão é época de praia, cervejinha e diversão, mas também revela muitos problemas da cidade do Rio, como alagamentos e deslizamentos causados pelas chuvas e os temidos apagões na favela. Durante o verão muita gente está de férias, os estabelecimentos consomem mais energia para manter geladeiras, freezers e ar condicionados ligados. Os moradores também ligam seus aparelhos de ar condicionado na busca de fugir do calor e com isso acontecem muitas sobrecargas na rede elétrica, uma rede precária e sem manutenção. Quando perguntamos aos moradores em qual período do ano os problemas com a energia elétrica se tornam mais frequentes tivemos o único dado levantado 100% igual, os moradores em sua totalidade apontam o verão como a época com mais problemas relacionados à luz.
“Eu vivo aqui há 43 anos, tem gente que vive há 50, 60 [anos] e desde sempre é a mesma coisa, principalmente no verão com as quedas de luz que estragam os nossos aparelhos e as nossas coisas”, afirma Júlio César, um articulador social local e criador do JCRÉ Facilitador.
Os dados apresentados mostram as consequências geradas pelos constantes apagões e os longos períodos sem luz, mas os causadores do problema são diversos e variam desde a responsabilização de instituições como a RioLuz, que peca na manutenção dos fios e postes, até a sobrecarga na rede elétrica gerada pelos próprios moradores como mostramos novamente na nuvem de palavras.
A favela que queremos passa pela cobrança de medidas efetivas das instituições responsáveis, mas também por campanhas publicitárias voltadas para essas áreas que tratem sobre a conscientização dos seus moradores. Desse modo, é urgente desafiar o estigma de que a favela é lugar de ilegalidade e desordem, para evitar essa segregação e encará-la desde já como parte da cidade.
Mas Afinal, de Quem É a Responsabilidade?
Na percepção de 31,6% dos entrevistados os próprios moradores são responsáveis pelo problema causado. São relatos como o de vizinhos que puxam um gato em uma fiação que já está prejudicada, pessoas que não têm entendimento sobre circuitos elétricos colocando a mão em redes que levam luz à casa de centenas de pessoas.
“A gente também enxerga uma responsabilização muito grande do governo que ao mesmo tempo que exige que a gente pague os impostos não entregam o serviço decente pelo que estamos pagando. Mas isso é mais do que só uma problemática com a Light, com o governo. É uma questão comportamental dos moradores também, que precisam entender que economizar luz está ligado a questão ambiental, está ligado a uma melhoria estrutural da própria favela”, declara Júlio César.
Mas apesar da autocrítica de moradores em reconhecer que também são parte do problema, principalmente sobrecarregando a rede, as instituições que deveriam cuidar e entregar um bom serviço falham. 21% dos entrevistados acreditam que o governo é o principal responsável pelo serviço ruim na luz da favela. São relatados anos de ausência do Estado nos quais necessidades básicas como saneamento e energia elétrica são negados e por isso a insatisfação.
Outros 21% acreditam que a Light é a responsável pela má prestação do serviço. Entramos em contato com a empresa por telefone e e-mail, mas até o fechamento da matéria não tivemos resposta. O mesmo se diz sobre a RioLuz, que também não respondeu aos questionamentos até o fechamento.
*O levantamento foi feito através de um formulário distribuído online e respeitou todos os protocolos sanitários recomendados pela Organização Mundial de Saúde. Com isso, e pelo número de respostas, existem limitações na capacidade de generalização dos dados para toda a favela. Porém os dados apresentados são fundamentais para impulsionar uma importante reflexão sobre o grau e impacto da insegurança energética na favela, e a urgência de mudar este quadro.
Sobre os autores: Bruno Sousa, jornalista e pesquisador, é um dos cofundadores do LabJaca, onde é o coordenador de comunicação e também atua na área de pesquisa. Atualmente, está envolvido em uma pesquisa sobre reconhecimento facial aplicado a segurança pública no Brasil no CESeC. Bruno colabora para veículos como UOL, The Intercept Brasil e Huffpost.
Thiago Nascimento, 23 anos, relações públicas e comunicação no LabJaca, é graduando em Direito na UERJ, coordenador adjunto do IBCCRIM – Rio, empreendedor pela Reciclar Design, gestor do Jacaré Basquete e criador da Campanha Jaca Contra o Corona.
Sobre a artista: Natalia de Souza Flores é cria da Zona Norte e integrante das Brabas Crew. Formada em Design Gráfico pela Unigranrio em 2017, trabalha como designer desde 2015. Lançou a revista em quadrinhos coletiva ‘Tá no Gibi’, em 2017 na Bienal do Livro. Sua temática principal é afro usando elementos cyberpunk, wica e indígena.
Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.