No Brasil, Energia Não É Direito Social

Arte original por Anna Paula Rodrigues
Arte original por Anna Paula Rodrigues

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Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.

Há meses, moradores da Rocinha criaram um grupo no WhatsApp para reclamar sobre as quedas no fornecimento de energia elétrica e a falta de água nas casas, problemas recorrentes para quem mora na favela. Até hoje, o acesso à energia elétrica ainda não é um direito social garantido pela Constituição Federal

Em 2017, o Senador Telmário Mota de Roraima apresentou a Proposta de Emenda Constitucional 44/2017 (PEC44/2017) para, enfim, categorizar o acesso à energia elétrica como direito social. Segundo ele, o acesso à energia elétrica é de fundamental importância para “garantir a dignidade humana”, pois possibilita o uso e acesso de diversos bens e serviços que dependem de fontes elétricas.

“Quando a gente torna [o acesso à energia elétrica] um direito social previsto na Constituição, assim como a educação, saúde, transporte, segurança, previdência etc, isso passa a ser uma obrigação e não um programa do governo ‘A’ ou um programa do governo ‘B’”, declarou Telmário na época.

Arte sobre os Direitos Sociais garantidos na Constituiçao Federal do Brasil. Arte de Senado Federal.

Os chamados direitos sociais referem-se à qualidade de vida dos indivíduos e devem ser garantidos pelo Estado. O artigo 6º da Constituição de 1988 define uma série de direitos sociais, sendo eles: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Casas na Rocinha

A PEC da energia elétrica está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e o relator é o Senador Zequinha Marinho do Pará, escolhido em 2019. O assunto está pronto para ser discutido na CCJ, desde outubro do mesmo ano, estando parado até hoje na comissão. Com a paralisia das discussões no Senado, a negligência no setor elétrico ainda não é constitucionalmente vista como violação de direitos sociais.

Rede elétrica na Providência. Por Antoine Horenbeek

O senador paraense apresentou um voto favorável à proposta de emenda n° 77/2019 que sugere modificação no caput artigo 6° da Constituição, incluindo a energia elétrica como direito social:

“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o acesso à energia elétrica, mediante pagamento de preço justo pelo consumo, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

Enquanto o assunto não caminha no Senado, os moradores de favelas continuam driblando os problemas da falta de energia como podem. A casa em que Jhonatas* mora há 15 anos na Rocinha não possui relógio da Light, empresa concessionária de luz da cidade do Rio. 

A energia da casa é de uma ligação clandestina que vem de um poste que passa pelo beco próximo a casa dele. “Paguei R$100 para um vizinho que sabe mexer com elétrica para ele puxar uma rede para minha casa. Já solicitei formalmente a Light, mas nunca fui atendido. Eu até tinha um relógio do modelo antigo e eles vieram trocar por um aparelho novo e nunca mais voltaram”, lembrou Jhonatas.

Não é só Jhonatas que enfrenta a falta de relógio em casa. Sem o aparelho, moradores acabam recorrendo ao “gato” para ter acesso à eletricidade, por negligência da Light. Por isso, a rede que abastece a Rocinha sofre com quedas no fornecimento de energia elétrica devido a sobrecarga causada pelas muitas ligações clandestinas. Sem controle e manutenção das instalações, é comum ocorrer apagões em diferentes localidades.

A empregada doméstica, Deise Marques, 38, mora em uma localidade na parte alta da Rocinha. Quando ela vai trabalhar, desliga todos os aparelhos eletrodomésticos das tomadas com medo de queimarem devido ao inadequado serviço de energia elétrica. O microondas comprado há três meses é o item que recebe mais atenção. Mesmo com garantia, ela teme perder o produto e não conseguir outro, porque não tem como comprovar o prejuízo com a central de atendimento da Light. Embora ela tenha relógio e pague a tarifa social, Deise não conseguiu ser ressarcida pela concessionária quando um liquidificador queimou em um dia que o fornecimento de energia elétrica sofreu quatro interrupções seguidas, como também é rotina em outras favelas.

Nos primeiros três meses de 2021, a Light registrou prejuízo líquido de R$41,8 milhões, após ter lucrado R$166,7 milhões no primeiro trimestre de 2020. A queda nos lucros não significa que a culpa seja das comunidades. Mas no balanço de resultados divulgado no site da empresa, a Light afirma que criou uma nova estrutura dentro da empresa para se relacionar com as comunidades, como já acontece em concessionárias que servem outros municípios. Existe um plano de trabalho dividido em três vertentes: “relacionamento estrutural com uso de eficiência energética, conscientização, educação [ambiental] e geração de renda para reverter o contexto socioeconômico desfavorável; ações imediatas de curto prazo, como regularização, retorno da leitura e entrega de contas, atendimento emergencial sob demanda e aumento do cadastro na Tarifa Social”.

Light escolheu três comunidades na Zona Sul do Rio de Janeiro para receber um projeto piloto, Babilônia, Ladeira dos Tabajaras e Chapéu Mangueira, todas localizadas no bairro de Copacabana.

Para isso, a Light escolheu três comunidades na Zona Sul para receber um projeto piloto, Babilônia, Ladeira dos Tabajaras e Chapéu Mangueira, todas localizadas no bairro de Copacabana e Leme. Segundo a companhia, há uma comunicação contínua com 180 lideranças comunitárias. Se der certo, o projeto será expandido para outras comunidades atendidas pela empresa.

Entre 2019 e 2021, enviamos 7 pedidos de informação à Light por e-mail para apurar interrupções e a modernização da rede de abastecimento de energia elétrica na Rocinha. Nenhum e-mail foi respondido até hoje.

Sobre o autor: Michel Silva é jornalista pela PUC-Rio, 26 anos, nascido e criado na favela da Rocinha. Em 2013, ajudou a fundar o jornal Fala Roça, com versão impressa e digital. Já trabalhou com memória e fotografia no Instituto Moreira Salles, foi apurador de informações na Record TV Rio e, em 2016 a 2017, atuou como correspondente local do The Guardian. A partir dessa experiência, também participou da fundação do Favela em Pauta. Também é integrante do USBEAlumni.

Sobre a artista: Anna Paula Rodrigues é designer e ilustradora freelancer, formada em desenho industrial pela UFRJ. Anna Paula—que atua com a questão antirracista quanto a estética e beleza—trabalha como designer gráfica em diversas ONGs do Rio de Janeiro.

Esta matéria faz parte de uma série sobre justiça e eficiência energética nas favelas do Rio.


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