Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.
No dia 18 de maio, Dia Internacional dos Museus, o Grupo de Trabalho Memória e Cultura da Rede Favela Sustentável (RFS)* organizou uma live intitulada “Favelas, Memórias e Pandemia: Um Guia das Nossas Vivências”. O objetivo da live foi apresentar o Guia de Museus e Memórias, realizar um tour em museus que fazem parte do Guia e debater sobre a memória na pandemia.
O evento contou com a presença de lideranças comunitárias e aliados que trabalham na preservação da memória coletiva das favelas: Maria da Penha, moradora da Vila Autódromo e representante do Museu das Remoções; Lourenço Cezar da Silva, professor e diretor do Museu da Maré/CEASM; Emerson, músico, ativista social e representante do Museu do Horto; e Adilson Almeida, presidente e diretor da Associação Cultural Quilombo do Camorim (ACUQCA).
Os quatro palestrantes se apresentaram ao público de 250 pessoas entre Zoom e Facebook Live, sob a moderação de Beatriz Carvalho (Mulheres de Frente), com a participação de Luiza de Andrade (Museu das Remoções) e Igor Valamiel (facilitador do GT Memória).
“Muito já se perdeu das memórias e histórias de comunidades, favelas, guetos e periferias”, disse Maria da Penha, ao apresentar o Guia em sua primeira fala.
“O Brasil não teve o cuidado e a atenção devida em preservar na íntegra a memória dos povos originários, dos negros e da população pobre, que sempre colaboraram na construção e no desenvolvimento desse país.”
O Guia dos Museus e Memórias
O recém-lançado Guia de Museus e Memórias é uma iniciativa do GT de Memória e Cultura da Rede Favela Sustentável. “O Guia começou a ser idealizado ainda antes da pandemia, com o objetivo de facilitar o acesso às informações de quem quisesse conhecer e visitar os museus”, contou Luiza de Andrade, que participou da construção do projeto de museologia social. “Ao longo do ano passado, apesar da pandemia, colocamos esse Guia em prática. Ele começa com um prefácio, seguido pela apresentação dos projetos, sendo ao todo 26, que estão listados do mais antigo para o mais recente. Em seguida, temos um mapa mostrando a localização de cada museu. E, por fim, temos textos sobre o tema dos museus.”
O intuito foi montar o Guia de forma clara. “Queríamos que o texto fosse de fácil leitura e acessível para o leitor entrar em contato”, explicou Luiza. “Essa ferramenta também poderia ser interessante em sala de aula, principalmente de escolas públicas, para os alunos conhecerem mais sobre esses museus, saberem que eles estão em suas comunidades, que não é algo distante da realidade deles. Esse Guia também é importante para que os próprios museus se conheçam melhor entre si.”
O impacto histórico e cultural do Guia não pode ser ignorado, visto que ele traz luz a diversos projetos que resgatam a identidade da população e que são constantemente desvalorizados pela sociedade. “Essa publicação busca mostrar as riquezas e saberes desenvolvidos ao longo dos anos, por projetos que valorizam a memória das favelas, quilombos e periferias cariocas, formados com o intuito de dar visibilidade às suas causas e lutas diárias, muitas vezes recebendo apoio de profissionais de várias áreas, possibilitando assim o fortalecimento e a união de coletivos”, contou Maria da Penha no vídeo de apresentação do Guia.
No vídeo de apresentação, Maria da Penha também destacou a importância e a força política dos museus que integram o Guia. “Os museus comunitários e sociais utilizam de sua própria cultura, que muitas vezes lhe é negada ou menosprezada pela sociedade. Através da memória dos moradores, esses museus expandem seus conhecimentos, transformando-os em ferramenta de luta. Eles geram práticas sustentáveis, que possibilitam a permanência da comunidade em seu território, possibilitam a preservação de seus costumes e hábitos e reafirmam a existência dos moradores enquanto protagonistas de suas próprias histórias”, e foi além, ao dizer que “esses [são] espaços de resistência e reexistência, são o legado dos seus idealizadores e também se tornaram patrimônios do bairro, da cidade, do país, que devem ser respeitados e preservados por toda a população. Lembrando que memória não se exclui, não se remove!”
Tour pelos Museus Comunitários
Na sequência, foram realizados tours virtuais e apresentações de quatro projetos que integram o Guia. O Museu das Remoções na Vila Autódromo, Zona Oeste, foi o primeiro a fazer um tour virtual, representado por Maria da Penha. Foi apresentado um vídeo do Museu, contando sua origem e em seguida Maria da Penha contou um pouco de sua história com o Museu.
“O Museu das Remoções nasce em meio às demolições e escombros num momento conturbado para nós moradores que travávamos uma batalha para permanecer em nossa comunidade.” disse Maria da Penha no vídeo. “O Museu das Remoções é o nosso legado, nosso patrimônio. Contamos nossas histórias. Nos esforçamos para preservar as nossas memórias. Estamos em constante aprendizado, nos apropriando de uma cidade que um dia nos foi negada, mas [que] também é nossa.”
“Em 1992 houve a primeira ameaça de remoção e fomos resistindo, lutando, e eles não conseguiram nos tirar”, frisou Maria da Penha. “Nós sabíamos que não deveríamos sair. A gente construiu também essa cidade, este país. Nós trabalhamos, pagamos nossos impostos. Não é justo que tenhamos que sair das nossas casas, que trabalhamos para construir.” Ela também contou que no início, os moradores não tinham entendimento do que seria o Museu. “Eu nunca imaginei que faria parte de um Museu, porque na minha ignorância eu achei que só quem merecia um museu eram aqueles que tinham algum legado na política ou na história. A gente pobre não tinha esse direito de contar a nossa própria história. Para a minha surpresa, eu descobri que lutando pela minha casa, estava lutando pela minha história e pelas minhas memórias.” Neste dia 18 de maio, o Museu das Remoções completou cinco anos de existência.
Em seguida, o Museu do Horto, da comunidade do Horto, no Jardim Botânico, Zona Sul, foi representado por Emerson, que trouxe slides com imagens e apresentou o museu, trazendo também o impacto da pandemia sobre o projeto. “Fizemos uma re-evolução do Museu com a pandemia. Amor sobra, mas infelizmente as estruturas não são os ideais para o funcionamento dos museus”, conta ele. “O Horto também passa por problemas de remoção por órgãos federais, ameaçando 621 famílias.”
Por limitações e potencialidades de território, o Museu do Horto se autodeclara como um “museu de percurso: há um patrimônio material e imaterial nos percursos. Cada percurso tem suas particularidades e dimensões específicas. A comunidade do Horto é histórica e constitutiva da cidade do Rio e do Brasil”. O Museu, inaugurado em 2011, conta com registros de muitas gerações, além de realizar mutirões e ações ecológicas, pois, segundo Emerson, há uma preocupação muito grande em dar continuidade ao cuidado com a natureza que seus ancestrais sempre tiveram. “Hoje vemos tudo o que o Brasil vem sofrendo. O mundo com o aquecimento global, desmatamento, poluição. O planeta Terra clama por ajuda. É importante que a gente passe isso para as futuras gerações.” Além disso, o museu conta com projetos com escolas, diversos patrimônios arquitetônicos e realiza percursos religiosos, oficinas e eventos.
A Associação Cultural Quilombo do Camorim foi a próxima a ser apresentada, representada por Adilson. Ele conta que a Associação surgiu do quilombo que foi construído ali em 1574, no antigo Engenho do Camorim, no Maciço da Pedra Branca, Zona Oeste. “Um dos primeiros fujões da época é da minha família, eu tenho muito orgulho disso. A primeira resistência deles foi chegar no local, trabalhar e fugir”, conta Adilson. “O Quilombo do Camorim, além de ser um museu ao ar livre, é uma faculdade de formação de todas as profissões. A gente tem que fazer essa ligação de passado, presente e futuro. Falamos sempre do passado do europeu, mas temos que falar de quem fez valer a história, quem construiu essa história.”
Adilson conta que o Quilombo do Camorim é constantemente ameaçado pelas remoções, mas que continuam com muita luta. O quilombo possui várias hortas a fim de “ensinar a comunidade a produzir o próprio alimento”. Em 2017, o projeto deparou-se com achados arqueológicos na região, encontrando artefatos do século XVI e XVII, o que trouxe um material riquíssimo para o museu do local. “Nós também temos um trabalho com as escolas, para que as crianças possam entender a sua própria história e identidade. Temos que resistir, para existir a cada dia”, completa Adilson. Isso sem mencionar o potencial ecoturístico do Quilombo do Camorim.
Por último, o Museu da Maré, no Complexo da Maré, Zona Norte, trouxe sua apresentação com um vídeo e a apresentação de Lourenço. No vídeo, uma campanha de apoio ao museu foi divulgada. “A gente acredita que a memória é um direito universal e que as pessoas que moram na favela, não são apenas vítimas da violência, são sujeitos de suas histórias e produzem bens culturais com valor estético, material e imaterial.”
Lourenço conta que a campanha lançada no vídeo foi um sucesso. “Arrecadamos mais de R$100.000. A gente não esperava, ainda mais em um período de pandemia. Isso nos deu uma energia, porque já é difícil manter o museu aberto com pandemia”, disse ele.
“O Museu da Maré surgiu com um grupo de jovens que recebeu uma incumbência da Igreja Católica de filmar as vistas da Igreja, isso lá nos anos 1980. Aí se empolgaram, viraram a câmera um pouco para a rua, se perderam na rua com essa câmera e começaram a filmar pontos de macumba, carnaval, festa junina.” No entanto, o Museu surgiu oficialmente só nos anos 2000 e desde lá se mantém firme e representando a comunidade.
“Isso que estamos fazendo aqui, é um trabalho de resistência, contando a história que se perdeu nas últimas centenas de anos. Há um sentimento de mágoa, pois a gente que é negro, a gente perdeu a nossa memória, a nossa história”, frisou Lourenço. Segundo ele, a mentalidade dos governantes tem que mudar, pois o trabalho é necessário: “O poder público usou nossa mão-de-obra barata para construir nossa cidade e agora ignora as nossas memórias. A gente não tem dinheiro, a gente tem as nossas memórias, as nossas histórias. O Guia é um instrumento. Temos que valorizar os nossos museus”, finaliza.
A Importância da Preservação da Memória na Pandemia
Os convidados, já na parte final da live, elaboraram sobre as estratégias de preservação da memória em favelas e periferias em tempos de Covid-19 como prioridade, mesmo num período de necessidades muito mais urgentes, como a pandemia da fome, o desemprego, a deficiência das políticas públicas emergenciais de transferência de renda e o consequente aumento da miséria e da pobreza extrema. Neste momento tão delicado de altos números de casos de contaminação por coronavírus nas favelas, com elevada subnotificação oficial, problemas relacionados à vacinação, negligência generalizada às medidas de enfrentamento à doença e necropolítica como política pública, é fundamental que os moradores de favelas e periferias se mobilizem para contar suas narrativas, preservando a memória coletiva das favelas em meio à crise humanitária.
“Em relação a memória do Horto, temos um HD que guarda todos os documentos. Estamos tentando usar a internet, redes sociais, para manter as memórias nessa pandemia”, contou Emerson, do Museu do Horto.
Adilson também contou suas estratégias no Quilombo do Camorim: “Nós temos muitos materiais guardados: fotos, vídeos, tudo registrado. Temos tudo em PDF. Mas não podemos falar só da memória do Museu, mas sim da comunidade. Estamos dando muita assistência às famílias, às crianças. Apoio psicológico para as crianças, tirando elas da ociosidade. Estamos guardando tudo isso em HDs”.
A partir dessas colocações, questionamentos foram feitos pela platéia. Kelly Tavares, guia de turismo, questionou sobre possíveis parcerias para criação de uma rede entre guias de turismo e museus comunitários, a fim de fortalecer ambos os lados. Emerson e Adilson defenderam que essa parceria seria benéfica, mas que sempre se precisaria contar com os guias locais. “Aconselho que quem trabalha com turismo, conheça sempre um guia local, de base comunitária para ter uma segurança para o grupo”, disse Adilson. Lourenço sugeriu que a ideia fosse ainda mais longe: “Acho que podíamos fazer um curso com uma parceria de alguma universidade de turismo, falando dos nossos espaços de memórias. Ter um coletivo desses guias para que a gente possa bolar um itinerário”.
Monica Xavier, ativista e facilitadora do GT de Geração de Renda da RFS, questionou sobre as dificuldades econômicas enfrentadas na pandemia. Adilson e Emerson especialmente contaram de seus problemas com a crise. “Aqui tivemos o pior impacto social com a pandemia, porque muita gente perdeu os seus empregos. Mães perderam seus empregos, os filhos ficaram em casa por conta das escolas fechadas. Então fizemos muito nessa luta, ajudando com alimento, álcool gel, máscaras. O impacto foi grande, sobretudo com as vidas perdidas”, contou Adilson.
A live terminou sob muitos elogios e repleta de esperança com relação aos novos projetos.
“Temos que continuar e esperar por dias melhores”, finalizou Maria da Penha.
Assista à Live Completa Aqui:
*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são projetos da Comunidades Catalisadoras. A RFS tem o apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.