A Resistência Racial do Grupo Código: Performance Realista e Ficcional em Japeri [VÍDEO]

Arte original por Raquel Batista
Arte original por Raquel Batista

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Esta matéria faz parte da série antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021—Enraizando o Antirracismo nas Favelas: Desconstruindo Narrativas Sociais sobre Racismo no Rio de Janeiro.

Abdias do Nascimento transformou sua vida em um combate fervoroso ao racismo. Não bastava para um dos grandes intelectuais brasileiros ser ativista, político, professor universitário, jornalista, artista plástico, escritor e dramaturgo. Ele era também ator em um palco vazio de representatividade. Era uma época onde atores brancos se maquiavam para a cor da pele ficar mais escura, pois papéis de personagens negras até existiam aqui ou acolá. Mas os atores contemplados precisavam se “adaptar” à composição étnica exigida. Para “interpretar preto”, naquela época, só com uso de maquiagem, o famoso blackface, tão criticado pelos movimentos negros. Era 1941 e em peças de grande sucesso como O Demônio Familiar (1857), baseada em uma comédia de três atos de José de Alencar, ou Iaiá Boneca (1938), escrita por Ernani Fornari, os papéis de pessoas negras—que logicamente deveriam ter sido destinados a atores negros—eram representados como caricaturas grotescas. Caras brancas pintadas de preto. 

Retornando de uma viagem à Lima, capital do Peru, em 1941, Abdias estava decidido a fazer um teatro 100% Negro. Engajado a estes propósitos, surgiu, três anos depois, em 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro (TEN), que se propunha a resgatar os valores da cultura afro-brasileira. Seus primeiros alunos foram recrutados entre operários, empregadas domésticas, favelados sem profissão definida e modestos funcionários públicos. No primeiro ano de existência, o TEN já tinha perto de 600 alunos. O sucesso incomodava os racistas. Peças cotidianamente mais fiéis à nossa realidade cultural, encenadas pela companhia—como Filhos de Santo (1948), de José Morais de Pinheiro, ambientada no Recife e que entrelaça questões do misticismo candomblecista com a história de trabalhadores grevistas perseguidos pela polícia, ou ainda Anjo Negro (1946), de Nelson Rodrigues, que focaliza sua trama no enlace matrimonial de um preto com uma branca—foram censuradas e perseguidas, pela sociedade e pela mídia. 

Se não fosse pelo Teatro Experimental do Negro, um grande precursor de sua época, talvez as artes cênicas e outras formas de expressão cultural protagonizadas por negros e negras hoje em dia ficassem restritas a guetos. O certo é que o TEN de Abdias do Nascimento possui grandes e essenciais proximidades com um grande expoente das artes cênicas negras atual, que atua na Baixada Fluminense: o Grupo Código. Na cidade de Japeri, o engajamento e a militância, através do teatro, estão fincados no território—que tem uma densa realidade política—numa quase completa impossibilidade de se dissociar da realidade local através de liberdades poéticas, lúdicas ou escapistas. Mesmo que elas existam no roteiro, prevalece um cotidiano inescapável.

Logo CódigoParte do cotidiano inescapável do Grupo Código, que completou 15 anos em 2020, está em sobreviver com a sua produção cultural nesses tempos de pandemia. Formado majoritariamente por moradores negros e periféricos, o grupo é um misto de companhia e oficina de teatro, ONG e centro cultural. O Grupo Código totaliza mais de onze espetáculos em seu repertório, dos quais a grande maioria são construções de narrativas sobre os corpos periféricos, femininos e negros, em suas mais variadas dimensões. Então pergunta-se: como trabalhar elementos “ficcionais” no cotidiano de personagens que pouco se distanciam de uma realidade que extrapola elementos perversos como racismo, machismo e a criminalização da pobreza? É possível que outras realidades para além de suas vivências/experiências possam servir de laboratório? O coletivo busca romper com essas barreiras. 

Parte dessas, digamos, inquietações, já foram investigadas. O Código foi um dos coletivos abordados na tese de doutorado de Marina Henriques Coutinho, intitulada A Favela como Palco e Personagem e o Desafio da Comunidade-Sujeito, publicada em 2012. A teste buscou entender produções artísticas com base nas diversas relações entre teatro e comunidade e como isso influencia diretamente nos processos criativos desenvolvidos por essas relações. A partir dessa relação de envolvimento com o território, surge o conceito de “teatro atravessado”, elaborado pelos teóricos José da Costa e Cristophe Bident, em que outras performances midiáticas e artísticas—dança, som, vídeo, música, novas tecnologias, artes plásticas, etc.—se misturam ao teatro. O local da encenação é livre: tendas, centros comerciais, vagões de trens, praças públicas, ruas, barcos, ônibus, etc. A partir daí, desenvolvem-se mecanismos por meio de ações específicas como a inserção do contexto social na estrutura dramatúrgica e estética, o que influencia os resultados cênico-dramatúrgicos do espetáculo. 

Integrantes do Grupo Código prestes a encenar o espetáculo itinerante Yaperi. Divulgação de Patrick LimaFoi o que aconteceu com a montagem de Yaperí, Aquilo Que Flutua (2017), uma concepção artística do Ponto de Cultura Peneiraorganização fomentadora de práticas multiculturais reconhecida pelo Ministério da Cultura—em intercâmbio com o Código. Yaperí é uma poesia que homenageou a cidade na forma de uma peça itinerante, que circundou algumas de suas ruas e culminou na praça principal, onde a estética e a simbologia remontam a elementos populares do cotidiano, como os camelôs dos trens da SuperVia. Na sua estreia, em agosto de 2017, a construção coletiva aconteceu entre atores e parte da população local.

Um outro espetáculo, Trilhos, surge através de um edital de novos talentos da dramaturgia criado pelo SESI/FIRJAN, cujo texto é assinado pela dramaturga Suellen Casticini, moradora de Mesquita. Nas narrativas das personagens femininas inseridas no universo dos vendedores ambulantes dos trens, passando pelo sistema prisional até o mercado da fé, vender é trabalho solitário, apenas um acréscimo em suas duplas jornadas. Na peça, um camelô que mata acidentalmente um colega de trabalho é preso e vira pastor. É uma forma de criticar como determinadas igrejas influenciam o poder em algumas cidades.

Nil Mendonça. Foto de Danilo SérgioYaperí e Trilhos tiveram a participação da atriz Nil Mendonça. Nascida na região central da cidade do Rio, no bairro do Estácio, aos 7 anos a família de Nil se mudou para Japeri, onde mora até hoje. Desde pequena já se envolvia com atividades artísticas. Moradora do distrito de Engenheiro Pedreira, uma área considerada rural, sentiu falta de oportunidades que pudessem desenvolver suas aptidões culturais. Só foi redescobrir o teatro quando voltou aos estudos e, na escola, conheceu um professor do corpo artístico do Grupo Código que oferecia oficinas no local. Antes dos palcos, ganhou intimidade com as letras na redação do site Japeri Online, um dos pouquíssimos veículos de comunicação da região. 

Nil foi indagada sobre as duas peças das quais participou, que dissecam a realidade da Baixada Fluminense e de sua população, e também sobre a “não distinção” entre fatos e “ficção” na composição cênica de determinados personagens que ela interpretou nas peças do Grupo Código. Ela respondeu:

“Como atriz, você precisa fazer escolhas, sobre o que fazer em determinada atuação, que pesquisas precisam ser feitas… E eu priorizo a produção teatral feita por negras e negros e nas periferias. Pois é importante, dentro de seu processo artístico, a identificação sobre a qual você está colocando. Eu priorizo o corpo negro e periférico que está atuante naquele momento. Embora eu me sinta confortável por interpretar papéis que tenham a ver com minha realidade, também acredito que devemos ocupar espaços que precisam ser ocupados. Precisamos reverberar as várias formas de teatro que temos na Baixada e no Rio como um todo.” 

Um “Sistema” Democrático?

Constantin Stanislavski (1863-1938), ator e pedagogo russo, criou um sistema de preparação para a atuação de atores e atrizes que estimula o realismo psicológico e a vivência de emoções autênticas em cena. O método emprega uma ênfase excessiva na memória emocional, reconstruindo a experiência pessoal dos atores para uso na representação. Ele chegou à conclusão de que o ator deve parecer o mais possível com a vida real. Quando papel e ator estão conectados, o papel ganha vida.

Nem de longe contemplava atores e atrizes negros e negras de áreas periféricas da Baixada Fluminense, algo inimaginável em seu tempo histórico. Nem foi pensando para um público não branco, não eurocêntrico. Mas é inegável que o sistema permite explorar possibilidades de aproximação entre as vivências proporcionadas por episódios de preconceito racial ou de classe e a construção psicológica de personagens negros ou periféricos, interpretados por indivíduos oriundos dos territórios. A atriz Juliana França explica:

“Nos últimos trabalhos que participei, a ficção e realidade infelizmente se misturaram muito. É sempre importante tentar entender até onde essa realidade pode ser substrato para a criação. A realidade é muito dura e eu preciso ficar sempre muito atenta que aquela personagem é uma criação que reflete uma realidade ainda muito desigual. Mas não sou eu. Assim consigo uma margem para me distanciar e olhar de fora o que estou criando e o que estou sentindo… Em uma sociedade onde os marcadores sociais estão inscritos no seu corpo, acho difícil dissociar uma coisa da outra. Afinal, é um corpo de uma mulher preta. Meu corpo é bandeira de mim mesma. A militância acontece de várias maneiras distintas, acredito que as mudanças acontecem nas pequenas e nas grandes fissuras. Então, quando estou em um trabalho com uma galera majoritariamente da Zona Sul do Rio de Janeiro e proponho que as gravações aconteçam também no território que vivo, ou seja, Japeri, Baixada Fluminense, e isso se concretiza, uma fissura se dá. O deslocamento acontece.”

Em 2009, Juliana foi convidada para fazer parte da companhia profissional do Grupo Código. E esteve em praticamente todas as montagens do Grupo desde então. Ganhou prêmios em festivais de teatro como atriz coadjuvante. Em 2015, começou a estudar para tentar se inserir no mercado audiovisual. Em 2019 protagonizou seu primeiro curta metragem, Neguinho, de Marçal Viana, onde conquistou mais de cinco prêmios por sua atuação. Roteirizado e dirigido por Marçal, o filme trata exatamente sobre a falta de representatividade e a segregação racial no ambiente escolar. Inspirado em um caso real, ocorrido em Duque de Caxias, a narrativa trata de uma professora que pede para que uma mãe corte o cabelo estilo Black Power do seu filho supostamente em nome da higiene, pois o cabelo Black seria sujo na visão racista da professora. Uma forma de “higienização” social e estética.

Juliana explica que, para interpretar Jéssica, personagem do filme Neguinho, chegou a criar uma lista com músicas que ela considerava que seriam da predileção de sua personagem: “Sempre antes de começar a gravar, eu colocava os fones e mergulhava no mundo da Jéssica que passava a ser o meu mundo também. Óbvio que depois do ‘corta’ ainda ficava algum resquício, mas eram mais fáceis de serem diluídos”.

O Adeus à Rita Diva

A pandemia do novo coronavírus mexeu com corações e mentes dos alunos, funcionários e demais colaboradores do Grupo Código. Entre articular e mobilizar ajuda humanitária em forma de distribuição de cestas básicas, que incluíam água potável, material de higiene pessoal e máscaras, e tentar equilibrar as contas por meio de auxílio financeiro para iniciativas culturais via Lei Aldir Blanc, todos tiveram de lidar com a perda de Rita Diva. Uma das fundadoras do Grupo Código, Rita foi mais uma vítima fatal do coronavírus e morreu em abril de 2021, aos 41 anos.

 

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Rita de Cássia da Silva, filha de faxineiro e empregada doméstica, era também educadora. Coordenou uma unidade de educação infantil na cidade de Japeri. Era muito atuante tanto na cena cultural da cidade quanto nos movimentos políticos e sociais. Organizou, no início da pandemia, um grande movimento de arrecadação de roupas e alimentos. Em 2021, Rita assumiu a Secretaria de Cultura, na gestão da Prefeita Fernanda Ontiveros (PDT). Se vestia de Papai Noel no Natal e de Coelho da Páscoa. Nil conta que “Rita fazia com que as pessoas de Japeri acreditassem em algo. Eu tenho uma relação muito maternal com ela, sempre cuidando de todo mundo”.

“Rita Diva sempre foi a pessoa mais próxima que tive no Código, a única capaz de substituir minhas lágrimas por sorrisos. Foi com sua energia e vontade de viver que passei a olhar para a vida com esperança. Os sentimentos que ela me transmitia uniam-se à possibilidade que o Código trazia de concentrá-los em trabalhos artísticos. Foi quando comecei a investir mais na escrita poética e a me aventurar em frente às câmeras”, diz o coordenador de comunicação do Grupo Código, Patrick Lima, que estreou em 2017 como produtor audiovisual, finalizando o documentário O Negro em Japeri, fruto de um desejo de retratar positivamente a cidade com enfoque no Dia da Consciência Negra.

Entre 2019 e 2020, Rita Diva encenou a peça Agbara (“potência” na língua iorubá), espetáculo que abordava a gordofobia, uma realidade que conhecia muito bem, a resistência da mulher negra e o feminismo negro diante de uma sociedade patriarcal.

No dia 3 de abril deste ano, data da morte da atriz, Japeri Online fez uma live especial sobre a trajetória de sua carreira. Em agosto, sua militância, dedicação pela arte e o amor pela vida, amigos e pela própria Japeri resultou em mais uma homenagem. Uma premiação realizada pela Secretaria de Cultura de Japeri, no âmbito da Lei Aldir Blanc e com os recursos Fundo Municipal de Cultura, foi batizado com o nome dela. O Prêmio Rita Diva—que contemplou 60 produções culturais individuais desenvolvidas em Japeri, em diversas áreas com o valor de R$2.500—representou a continuidade do sonho da mulher que dedicou sua existência à educação e ao teatro, sempre com sorriso no rosto. Seu legado agora tem continuidade naqueles que foram cativados por seu amor e energia. Mulher negra, gorda e periférica, Rita dizia que enquanto houvesse opressão, ela seria resistência. Quem sabe a vida não imita a arte mais uma vez e tenhamos, em breve, uma peça do Grupo Código nos inspirando a sermos mais Rita Diva?

Sobre o autor: Fabio Leon é jornalista, ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.

Sobre a artista: Raquel Batista é artista visual e trabalha como fotógrafa e ilustradora. É estudante na Escola de Belas Artes da UFRJ, mulher negra e moradora da Zona Oeste do Rio. 

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