Como os Moradores em Situação de Rua Foram Impactados—e Atendidos—Neste Inverno?

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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas. 

A estação mais fria do ano, seja onde for, o inverno traz noites mais longas e dias mais curtos. Também pode trazer ventos fortes, neve, geadas, e nevoeiros, com impactos diferentes em regiões ao redor do mundo. No Brasil, o inverno começa em 20 ou 21 de junho e termina em 22 ou 23 de setembro. Este ano o inverno teve início em 21 de junho e terminou em 22 de setembro.

Em meados de julho de 2021, o Rio de Janeiro marcou baixas temperaturas. No bairro de Jacarepaguá os termômetros chegaram a 8,4ºC e no Alto da Boa Vista apontaram 9,8ºC. Essas baixas temperaturas geram um impacto muito forte para a população em situação de rua, pois é muito difícil se abrigar do frio, o que aumenta a vulnerabilidade desta população.

Neste texto, iremos apresentar algumas iniciativas da sociedade civil, no Rio de Janeiro, que se mobilizam para realizar ações de solidariedade às pessoas em situação de rua. Este ano, a população de rua teve sua condição agravada por conta do inverno e do cenário pandêmico.

A Pastoral do Povo da Rua e Suas Ações de Suporte

Nas décadas de 1970 e 1980, foi criada a Pastoral do Povo da Rua, da Igreja Católica em São Paulo e Belo Horizonte. Esta iniciativa implantou casas de assistência aos então moradores em situação de rua e organizou movimentos de representação popular, dando suporte por exemplo aos catadores de materiais recicláveis.

Segundo Tânia Maria Ramos, assistente social da Pastoral no Rio de Janeiro, a iniciativa teve início no ano 2000, através do forte apelo de Dom Eugênio Sales, que, na ocasião, solicitava que cada paróquia do Rio abrisse as portas às pessoas em situação de rua. Tânia relata que a Pastoral do Povo da Rua trabalha com os fundamentos do Decreto 7.053/2009, que estabelece a Política Nacional para a População em Situação de Rua, assegurando seus direitos constitucionalmente. O decreto foi consolidado em conjunto com a sociedade civil, poder público e usuários da própria Pastoral, ouvindo a demanda de cada um. 

Tânia conta que a base das ações é o direito e o acolhimento: “Esta mulher e este homem que estão na rua têm uma história, têm a sua própria realidade vigente naquele momento. Essas pessoas não brotaram das calçadas, alguma coisa as levou para as ruas. É dentro dessa retomada de dignidade que a gente constrói diretamente com eles. Nós temos como missão da Pastoral trazer esse morador para que [ele] possa ter a sua grande dignidade refeita, sendo redescoberta. Quando alguém vai para a rua acaba perdendo muito o laço familiar, há um rompimento. A nossa proposta é fazer com que este homem refaça os laços afetivos. Não é só a droga que leva ele para a rua, existem inúmeras situações como o desemprego, a [falta] de moradia, [que] é algo fundamental. Muitos estão nesta situação por não ter uma casa, por não ter dinheiro para pagar o aluguel. E ainda temos a questão de brigas familiar”.

A pesquisa População em Situação de Rua em Tempo de Covid-19realizada com voluntários da Pastoral de Povo da Rua e da organização social Porto Com Vida, junto ao Núcleo de Estudos em Saúde e Gênero do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio em parceria com a Universidade de Dundee—trouxe dados específicos sobre a população em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro. Ao todo foram 304 entrevistados: 259 homens, 45 mulheres, sendo uma trans. O estudo foi realizado durante os meses de agosto, setembro e outubro de 2020, em toda cidade do Rio de Janeiro.

A pesquisa levantou que a maioria da população em situação de rua tem mais de 40 anos, mas o fator idade é variável. No Centro se encontra moradores mais jovens enquanto na Zona Sul, mais velhos. No quesito raça 221 se declararam pretos ou pardos (73%). Quanto ao tempo nas ruas, a maioria está há mais de cinco anos. No Centro estão vivendo há menos tempo e na Zona Oeste e na Zona Sul as pessoas estão mais tempo em situação de rua. Apenas 61 pessoas (28%) estudaram além do ensino fundamental. Em relação a renda, os números mostram que dos entrevistados 218 pessoas disseram que trabalham em reciclagem ou fazendo bicos (72%).

Tânia explica: “Como podemos falar da dor de uma pessoa se você não a escuta? O pessoal da população de rua tem um jargão muito interessante, eles dizem: ‘Não falam de mim sem mim!’ Por causa disso, fizemos essa pesquisa em tempos de coronavírus. A partir dessa pesquisa, podemos ajudar essas pessoas terem melhores condições de vida. Construímos o estudo em formato de desenho, em quadrinhos, para que o morador [de rua] possa entender a linguagem. [Depois,] encontramos com os entrevistados, mostramos o vídeo e os resultados… Ano passado, a Prefeitura do Rio também realizou uma pesquisa apenas de amostragem. Mas para nós que trabalhamos na rua os dados [deles] não condizem com a realidade. A prefeitura tentou mostrar que só existem 7.272 pessoas. O número é bem maior.” 

A assistente social explica como estão as doações neste momento pós vacinação: “Logo no começo da pandemia a sociedade se mobilizou para as doações. Mas desde o começo do ano, as doações vêm diminuindo muito. Temos uma grande luta, principalmente quem entrega as quentinhas. Pois estamos em escassez de donativos. E durante o frio foi horrível. Nos últimos meses a friagem foi muito pontual aqui no Rio, a prefeitura disse que abriram as portas dos abrigos, mas os abrigos comportam apenas 2.000 pessoas. Ora se na pesquisa municipal está registrando 7.000 pessoas, então para onde iriam as outras 5.000? Não estou dizendo que a prefeitura não alojou as pessoas, contudo não foi o suficiente. A Pastoral do Povo da Rua batalhou muito para que os governantes liberassem o Sambódromo e não conseguimos. Tivemos que sair entregando cobertores e mantas térmicas produzidas com caixa de leite. Foi o que aqueceu nas noites frias”.

Pia do Bem e Combate ao Frio para os Sem-Teto

O período pandêmico causado pela Covid-19 colocou uma lupa nas desigualdades quando o assunto se refere às pessoas morando em esquinas e calçadas. Logo no início da pandemia, as principais orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), eram para ficar em casa e lavar as mãos. Nesse sentido, nasceu o projeto Pia do Bem. Um modelo de pia portátil, o projeto foi desenvolvido por mulheres para levar até a população de rua o direito de também se proteger contra o coronavírus. A primeira unidade foi apoiada pelo Sindicato dos Servidores do Judiciário Federal no Estado do Rio de Janeiro (SISEJUFE) e logo em seguida o jogador de futebol Marcelo Vieira, do time Real Madrid, patrocinou mais 100 unidades. Em uma semana foram instaladas 100 pias portáteis pelo Rio de Janeiro. 

A idealizadora do projeto, Anna Paula Rios, é presidente do Instituto Lar, uma iniciativa que oferece diversas atividades “que auxiliam as pessoas em situação de rua a recuperar sua dignidade, autoconfiança e independência”. Anna Paula relatou: “[Nós do] Instituto Lar estamos atuando diretamente no combate a fome e ao frio. No mês de julho foram 5.100 quentinhas entregues e mais de 300 cobertores distribuídos. É importante frisar que o trabalho do instituto é mantido por doações. As atividades do Instituto Lar apoiam o processo de reinserção social de pessoas em situação de rua. Essas atividades vão continuar acontecendo independente da estação do ano. As campanhas do governo não chegam a todas as pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nesse ponto a atuação de ONGs e projetos sociais se tornam indispensáveis. Não conseguimos nem mensurar como seria a vida dessas pessoas sem a atuação de ONGs e projetos, durante esses últimos meses de pandemia. Precisamos de muitas doações para conseguir atender todos que nos procuram”.

Gênero nas Ruas

As mulheres que vivem em vias públicas ainda são mais invisíveis aos olhos dos transeuntes e do poder público. Entendendo as problemáticas que envolvem gênero e raça, o coletivo de mulheres Pretas Ruas surgiu em 2019, após as fundadoras do coletivo Pamella Oliveira e Pamela Lessa, se conhecerem num evento de voluntariado. 

Pamella Oliveira, 26 anos, acredita que para agir em solidariedade às pessoas em situação de rua o afeto é o melhor caminho: “Ficamos muito preocupadas com o que estava acontecendo com outras mulheres negras. Começamos a fazer entregas com café da manhã e percebemos que a maioria nas ruas eram mulheres negras. Logo pensamos em projetos e oficinas que resgatassem e restaurassem os talentos e as habilidades delas, e assim [elas] pudessem ocupar espaços além das ruas. Nós entendemos que as pessoas ocupam as ruas de diferentes formas: têm pessoas que passam e outras moram nelas. Ficamos com a preocupação de como era a desigualdade e a violência que [elas] sofriam. Então começamos a nos mobilizar para mudar esta realidade”.

Dia de Rainha é o nome da primeira ação efetiva do Pretas Ruas, que aconteceu em fevereiro de 2020, em um abrigo de Niterói. Para a ocasião, o grupo preparou um cronograma com terapias integrativas como reiki e rodas de conversas. Ouvir as mulheres cisgênero e transgênero que estão em situação de rua, desarmou qualquer concepção das protagonistas. “A gente sempre ia com uma ideia fixa na cabeça que as mulheres não aceitariam nossas ideias, [que] seriam grosseiras. [Agora] e entendemos que não. Elas precisam vestir uma roupa para se defenderem. A gente conversa muito com a população trans, pois [esta população] sofre muita violência e por isso precisam se armar de diversas formas, principalmente no tom de voz. Fomos percebendo que estreitando os vínculos tudo isso cairia por terra. São pessoas maravilhosas, super carinhosas, muito meigas… a gente foi perdendo aquele nosso preconceito porque fomos conhecendo essas mulheres na prática”, contou Pamella.

O Pretas Ruas sempre tem uma atenção especial com o período do inverno, conta Pamella: “No ano passado fizemos uma campanha e além de agasalhos doamos sopas e caldos. Esse ano, ficamos sabendo que pessoas morreram de frio e compramos 500 cobertores e fizemos parcerias com coletivos da Zona Norte (da Penha, Vaz Lobo e Irajá); da Zona Oeste (Campo Grande) e da Baixada (Duque de Caxias), para realizar as entregas. Nossa prioridade sempre são as mulheres, mas elas nem sempre são maioria em situação de rua. No inverno sempre nos mobilizamos para atender todos os públicos e demos preferência para realizar rondas noturnas. Doamos cobertores, meias, calças e toucas. Nossa doação de cesta básica se resume a entrega para apenas 15 famílias que hoje fazem parte dos nossos projetos. Nas ações entregamos quentinhas, agasalhos e kit higiene”

Assim que começou a emergência sanitária, o Pretas Ruas lançou uma campanha de financiamento colaborativo para movimentar entregas de kits de higiene e lanches, já que as doações diminuíram massivamente neste ano. Pamella explica como a falta de novos donativos prejudicam a ajuda à população de rua: “Quase não recebemos agasalhos. Por isso nos movimentamos, fizemos a vaquinha virtual em fevereiro de 2020 e dois meses depois alcançamos a meta. Nos kits tinham shampoos, creme de cabelo, absorvente para mulheres que menstruam, para as que não [menstruam] levamos lenços umedecidos. Para nós mulheres que podemos comprar parece algo simples, mas para as meninas em vulnerabilidade não é bem assim”.

Pamella completa: “hoje o que mantém o Pretas são doações de pessoas físicas. Não temos nenhum apoio [institucional]. Fomos fortalecidas por editais voltados para a cultura que precisávamos adaptar para levar até a população de rua, porque não existem editais muito expressivos. Os financiadores não querem investir muito, pois é algo que demanda tempo e nem sempre se consegue mensurar os resultados, o que acaba afastando pessoas que estão fazendo projetos tão bacanas de despertar potências. Ficamos jogadas para o escanteio, são tantos requisitos que nem sempre vamos conseguir cumprir”.

Pretas Ruas conta com uma equipe de mais de dez voluntárias colocando a mão na massa. Premiadas com a Medalha Careli, prêmio especial de 120 anos da Fiocruz, o coletivo já ajudou 1.318 pessoas em ações sociais e 150 mulheres em situação de rua e em abrigos. Camila Pavoni, 29 anos, empreendedora, é uma das participantes nas formações dos grupos que atuam nas ruas. Ela diz: “Pretas Ruas me ensinou a ter empatia pelas pessoas, me ensinou que eu não posso desistir dos meus sonhos, de correr atrás dos meus objetivos, e a ser uma mulher melhor em tudo”.

Sobre autora: Beatriz Carvalho, cria de Vilar dos Teles em São João de Meriti, é jornalista, mídia-ativista, feminista e toca o Mulheres de Frente.


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