Em resposta ao assassinato da mãe e bebê, ainda no ventre, está em andamento o Projeto de Lei Kathlen Romeu, que proíbe a prática abusiva de Tróia e estabelece diretrizes para o uso da força no território do estado do Rio.
Assassinato de Kathlen e seu Filho, Ainda em seu Ventre
Kathlen Romeu, uma jovem negra grávida de 24 anos, designer de interiores, e seu bebê de 13 semanas foram mortos em uma suposta troca de tiros entre policiais e traficantes no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 8 de junho. Testemunhas afirmam que os policiais estavam usando uma tática conhecida como Tróia ou tocaia policial, quando invadiram ilegalmente a casa de um morador para usarem de esconderijo de tiro em meio a operação policial. Kathlen caminhava junto da avó quando foi atingida por um tiro de fuzil no peito, disparado por policiais de dentro da casa. A Polícia Militar, nas redes sociais, negou que no momento houvesse operação policial e afirmou que teria respondido a ataques de traficantes, versão negada pela família e testemunhas.
Segundo dados da plataforma Fogo Cruzado, quase 700 mulheres foram baleadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro de 2017 até 2021. Destas, 258 morreram. Entre as mulheres baleadas, 15 estavam grávidas e oito morreram. Dez bebês foram baleados ainda na barriga das suas mães e apenas um sobreviveu. Observa-se uma tendência geral de aumento da letalidade policial, mesmo durante a pandemia, mesmo depois da ADPF das favelas.
100 Dias Depois, Qual o Legado de Kathlen?
O dia 16 de setembro de 2021 marcou os 100 dias do seu assassinato e nesse período seu nome esteve presente em inúmeros espaços e territórios. Kathlen se tornou mais um símbolo de resistência frente às políticas de extermínio nas favelas. Kathlen Romeu é o nome do projeto de lei que deseja proibir as táticas de Tróia em todas as favelas do estado do Rio de Janeiro, tática de guerra que a Polícia Militar afirma não existir. Violações de direitos nas favelas do Rio de Janeiro ocorrem sob o argumento de controlar o tráfico de drogas e supostamente perpetradas para diminuir a violência na cidade. Essas violações cotidianas de direito possuem padrões de lugares e de corpos pré-determinados: as favelas, os pobres e os negros. O projeto de lei é fruto de mobilização dos movimentos sociais, do movimento negro organizado nas ruas e na ALERJ.
A idealização do Projeto de Lei 4631 foi o resultado de um trabalho que envolveu a família de Kathlen, a sua rede de apoio de amigos, vizinhos e familiares e o gabinete da Deputada Estadual Renata Souza. Segundo o gabinete, já havia alguma proximidade entre Kathlen e as lutas que o mandato ajuda a construir e apoiar. Logo que ocorreu o crime, a mãe e o marido da Kathlen foram recebidos pelo gabinete. Buscaram transformar luto em luta, como tantas outras famílias. Segundo a assessora de imprensa do mandato de Renata Souza, Paula Máiran, o debate para a formulação do projeto passou também pelas assessorias jurídica, de segurança pública e de direitos humanos, pelos assessores que vivem e atuam nas favelas e pela coordenação política. Na visão dos seus criadores, o PL incomoda porque é legítimo, necessário e existe como resposta a uma demanda incontestável por uma política de segurança pública que garanta a vida e os direitos humanos.
Nos últimos anos, têm crescido no Rio o número de denúncias graves envolvendo a prática de Tróia, pela Polícia Civil e Militar. No entanto, o emprego desta tática militar já acontece há quase duas décadas. Segundo Gabriel Siqueira, Diretor de Políticas Públicas da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ) e amigo de Kathlen:
“As Tróias sempre aconteceram. A primeira operação desse tipo foi em 2005 e vitimou na época o chefe do tráfico da Rocinha, o Bem-Te-Vi. Essa primeira operação de Tróia teoricamente foi dentro da legalidade, a Polícia Civil alugou uma casa por um tempo para ficar estudando e investigando. Essa operação teve o nome de Cavalo de Tróia e de lá para cá começou a desenvolver essa história, só que não mais dentro da legalidade. Eu ainda acho que a questão do Bem-Te-Vi foi na ilegalidade porque a polícia tem que prender e não matar. Quando essa tática acontece hoje, as pessoas da comunidade não sabem que está tendo a operação, não sabem que está acontecendo qualquer coisa. A questão é que a gente sabe que quando está tendo operação você liga pro parente, avisa no grupo do WhatsApp que tá acontecendo em tal rua, que é para sair pelo outro lado, ou para não sair de casa dependendo do tamanho da operação. A Tróia não: eles se escondem, geralmente invadem as casas, sequestram os moradores ou pegam aquelas casas em que eles sabem que o morador saiu para trabalhar, porque 99% da comunidade é formada de pessoas que trabalham muito cedo e chegam muito tarde. Então eles esperam as pessoas saírem para entrar e se esconder. Quando o tráfico monta a boca de fumo ou passa alguém que eles acham que é bandido, eles esperam o momento certo e atiram. Essas operações são ilegais e elas não têm nenhuma eficácia. Pelo contrário, elas são feitas para matar, sendo que no Brasil não há pena de morte [na lei]. As pessoas devem ser presas [e julgadas] em um estado democrático de direitos em qualquer parte do mundo.”
O PL 4631, portanto, é um marco na luta contra essa tática de morte. Ela esclarece o que é a Tróia, criminaliza essa prática e responsabiliza os policiais que se utilizem dela. Segundo o texto do projeto de lei, Tróia “refere-se ao emprego da cilada, organizada por policiais, que se escondem no interior de um território conflagrado, com o intuído de surpreender suspeitos da prática de crime, efetuando nessa ocasião o emprego de arma de fogo contra alvos específicos, quase sempre produzindo vítimas fatais, inclusive moradores. A utilização sistemática desta prática já vem sendo denunciada por organizações de direitos humanos e instituições democráticas há anos.” O PL descreve como a Tróia persiste como “violação denunciada de maneira sistemática por moradores de diversas favelas”, e continua:
“Muitas vezes, conforme relato de moradores, os agentes públicos ocupam imóveis no território conflagrado, à revelia de seus proprietários, para aguardar o momento certo de atacar os suspeitos, numa total afronta ao que se espera de uma instituição policial comprometida com os princípios e valores do Estado Democrático de Direito. Nunca é demais repisar que, em um Estado de Direito, todas as condutas das forças policiais, inclusive nas operações policiais, devem se basear na observância das leis, como também em um planejamento rigoroso, baseado em evidências e no senso de oportunidade, que preservem tanto a vida e a integridade física dos agentes públicos quanto da população do território em que as intervenções venham a ocorrer.”
Essa conduta não se encontra prevista em qualquer ordem de serviço ou orientação operacional das secretarias de estado de Polícia Civil e Militar. Sendo assim, está configurado o abuso dos agentes e infração ao princípio constitucional da legalidade, sem mencionar as violações contra protocolos e tratados internacionais que o Brasil é signatário. Os direitos à vida, à liberdade e à segurança pessoal previstos no 3º artigo da Declaração Universal dos Direitos de Humanos (DUDH), no 6º artigo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), e no 4ª artigo da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CIDH-OEA), são sistematicamente desrespeitados pelo Estado Brasileiro. Essa visão é partilhada pelo Ouvidor-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Guilherme Pimentel:
“O problema das Tróias aparece oficialmente em documentos de escutas realizadas por essa Ouvidoria pelo menos desde 2018, no Relatório Circuito Favelas por Direitos, um projeto de visita às favelas para fazer uma escuta coletiva da comunidades, sobre as principais violações de direitos cometidos por forças de segurança. O Circuito nasce no contexto da Intervenção Federal na segurança pública. Já naquela época, [foram denunciadas] as Tróias—essas tocaias feitas principalmente por policiais militares que se escondem em casas habitadas ou abandonadas, imóveis, matas, lugares escuros, lajes, comércios e igrejas—para efetuar disparos letais contra pessoas que consideram suspeitas. Esse é um dos tipos de denúncia mais recorrentes em favelas… Uma ação de tocaia para produzir letalidade é uma violação de todo o processo legal e ordenamento jurídico brasileiro.
O Ouvidor-Geral continua:
“A Tróia é uma manifestação prática do ‘bandido bom é bandido morto’. Eles pegam e analisam, julgam, condenam e aplicam a pena de morte que é proibida no ordenamento jurídico brasileiro. Infelizmente, esses casos só vêm à tona quando as vítimas são inocentes, porém os inocentes só morrem porque parte da sociedade aprova quando o alvo era uma pessoa que cometia algum tipo de crime. O problema é que esse julgamento sumário vai sempre errar. Se a gente quiser proteger os inocentes, nós precisamos não aceitar essa prática contra nenhuma pessoa já que suspeitos ou pessoas que cometem algum tipo de crime precisam passar pelo devido processo legal para impedir ou diminuir as chances de injustiças, ainda mais as irreversíveis como os casos de execução.
A gente precisa olhar a favela como titular de direitos e as Tróias como atentados à vida na gravíssima violação de direitos, que tem um monte de crime embutido ali e é um dos maiores problemas de política criminal que a gente tem hoje no Rio de Janeiro. Não é um incidente, não é um mero excesso, não é um mero abuso, é um problema grave de violação de direitos no Rio de Janeiro.”
O Gabriel Siqueira, da FAFERJ, conclui:
“Eu preferiria que a Kathlen não tivesse se transformado em uma bandeira, uma causa. Eu queria que ela estivesse aqui com o bebê dela e que a gente não precisasse falar nada sobre melhorias para as comunidades. Infelizmente a vida dela foi transformada em uma causa, dela e do bebê dela. Eu acho que a história do Brasil é uma história ininterrupta de violência contra negros e índios e isso continua para uma parcela gigantesca do nosso povo, e isso não para mesmo com todos os avanços. Ela e o bebê dela foram assassinados pela Polícia Militar, pelo Estado. A gente não tem a menor dúvida disso. Nesses 100 dias não tem um em que a gente não pense que isso é uma covardia, em que a gente não se revolte. Tem uma hora em que a emoção bate mais forte e é muito difícil. Mas a gente vai até o final das investigações. E na opinião da FAFERJ, o processo vai caminhar para uma condenação cível do Estado. O Estado precisa ser responsabilizado pelo que está acontecendo e pelo que aconteceu com a Kathlen. A polícia tem que estar dentro da comunidade para preservar a nossa vida, a nossa liberdade e segurança, e não o contrário. Por isso, a família, a FAFERJ, a Comunidade Black e a assessoria da Deputada Renata Souza junto ao Coronel Ibis protocolaram o PL Kathlen Romeu. Ele é muito importante porque fala o que é a Tróia que a polícia diz que não existe, e logo em seguida ele a criminaliza e responsabiliza os policiais envolvidos e os seus superiores. Então é um PL de âmbito completo.”
O Projeto de Lei 4631 estabelece uma orientação básica que proíbe essa prática abusiva e estabelece diretrizes mínimas para o uso da força e das armas de fogo no território do Estado do Rio de Janeiro. O PL visa garantir o respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e da própria legitimidade da atividade policial que, em todos os momentos, deve espelhar o Estado Democrático de Direito.
A incolumidade das pessoas é o objetivo da segurança pública. Ela deveria evitar o risco à vida, e garantir a proteção do patrimônio. Assim sendo, operações policiais que violam a vida, a integridade física e o patrimônio de qualquer cidadão são inconstitucionais. A forma diferenciada de atuação das forças de segurança nas favelas e nas áreas consideradas nobres da cidade indicam a violação do princípio da igualdade e da não discriminação de origem, classe, raça ou cor.
Alexandre Cerqueira, morador do Lins, Zona Norte, é formado em Relações Internacionais e desenvolve projetos de educação básica nas favelas a partir da fotografia e produção de vídeo como ferramentas de linguagem.