Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que traz conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
Há mais de 1.000 favelas na cidade do Rio de Janeiro, que desde seu surgimento, há mais de 100 anos, sobrevivem sem direito à cidadania, educação, saúde, moradia, cultura e memória. São as favelas e as periferias que sofrem com a criminalização da pobreza, a negligência do Estado em vários campos e tantas outras violações de direitos, assim como com as operações policiais que frequentemente terminam em mortes de moradores e em traumas e transtornos de saúde mental para os sobreviventes dessas políticas de morte. Situações como estas não são por acaso, afinal a maioria das populações que habitam esses territórios é negra e parda.
Tais situações são o resultado do racismo estrutural, que é quando uma sociedade se estrutura, historicamente, com base na discriminação que privilegia alguma raça em detrimento de outra—neste caso, o privilégio branco e burguês em detrimento dos pretos e favelados. As políticas vão se consolidando, e novas vão chegando, que conjuntamente resultam em dados que mostram certas classes raciais sempre saindo em pior lugar. Todos nós participamos do sistema, e consequentemente somos beneficiados ou prejudicados pelo racismo estrutural. A única forma de combater o racismo é tendo consciência e agindo de forma antirracista, ou seja, buscando intencionalmente desvendar e agir diretamente contra esse sistema.
Neste período de pandemia do coronavírus, mais uma vez, foram as favelas os espaços que mais sofreram o impacto do agravamento sanitário. Isso se trata de mais uma consequência do racismo estrutural, assim como alertou a pesquisadora e diretora da Justiça Global, a jornalista Glaucia Marinho: “Nos dados de mortalidade, em comparação com os brancos, os negros morreram mais. Nos dados socioeconômicos, os negros e as favelas sofrem mais intensamente os impactos da pandemia, sendo a maior contingência de desempregados. Uma questão elementar no início da pandemia era o acesso a água pra lavar as mãos. Se a gente olha o local de moradia dos negros—as periferias, as favelas, os subúrbios—a falta d’agua é uma constante no cotidiano. Não teve nenhuma política de regularização do acesso a esse direito que é fundamental.”
Glaucia colocou ainda que o Brasil carrega em sua estrutura uma prática que privilegia uma minoria branca e rica. Para ela, o racismo é um plano político de longo prazo da classe dominante através do Estado, para eliminar e limitar a existência do povo negro, garantindo a reprodução social do sistema da branquitude e a manutenção do jogo de forças que favorece a minoria branca sobre a maioria negra, que é 54% da população brasileira.
A pesquisadora da Justiça Global fala ainda que:
“É importante entender que o racismo estrutura a nossa sociedade e é um plano do Estado brasileiro de eliminação da sua população negra. Não existe outra explicação para tamanha violência [sem ser pela lente do racismo estrutural]. Ter todas essas políticas [de violência] ou a falta de política pública [de serviços básicos] direcionada à população negra, [faz entender que] há uma intencionalidade, que é a eliminação, fazer morrer, limitar a existência e a resistência do povo negro”.
É uma política de morte, o que o movimento negro e de favelas têm chamado de necropolítica, operacionalizada pela militarização da vida, criminalização da pobreza e racismo estrutural. São as favelas que sangram nessa guerra aos pobres racista fantasiada de guerra às drogas. É a juventude negra e favelada que mais é assassinada pela necropolítica como segurança pública. É o genocídio negro seguindo inalterado, como política pública do Estado brasileiro.
O Racismo Visto da Maré e a Imagem do Negro na Mídia
Para entender melhor essa questão pelos olhos da favela, ouvimos moradoras sobre o tema do racismo estrutural e como é vivenciar isso dentro das favelas do Rio. A bióloga Fernanda França, 35, moradora da Vila do João, no Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte, trouxe um pouco do histórico do Negro no Brasil: “O nosso país teve um longo período de escravidão. As pessoas negras eram subjugadas e tratadas de forma animalizada. A partir desse histórico, temos os resquícios disso no nosso cotidiano. Até hoje a gente vê situações de racismo”.
Fernanda ainda explica que “quando a gente pensa sobre racismo, a gente pensa em todas essas situações de preconceito racial e discriminação por parte de um indivíduo ou de um grupo contra um determinado grupo étnico ou racial. O grupo discriminado tipicamente vai estar socialmente marginalizado”.
A Maré é formada por 140.000 habitantes distribuídos em 16 favelas, no entorno da Baía de Guanabara. A primeira favela da Maré foi o Morro do Timbau, formado em 1940, construído e habitado por trabalhadores das vias expressas principais que rodeiam a Maré: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. A Maré é habitada por negros, um grande número de nordestinos que migraram para os grandes centros urbanos do país ao longo do século XX e moradores originalmente de outras favelas que sofreram remoções e foram reassentados de suas casas para o território.
Segundo o Censo Populacional da Maré, realizado em 2019, 53% dos moradores se denominam como pardos, enquanto 9% se denominam como pretos. Do percentual total, 37% dos moradores se denominam como brancos. Falar sobre racismo estrutural dentro das favelas não é uma tarefa fácil, ainda mais levando em consideração o tamanho do estigma criado por séculos no Brasil, que dificulta a auto identificação de pessoas enquanto negras e negros.
Historicamente, a imagem da população negra é estigmatizada também pela mídia tradicional, o que faz aumentar a ideia de que esta população é a que deve permanecer sem seus devidos direitos. Na maior parte do noticiário na televisão e da imprensa escrita, as pessoas negras são retratadas como “criminosas” e “marginais”, narrativas opostas às coberturas feitas com muito engajamento, esforço e dedicação pelas mídias comunitárias, que, cada vez mais, crescem nas favelas. A mídia comunitária vem tendo um papel fundamental no fortalecimento e valorização da identidade negra, indígena, da população do nordeste, mostrando que os colocados às margens pelo Estado, pela sociedade e pela mídia, são, na verdade, os construtores da favela e da cidade. Sem favela não existiria cidade no Brasil.
Porém, ao contrário de gratidão, respeito e direitos, as favelas vivenciam a criminalização de seu território, cultura e moradores. Isso parte do histórico de estigmatização da favela, em uma sociedade que nem mesmo enxerga esses lugares como parte da cidade. No entanto, é errado dizer que o Estado não está presente nas favelas, afinal, como dito anteriormente, ele de fato se faz presente: pelas operações policiais, que quase sempre terminam em morte, dentre outras violações.
O Racismo Cotidiano e Como Podemos Transformar o Debate
De acordo com Lorena Froz, 20, moradora da favela Nova Holanda, na Maré, o racismo não é só o fato de alguém ser discriminado. É uma estrutura, é algo muito maior. É para além das ofensas e supostas brincadeiras que a gente presencia cotidianamente. O racismo tem diferentes configurações e pode se concretizar de diferentes formas. Uma delas é a falta de acesso aos direitos básicos. Outros exemplos descritos por Lorena, são quando a pessoa de pele preta entra numa loja e alguém a persegue, ou quando ela não pode usar um determinado tipo de cabelo no seu emprego. É como Lorena disse:
“[Racismo] é uma estrutura que impede que pessoas de pele preta tenham acesso às universidades… que consigam ter acesso às escolas, ao emprego e que nem mesmo consigam fazer um planejamento financeiro, por falta de espaço no mercado de trabalho… Por isso, entendo que [o racismo estrutural] é maior do que aquilo que a gente consegue enxergar.”
Ainda de acordo com Lorena, é preciso falar sobre racismo e antirracismo todos os dias. É algo que deve ser mudado na estrutura da sociedade, de maneira profunda e duradoura. “Eu mesma nunca sofri nenhum ato de racismo, até porque não tenho a pele preta. Mas vivo num lugar que é muito impactado e influenciado pelo racismo ambiental e estrutural. Eu moro na Nova Holanda, a favela com a maior população preta do Complexo, segundo o Censo da Maré, 18,5% se autodeclaram como pretos. Não por acaso, é a favela que é conhecida por todos de forma pejorativa. Meu pai é um homem negro e com ele sim, já presenciei situações muito desconfortáveis.”
É importante pontuar que todas as favelas e periferias são vistas de forma negativa, em maior ou menor grau, pela criminalização da pobreza, do território e da negritude. A falta de políticas públicas voltadas a esses territórios contribui também para essa criminalização. No fim das contas pretos e favelados ficam cada vez mais à mercê da desigualdade.
Ao contrário de Lorena, Fernanda contou que infelizmente já sofreu e presenciou racismo:
“Já passei e já presenciei muitas situações racistas, o que me faz perceber [esses fatos] é esse processo de me inteirar, me informar, estudar sempre sobre o tema. É um processo sempre muito difícil porque nos fere. Falar de racismo é falar de racismo estrutural e racismo institucional. É uma falha coletiva oferecer às pessoas um tipo de serviço por causa da sua cor. As oportunidades [oferecidas] às pessoas negras são reduzidas e chamamos isso de racismo institucional, que está dentro do racismo estrutural, onde, por exemplo, a oportunidade de emprego para ele [uma pessoa negra] é mínima. [A falta de] acesso à educação de qualidade também é racismo.”
Lorena, concordando com Fernanda, termina dizendo que explicaria para um vizinho de uma forma muito simples o que é racismo estrutural: “Sabe o porquê policiais entram na favela e matam quem acham conveniente? É racismo! Sabe por que a gente tem lixo nas ruas, e por que a gente há pouco tempo que foi ter uma escola de ensino médio na Maré? É racismo. Sabe por que você vai na Zona Sul e as pessoas ficam te olhando? É racismo também”.
É importante que esse tema seja debatido todos os dias e em todos os espaços. O Brasil, que carrega em sua história práticas racistas, necessita mudar e passar a colocar a população negra como foco, garantir direitos e os territórios que habitam. Entender a população negra e de favela como parte da cidade.
“A gente precisa primeiro ouvir o que o movimento negro tem dito, tem elaborado, tem proposto e refletido sobre o Brasil e as possibilidades de mudança. Em segundo lugar, se comprometer com essa mudança real, radical, por uma sociedade que caiba todo mundo. A gente não quer que um grupo seja privilegiado em detrimento de outro grupo, a gente quer que todo mundo tenha os mesmo direitos, principalmente os direito à vida, uma vida digna”, finalizou Glaucia Marinho.
Sobre as autoras:
Gizele Martins é moradora do Conjunto de Favelas da Maré, é jornalista (PUC-Rio) e mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (UERJ). Gizele é autora de diversos livros, um deles é Militarização e Censura – a luta por liberdade de expressão na Favela da Maré. É comunicadora comunitária há quase 20 anos, ganhadora de inúmeros prêmios e homenagens, e integra a Frente de Mobilização da Maré e a Agência Palafitas.
Juliana Pinho é moradora da Nova Holanda, no Conjunto de Favelas da Maré, graduanda em Ciências Sociais (UFRJ) e Jornalismo (UCAM). Comunicadora popular e mobilizadora territorial, Juliana é co-fundadora da Frente de Mobilização da Maré, integrante da Agência Palafitas, e responsável pela gestão e planejamento do projeto Pra Elas. Atualmente, atua também na área de gestão de portfólio da Luta pela Paz.
Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.
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