Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas.
A crise ambiental pela qual o planeta está passando vem impactando todos os aspectos das nossas vidas sem mesmo reconhecemos ela como a fonte, como no caso da crise hídrica sofrida pelos brasileiros este ano. O Brasil, país com a maior reserva de água potável do planeta, tipicamente vista como de baixo risco de crise hídrica acaba de passar pela pior escassez de chuvas dos últimos 91 anos. Essa situação tende a se agravar, com estiagens previstas até 2022. Os reservatórios por todo o país atualmente se mantêm em níveis baixos, enquanto a demanda cresce. Além disso, a crise hídrica impacta diretamente no saneamento e na geração de energia do país, que é mais de 60% dependente de hidrelétricas, característica que inevitavelmente influencia na economia e nas contas de luz da população.
Em resposta à situação, o governo federal, através da Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG), instituída para a condução da crise atual, divulgou a criação de uma nova bandeira tarifária, chamada “bandeira de escassez hídrica”, que vai aumentar a conta de luz do consumidor até, ao menos, o fim da estiagem em 2022. O que essa nova cobrança gerará, já é sabido e discutido amplamente pelos brasileiros: com a energia mais cara, os alimentos e os serviços também ficam mais caros, e a vida em geral se torna muitas vezes insustentável para uma boa parcela da população. Os mais afetados, como sempre em um país desigual como o nosso, são as pessoas mais pobres e os moradores de favela, que já vivem em crises diversas. Trata-se de uma socialização do prejuízo, enquanto as políticas de Estado é que deveriam interferir nesses processos para compensar o impacto no consumidor comum, ao definirem o limite da atuação das grandes corporações que utilizam muito a água; por exemplo, na irrigação e nas indústrias, além de contaminá-las a exemplo da ampliação da autorização e uso dos agrotóxicos. A insegurança hídrica se associa a insegurança alimentar.
A falta de água pode ser analisada em várias escalas: a mundial, que é representada por efeitos mais extensos severos; a nacional, que engloba os diferentes biomas como a Amazônia e o Cerrado e a Caatinga; a das bacias hidrográficas, que mostra a falta de proteção dos mananciais, das faixas marginais e degradação do solo (porque não é só desmatamento e manejo inadequado do solo, por uma agricultura que não tem uma preocupação ecológica, que interferem nas águas de infiltração e recarga dos aquíferos); e a municipal, onde é tratado o saneamento propriamente dito, que deve ser avaliado tanto na oferta da água, quanto na demanda dos consumidores. Esta última escala é o foco ao se tratar da justiça climática nas crises hídricas, pois é a que representa os impactos nas necessidades fisiológicas das pessoas, ou seja, o mínimo para se viver.
Nas favelas, a crise da água é uma constante em diversas comunidades, e essa situação se agravou na pandemia da Covid-19, quando as pessoas necessitavam ter uma higiene constante para se proteger da transmissão do vírus, mas não podiam. Com uma insegurança hídrica no país, os reflexos da desigualdade tendem a aumentar. A fome e a falta de energia e saneamento que as favelas vêm enfrentando, também exacerbadas e visibilizadas pela pandemia, se agravam ainda mais com esse aumento de recorrência e intensidade de crises hídricas. O aumento do custo do gás também trouxe novas dificuldades para as famílias, tendo de usar métodos alternativos para cozinhar. Em 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, em sua Assembleia Geral, por meio da Resolução no 64/292, o direito humano à água e ao esgotamento sanitário, com o posicionamento favorável da representação brasileira. Isso significa dizer que o Brasil firmou o compromisso de elaborar políticas públicas que resultem no acesso à água, em qualidade e quantidade, bem como ao esgotamento sanitário adequado para todos.
Porém, por conta de tamanha negligência do Estado, as favelas são obrigadas a encontrar suas próprias respostas. Pela necessidade, exercem seu protagonismo local. Estas ações foram tão notáveis que se tornaram o foco da cobertura midiática internacional sobre as favelas brasileiras durante a pandemia. Milhares de organizações comunitárias antes voltadas para variados assuntos, aproveitaram sua organização prévia para, com a chegada da pandemia, responder às necessidades locais dos seus moradores. O Centro de Integração da Serra da Misericórdia, o CEM, no Complexo da Penha, que trabalhava há anos com agroecologia, mudou seu foco na pandemia para atender a população com cestas básicas agroecológicas e garantir a sobrevivência dos moradores. O Centro Comunitário Irmãos Kennedy (CCIK) na Vila Kennedy, que trabalha há décadas oferecendo seu espaço para cursos, prática de esportes, oficinas e numerosas atividades, mudou seu foco para atender sua população também com cestas básicas, produtos de higiene e educação sobre o vírus.
Quanto à legislação ambiental, a situação também é alarmante. O Projeto de Lei Nº 2.159, de 2021 foi aprovado na Câmara dos Deputados e está sendo discutido no Senado, a fim de se concretizar. O texto tramita há mais de 20 anos, visando instituir uma lei geral do licenciamento ambiental que enfim está avançando, porém de forma completamente descaracterizada e oposta ao que advogam especialistas, entidades e movimentos sociais ambientalistas. O projeto de lei se tornaria, se aprovado, um desmonte das políticas de proteção ambiental vigentes. Os beneficiados por essa medida seriam apenas as corporações, no curto prazo, que têm um objetivo de reprodução e crescimento ilimitado de capital, o que colide com a capacidade de resiliência da natureza. O resultado, desta forma, seria catastrófico para o meio ambiente e consequentemente para a população, que seguiria ainda mais desassistida pelo Estado.
O Projeto de Lei no geral amplia significativamente a vulnerabilidade socioambiental dos moradores de favelas, do interior, da floresta e das águas. Quanto aos povos e comunidades tradicionais, o projeto agrava a situação já delicada que estes enfrentam no Brasil, ao ter a pretensão de desconsiderar, no processo de licenciamento, as terras indígenas que ainda não apresentam demarcação completa, bem como aquelas que não possuem as áreas tituladas de comunidades remanescentes quilombolas. Além de ser inconstitucional, o PL torna-se um pleno contrassenso para a administração pública, uma vez que é responsabilidade do próprio Estado reconhecer as terras de ocupação tradicional. Consequentemente, essa omissão do Estado pode se traduzir em sérios conflitos e violações dos direitos humanos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas, que trarão graves impactos socioambientais e à saúde pública para a população em geral.
Saiba Mais:
Sobre os autores:
Alexandre Pessoa é engenheiro civil, com ênfase em Engenharia Sanitária pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1996), Doutor em Medicina Tropical pelo IOC/Fiocruz (2017) Mestre em Engenharia Ambiental pela UERJ (2003), Especialista em Saneamento e Controle Ambiental pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – ENSP/Fiocruz (2000), Especialista em Eng. Sanitária e Ambiental pela UERJ (1997), servidor público da Fundação Oswaldo Cruz, Ministério da Saúde, lotado na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Coordenador do GT Águas & Saneamento da Fiocruz e membro do GT Saúde e Ambiente da Abrasco.
Gabriela Buffon Vargas é arquiteta e urbanista e mestre em Cooperação Internacional em Urbanismo pela Universidade Grenoble Alpes (UGA), e faz parte da equipe da Rede Favela Sustentável como gerente de relatoria e impactos.
Theresa Williamson é doutora em planejamento urbano e diretora executiva da Comunidades Catalisadoras, organização sem fins lucrativos que publica o RioOnWatch, coordena a Rede Favela Sustentável e o Termo Territorial Coletivo, e faz a gestão do Painel Unificador Covid-19 nas Favelas.