Como parte das atividades do Circuito Urbano 2021 e do Festival Internacional dos TTCs, o Projeto Termo Territorial Coletivo (TTC)* e o Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña realizaram no dia 21 de outubro a Live interativa “A Experiência dos Community Land Trusts na América Latina”. O evento foi apoiado pela ONU-Habitat, World Habitat, El Enjambre, Communities Strive Challenge e o Center for CLT Innovation. A live foi mediada por Felipe Litsek, pesquisador, advogado e assistente do projeto TTC, e Lyvia Rodríguez, diretora do El Enjambre.
A live, “A Experiência dos Community Land Trusts na América Latina” contou com a presença de lideranças comunitárias, ativistas e representantes de organizações da sociedade civil, de Porto Rico e do Rio de Janeiro, todos envolvidos com o Termo Territorial Coletivo. Eles apresentaram um pouco de suas experiências de como o instrumento pode auxiliar na luta por moradia na América Latina. O TTC é um modelo de gestão coletiva da terra em que a construção pertence a um indivíduo e a terra pertence à coletividade, um sistema que conjuga interesses coletivos e individuais e garante habitação perpetuamente acessível para populações de baixa renda. O TTC ajuda a proteger contra remoção e controlar a especulação imobiliária, minimizando os processos de gentrificação. Mas sua atuação vai além da questão habitacional, promovendo o fortalecimento e desenvolvimento comunitário.
O evento se iniciou com uma reflexão sobre o TTC por Enrique Silva, diretor de iniciativas internacionais do Lincoln Institute of Land Policy, explicando que o TTC “é uma abordagem operacional alternativa à propriedade privada da terra e à apropriação individual dos recursos da terra na forma de renda, [que se torna] uma fonte de inflação nos preços da propriedade e acesso desigual à moradia e à terra. Por anos, o Lincoln Institute esteve muito interessado nos Termos Territoriais Coletivos, porque nos dá uma visão da posse e da moradia que promove uma compreensão mais profunda do importante papel que a terra ou o solo desempenham: o de desenvolvimento social e econômico de nossas comunidades. Especialmente, aqueles setores que lutam para ter uma habitação digna, acessível e durável”.
Na América Latina já existe uma experiência bem sucedida de Termo Territorial Coletivo, situada em San Juan, capital de Porto Rico. Mario Núñez, diretor executivo do Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña, e Waleska Castro, vice presidente do Fideicomiso, explicaram que esse TTC está em uma localização estratégica na cidade, sendo dono—atualmente—de mais de 85 hectares de terras. O TTC de Porto Rico recebeu, em 2015, o Prêmio World Habitat.
A criação do TTC em Porto Rico não foi fácil. No começo, o governo queria distribuir títulos individuais, mas a população temeu a gentrificação da região e começou a estudar ferramentas de posse coletiva da terra na tentativa de mitigar esse processo.
Mario explica: “No caso do Caño Martín Peña, em particular, reconhecemos que uma vez dragado o canal [ao lado da comunidade], nosso terreno teria um alto valor econômico, um alto ganho de capital pela localização privilegiada em que nos encontramos, o que o tornaria atraente para os especuladores… Por outro lado, entendemos que propor o Termo Territorial Coletivo e a propriedade coletiva foi uma forma de garantir justiça social àqueles de nós que vivemos nessas terras há muitos anos, e que há décadas ocupamos este assentamento, muitas vezes sem os serviços do poder público”.
Waleska enfatiza: “Estar sob o TTC é, mais do que tudo, proteção. Você se sente protegido. Ninguém, nenhum governo pode vir e dizer ‘você tem que sair daí’, ou ‘vamos comprar esse pedaço de terra e todo mundo têm que se mudar'”.
Após centenas de reuniões, estudos e debates internos, optaram pelo Termo Territorial Coletivo e hoje se estruturam por meio de três entidades: o G-8, organização de base comunitária representando as oito comunidades do Caño; o Fideicomiso de la Tierra, entidade responsável por deter a titularidade da terra e administrá-la em nome dos moradores; e o Projeto ENLACE, empresa pública que executa, planeja, desenvolve e coordena o plano de desenvolvimento integral do distrito.
Lucy Rivera, presidente do G-8 do Caño Martín Peña, reforçou a importância da participação da comunidade e dos processos de tomada de decisão em conjunto em um Termo Territorial Coletivo: “É importante que exista uma mobilização comunitária. Sem essa mobilização não existiria o TTC… Sem uma boa organização não poderíamos enfrentar a mudança política do nosso governo, não poderíamos nem ser respeitados pelos próprios vizinhos e moradores da comunidade. Porque pela forma como nos organizamos, eles sentem confiança no que fazemos, no que dizemos. Portanto, é muito importante que as organizações comunitárias trabalhem arduamente por um único benefício, um trabalho coletivo e não individual”. No Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña são feitas reuniões e assembleias com todos os integrantes do TTC, bem como os moradores que ainda não optaram pelo modelo. Para aqueles que não podem participar de algum encontro, as informações são passadas, também, pelo jornal comunitário Raíces del Caño.
Para contextualizar a situação do Brasil, Theresa Williamson, diretora executiva da Comunidades Catalisadoras, fez uma apresentação sobre como a preparação para os megaeventos impactou as favelas do Rio. O período foi marcado por grande especulação imobiliária e remoções forçadas para áreas periféricas. Assim, na busca por uma solução protetiva para os moradores, a ComCat passou-se a estudar a possibilidade de implementação do Termo Territorial Coletivo em favelas no Brasil. Porém, sem conhecer um caso de aplicação do modelo em favelas em qualquer lugar do mundo, lhes parecia um sonho irrealizável. A conquista e realização do TTC de Porto Rico se tornou então fundamental para o processo de imaginar um TTC aplicado em favelas cariocas. Foi só depois das Olimpíadas, em 2016, com a divulgação do prêmio World Habitat do TTC porto-riquenho, que essa possibilidade foi vislumbrada de fato. Foi daí, então, que a ComCat procurou o Caño para uma matéria, publicada aqui no RioOnWatch, dando início a uma parceria que, com a vinda de uma delegação de Porto Rico ao Rio em 2018, deu sequência no Grupo de Trabalho do TTC brasileiro. Este trabalho foi inclusive apoiado pelo Lincoln Institute of Land Policy, através do Enrique Silva que introduziu o evento.
Ricardo de Mattos, como defensor público do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, relatou que, no Brasil, a distribuição de títulos individuais para a população de baixa renda pode ser um motivo de preocupação, devido ao assédio mercadológico que pode vir a acontecer. Por isso ele se tornou interessado no TTC: “A gentrificação era algo que acontecia corriqueiramente nas comunidades de baixa renda que tinham formalizada a sua situação… E o TTC, ele justamente me encantou por essa possibilidade de proteção após a formalização, após a regularização daquele local. Porque sempre foi, na atuação até mesmo do Núcleo de Terras, sempre foi uma escolha muito difícil qual instituto usar e se era até mesmo vantajoso promover a regularização do local sabendo que talvez aquilo deixasse a comunidade até mesmo mais vulnerável”.
Maria da Penha, moradora da comunidade Vila Autódromo e co-fundadora do Museu das Remoções, contou sobre sua experiência de vida: “Quem deveria respeitar a nossa vida, os nossos espaços, a nossa história, é quem nos tira dos nossos territórios, das nossas casas, que nós construímos com muita dificuldade para poder estar ali. E quando aquela área que nós construímos se valoriza, a prefeitura, os nossos governantes vêm e querem nos tirar à força”. Sobre o TTC, ela acredita que “é uma ferramenta maravilhosa que dá proteção às comunidades. Principalmente, ele pode ser implementado com a favela que já está ali. E isso facilita para que a gente consiga continuar morando na nossa terra”.
Nesta perspectiva dos benefícios para a comunidade, Mario citou a propriedade coletiva da terra como ferramenta de garantia de permanência da população no seu território. No caso do Caño Martín Peña, eles sabiam que as intervenções públicas e titulação individual trariam uma valorização imobiliária para a área, e por meio do TTC essa valorização não levou à gentrificação. Para ele, o Termo Territorial Coletivo é uma forma de garantir justiça social a quem vive na terra há décadas. Destaca que como no caso de Porto Rico, o TTC é uma ferramenta que pode se adaptar às necessidades e contextos de cada comunidade.
A implementação de um Termo Territorial Coletivo é um trabalho árduo. No Caño Martín Peña, foram mais de 700 reuniões até a escolha do instrumento, e depois de muito trabalho conseguiram que fosse aprovada a Lei 489 de 2004 que institui e protege o TTC do Caño Martín Peña.
Para o Brasil, “a gente vem pensando mais nele [TTC] como um modelo para regularizar as moradias e as comunidades já existentes. Porque, por exemplo, no Rio de Janeiro quase um quarto da cidade já tem moradia nas favelas. E muitas dessas pessoas, como a Maria da Penha, querem ficar, querem permanecer, querem ver aquele território cada vez melhor. Mas querem ver isso sobre a ótica dos moradores, sob a gestão contínua dos moradores, mantendo aqueles ativos, aquelas qualidades que foram construídas ali… as qualidades das favelas mantidas ali. As pessoas construíram uma cultura, uma vivência, uma economia, enfim, tudo local. E o TTC, ele valoriza isso, ele não vai chegar como um título individual que traz o risco de pulverizar essa coletividade, que é um grande ativo, uma grande qualidade das favelas”, diz Theresa.
Assista à Live, A Experiências com o Termo Territorial Coletivo na América Latina, Aqui:
*Tanto o RioOnWatch quanto o Termo Territorial Coletivo (TTC) são iniciativas da organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).