Click Here for English
No dia 30 de novembro, a Comissão da Memória e Verdade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CMV/UFRJ) realizou uma live de lançamento do episódio “População negra e moradores de favelas na ditadura”. Este é um dos seis episódios da série “Incontáveis”, obra audiovisual que busca gerar visibilidade às histórias de grupos atingidos, mas nem sempre lembrados nas narrativas tradicionais sobre o período da ditadura militar no Brasil, de 1964 a 1985. O lançamento, transmitido no canal do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, foi seguido de uma roda de conversa.
A conversa foi mediada por Lucas Pedretti, pesquisador da CMV/UFRJ e roteirista do episódio. Participaram da roda de conversa Gabrielle Abreu, historiadora e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER); Itamar Silva, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e pesquisador na Universidade da Cidadania; Marco Pestana, historiador e professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e Filó Filho—conhecido como Dom Filó—produtor cultural e coordenador executivo do acervo Cultne.
O debate trouxe reflexões de pesquisadores e ativistas, realizando um amplo panorama sobre o regime ditatorial no Brasil. Um dos temas do episódio, que também apareceu durante a conversa, foi a questão das ações repressivas do governo militar, nos anos 1970, aos bailes black. Na ocasião, governantes começaram a investigar e criminalizar artistas, intelectuais e grupos da sociedade civil.
Os bailes black arrastavam multidões periféricas ao som do soul, funk e samba-rock. No Rio de Janeiro, o Soul Grand Prix e o Black Power são exemplos de equipes musicais de resistência às políticas impostas da época, que consequentemente tiveram seus produtores perseguidos pelo regime militar. O primeiro a falar na live de lançamento, Dom Filó, foi um desses artistas. Em 1976, ele foi preso por realizar bailes black no Rio de Janeiro.
Essa história é contada no episódio “População negra e moradores de favelas na ditadura”, pelo próprio Dom Filó, que é o narrador do filme. Capturado ao sair da sede do tradicional clube Renascença, Dom Filó passou a madrugada em uma sala escura e fria. Com a visão turva, teve complicações para enxergar quem estava ao redor. Após tortura psicológica, Dom Filó foi libertado, horas mais tarde, no bairro Lins de Vasconcelos, na Zona Norte. Por meio de documentos e jornais da época, o vídeo mostra que o ocorrido com Dom Filó não foi um caso isolado.
Sobre esta parte de sua história, Dom Filó contou durante a live: “Nós vivemos um período sombrio da ditadura militar no nosso país. Durante 21 anos sofremos essa augura do autoritarismo, do cerceamento do crescimento intelectual do povo brasileiro. E os negros ali na base da pirâmide, sofrendo o preconceito, o racismo explícito debaixo da bandeira da democracia racial. Mas para toda ação existe uma reação. Eles não imaginavam que o foco de resistência surgiria contra essa mesma ditadura, dentro desse cenário caótico, especialmente aqui no Rio de Janeiro. Alguns personagens fizeram a diferença. Eu cito esses jovens que a partir da música, conseguiram utilizá-la como ferramenta de uma identidade, de nova identidade, de um novo comportamento, de uma nova estética. Isso durante muitos anos ficou oculto, isso não saia na grande imprensa”.
Na live, Dom Filó relatou que em dezembro de 2019 ele participou, como convidado, do Primeiro Encontro Continental de Estudos Afro-Latino-Americano promovido pelo Afro-Latin American Research Institute (Alari), na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. No encontro, Dom Filó deu uma palestra sobre a importância do movimento Black Rio. Sobre o encontro ele contou: “Lá [no encontro] eles me fizeram uma pergunta, entre várias perguntas, até porque todos eram acadêmicos e eu era o sujeito, ou seja aquele que viveu o processo… Naquele momento, eles me perguntaram como foi ser inimigo público do Estado brasileiro e ter sobrevivido na clandestinidade. Eu parei, pensei e veio tudo na minha cabeça. Eu respondi: ‘Tive muita sorte e a proteção da ancestralidade, senão não estaria aqui contando essa história’. Realmente, foi muita sorte, porque muitos outros companheiros não tiveram esse mesmo caminho que eu tive, essa sorte. A ousadia da juventude na qual eu estive inserido jogou muito com a sorte. Porque vocês não têm ideia de como foi aquele período”.
Resgatando memórias dos anos 1970, Itamar Silva também iniciou sua fala partindo de suas vivências. “Na década de 1970… eu vivi a minha inocência como jovem adolescente de favela… eu estava com treze para quatorze anos e eu tinha um tio que estava servindo ao exército, e por mais de uma vez ele chegou em casa revoltado, porque ela era obrigado a reprimir estudantes… volta e meia [ele] não podia voltar para casa, porque estava sendo chamado. Estava sendo composto um grupo que tinha que reprimir estudante, e ele ficava indignado com aquilo. Ele não tinha naquele momento uma consciência política do que estava acontecendo, mas certamente isso, de alguma forma o mobilizava muito fortemente. Ele dizia, explicitamente, que era porque ele era obrigado a ficar no quartel. Mas eu acho que não. Na verdade, na essência ele estava se colocando contra aquele procedimento [de repressão], tanto é que depois ele foi ser um militante”.
Itamar falou sobre a sua trajetória como estudante de jornalismo na década de 1970 e seu engajamento no Movimento Negro. Ele também traçou uma linha desde da ditadura até os dias de hoje, relatando sobre a repressão e o controle do Estado sobre as organizações de favelas no período da ditadura.
De acordo com Itamar, a Federação das Associações de Favelas da Guanabara FAFEG foi criada em 1963 em resposta a remoção da favela Morro do Pasmado em Botafogo, mas durante a sua criação e expansão houve um processo de perseguição política. Itamar contou que a Associação de Moradores do Morro Santa Marta foi criada em 1965, e que nesse período várias lideranças da FAFEG já estavam sendo perseguidas e algumas presas.
“Aqui no Santa Marta, especificamente, o presidente me disse em uma entrevista que [no período da ditadura] estava impedido de fazer qualquer movimento, qualquer manifestação, qualquer reivindicação por conta da pressão e do controle da polícia que procurava comunistas inclusive nas associações de moradores”.
De acordo com Itamar, esse controle da ditadura nas organizações das favelas se reflete nas políticas atuais de controle de Estado.
“Para a gente que mora em favela isso é óbvio. Para mim a gente sempre viveu sob um controle muito forte do Estado. Era uma perseguição que não estava explicitada para quem estava naquele momento [da ditadura] morando na favela…. Eu acho que a gente hoje vive a consequência desse período, dessa formação [ditatorial] que contagiou e contaminou a polícia… A favela não é [mais] lida hoje—pelas autoridades pelo poder policial, pelo braço armado do Estado—como um lugar de comunistas, um lugar de revolucionários, mas ela é vista como o lugar que ele [o Estado] precisa controlar e precisa eliminar. A lógica é a mesma que a gente vive hoje”.
As Remoções das Favelas Durante a Ditadura
Autor do livro União dos Trabalhadores Favelados e a Luta Contra o Controle Negociado das Favelas Cariocas (1954-1964), Marco Pestana, na conversa virtual, explicou que as remoções, no então estado da Guanabara, teve início antes da instauração do regime militar, mas que foi durante a ditadura que as remoções de favelas avançaram com recursos financeiros e operacionais, se tornando frequentes e violentas.
O braço do governo central para realizar as remoções era a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM). O programa, criado em 1968, chefiava órgãos como a Companhia de Habitação (COHAB) que construía e comercializava os conjuntos habitacionais, a Secretaria de Serviços Sociais, responsável pelas remoções, e o Banco Nacional da Habitação (BNH), que financiava o programa. Na prática, o projeto resultou na migração de favelados para áreas afastadas da região central da cidade e, por consequência, dos serviços e oportunidades.
Marcos explicou que “a própria política de remoção de favelas não se apresentava explicitamente como um ataque à população negra. Primeiro, porque não se apresentava como um ataque, se apresentava como um benesse que iria fornecer moradia, uma habitação formal. Também não se singularizava as pessoas negras quando se falava em população favelada. Era um tema que não aparecia nos documentos oficiais sobre remoções”.
De acordo com Marcos, apesar da questão racial não ter sido associado às remoções da década de 1960, os dados revelam que o racismo estava claramente presente neste processo. Marcos informou que no censo de 1960 consta que 29% da população do estado da Guanabara era de negros e pardos, porém nas favelas o percentual de negros e pardos era 61%.
Como exemplo concreto do impacto racial das remoções, Marcos examinou o bairro da Lagoa, na Zona Sul do Rio. O bairro que atualmente possui o menor número de negros na cidade, 50 anos atrás foi endereço de várias favelas. O pesquisador lembrou das favelas da Praia do Pinto, da Catacumba e da Ilha das Dragas, comunidades, majoritariamente negras, removidas da Lagoa durante a ditadura. A partir disso, ele explicou: “A longevidade e a profundidade do impacto dessa política remocionista não só afetou diretamente aquelas pessoas removidas, que tiveram suas vidas desestruturadas, mas ajudou a reforçar e aprofundar uma conformação da cidade do Rio de Janeiro segregada economicamente e racialmente. O bairro que mais teve remoções é o bairro menos negro da cidade. Acho que esse é um elemento importante para a gente entender o impacto disso na configuração da cidade como um todo”.
A retirada das favelas, camuflada por discursos que ressaltavam os benefícios, não ocorria, no entanto, sem a resistência dos moradores, como contou Itamar Silva: “A gente vai ter o período de maior remoções no Rio de Janeiro no período de 1963 a 1973. [Mas] com toda a ditadura, ainda teve resistências. [Por] vários momentos a população tentou impedir [as remoções]. Mas isso não foi o bastante pois havia uma pressão e um controle muito forte do governo central sob essas iniciativas.”
Resistência do Movimento Negro
Com seis capítulos, o objetivo da série Incontáveis é discutir os impactos da ditadura civil-militar na sociedade, unindo a produção acadêmica e cultural para realizar um instrumento amplificador de vozes das pessoas negras, indígenas, faveladas, mulheres e LGBTQIAP+ impactadas. A série visa trazer narrativas pouco retratadas na mídia e na história sobre esse período.
Ver essa foto no Instagram
Na live, Gabrielle Abreu conta que começou a pensar sobre a população negra no período da ditadura, quando iniciou a sua graduação em história na UFRJ, em 2014. Logo que iniciou o curso, ela percebeu que no ensino tradicional havia poucas menções sobre o movimento negro nesse período.
“Logo fui despertada pelo tema da ditadura e redemocratização… e nas aulas que eu tinha sobre esses temas, eu sentia muita falta de uma menção mínima que fosse da população negra nestes contextos. Parecia que não existia pessoas negras no Brasil durante a ditadura, que não existia o Movimento Negro aguerrido e resistente… A população negra, ao menos nas aulas que eu assisti, não era lembrada a partir de nenhum aspecto. Quando se falava em apoio civil, quando se falava em resistência, [não se falava] absolutamente nada. Isso começou a me inquietar um pouquinho, não soava coerente para mim essas ausências de narrativas… Eu ficava me perguntando: ‘Como que uma população que historicamente é alvo de toda violência não havia sido afetada, em nenhuma medida, por um regime conhecido sobretudo por graves violações de direitos humanos?’ Me parecia que algumas histórias não estavam sendo contadas.”
Gabriele afirmou, que ao contrário dessa ausência na historiografia da ditadura, muitas pessoas negras foram atingidas pela ditadura e muitas figuras do Movimento Negro se mobilizaram na resistência à ditadura. “Só por denunciar o racismo, em um regime que enaltecia a miscigenação e negava insistentemente a existência da discriminação racial no Brasil, esses grupos já estavam resistindo. É evidente que a ditadura não criou as desigualdades raciais no Brasil, mas ela de fato se sustentou em mecanismos racistas que já existiam para defender que no país não havia tensão de cunho racial. A interpretação que o Brasil era um lugar livre do racismo acabou invadindo o discurso do ativismo negro que tinha na sua razão de existência a denúncia da discriminação racial.”
Fruto de uma produção coletiva, a série audiovisual Incontáveis é coordenada e dirigida pelo antropólogo José Sérgio Leite Lopes. Até janeiro de 2022 serão lançados outros episódios e lives. Todo conteúdo ficará disponível no canal do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, no YouTube. Essa é a chance de conhecer mais sobre as histórias não contadas do nosso país e que, ainda nos dias atuais, fazem questão de deixar as lembranças esquecidas.