As fortes chuvas que atingiram o estado do Rio no começo de dezembro provocaram alagamentos em várias cidades. As consequências do temporal foram exibidas em diversos jornais. Na cidade de Itaguaí, Baixada Fluminense, a água invadiu as casas e o esgoto voltava pelos ralos. Após uma intensa cobertura da mídia sobre o temporal, a Prefeitura de Itaguaí enviou máquinas e funcionários para o bairro do Engenho, uma das localidades mais afetadas na cidade de Itaguaí. Mas ao invés de ajuda, os moradores tiveram seus prejuízos ampliados. Algumas casas foram demolidas sem aviso prévio e outras receberam notificação para demolição.
Era noite quando a casa de Seu Vicente, de 61 anos, começou a ser derrubada. A notificação chegou junto com as máquinas, por volta das 23h de quinta-feira, dia 9. “Já entregaram a notificação e já queriam quebrar tudo. Meu pai, desesperado sem saber o que fazer, deu meu número para que eles me ligassem”, conta Daniel Ferreira da Silva, filho de Vicente da Silva. Ao telefone, a funcionária da Secretaria de Assistência Social disse a Daniel que a casa do pai era o motivo da enchente no bairro. “Eles [funcionários da prefeitura] colocaram a maior pressão e arrebentaram a metade da casa dele. Jogaram todo o entulho no valão. Ou seja, não adiantou nada”, explica Daniel.
Vicente vive nessa casa há mais de 35 anos. O filho conta que por muitos anos o imóvel foi considerado legal e recebia, inclusive, o carnê para pagamento de IPTU. Na parte da casa demolida existia uma varanda, a cozinha e o banheiro. Os funcionários disseram ao idoso que a demolição seria parcial, mas pediram que ele assinasse um documento que mencionava a interdição total do imóvel. Daniel conta que nem ele e nem o pai assinaram os papéis.
A casa do idoso não foi a única a ser demolida. Pelo menos seis imóveis foram derrubados e outros receberam notificação, avisando que seriam demolidos em breve. Anna Paula Salles vive no bairro há décadas e hoje está como presidente da Associação de Moradores do Engenho (AME). Segundo ela, os funcionários da prefeitura, que estiveram no local, alegaram que seria necessário derrubar as casas para desobstruir o canal que corta o bairro. Com as casas que beiram o canal demolidas, haveria espaço para que eles entrassem com o maquinário. “Eles falaram que queriam percorrer todo o valão com as máquinas, mas o valão é um valãozinho. Não tem largura para entrar uma escavadeira hidráulica”, explica Anna Paula. Além disso, quem vive no bairro teme que a intervenção no canal, com máquinas de grande porte, possa abalar a estrutura das casas próximas.
Uma notícia sobre ação realizada no bairro Engenho foi publicada no site da Prefeitura de Itaguaí. O texto conta sobre a retirada de entulhos e lixo do canal e menciona a possível remoção de muros, mas não cita a demolição de nenhuma casa.
Depois que metade do imóvel foi demolido, Seu Vicente, de 61 anos, ficou alguns dias de favor na casa de familiares. Segundo Daniel, o pai não recebeu nenhuma oferta de auxílio por parte da Prefeitura. O idoso ouviu de funcionários que o restante da casa precisaria ser derrubada para que o maquinário entrasse e fizesse a retirada dos entulhos. “Meu pai, com medo de perder a outra parte da casa, retirou manualmente [os entulhos]”, contou Daniel.
Vicente já retornou para a casa, que está parcialmente destruída. Quando precisa usar o banheiro, ele conta com a ajuda de vizinhos. Sua casa agora não tem mais paredes que separem o canal da moradia. Segundo Daniel, ele mesmo procurou a Defesa Civil e as secretarias de Obras e de Assistência Social do município. “Eles disseram que a demanda é muito grande, que são muitas casas desse jeito e ficou assim”.
Há poucos metros da casa de Seu Vicente, está outra residência demolida. Everton da Silva Telles, de 22 anos, estava no trabalho quando os funcionários chegaram, também na quinta-feira, dia 9. A casa estava vazia no momento e quem avisou sobre a demolição foi um vizinho. Imediatamente, ele saiu do serviço, mas já chegou tarde. “Como Nova Iguaçu para Itaguaí é longe, quando eu cheguei lá já estava tudo derrubado”, lembra ele.
Ele e a mãe viviam no imóvel, que tinha dois cômodos e estava passando por obras. O terreno onde a casa foi construída já estava com a família de Everton há quase 50 anos. Assim como ocorreu com Vicente, nenhum benefício assistencial foi oferecido a ele.
No dia seguinte, a mãe de Everton tentou procurar os órgãos responsáveis, mas não conseguiu retorno. Ele tentou conversar com os funcionários, que retornaram ao bairro para mais um dia de demolições e entrega de notificações. “Eu falei que eles não iam entrar, mas sozinhos não têm como a gente bater de frente com eles. Disseram que iam chamar a polícia, que iam me levar preso dali se eu não deixasse eles entrarem no terreno”, conta Everton. Já sem esperanças, ele tentou negociar: ofereceu a entrada das máquinas pelo terreno, por cima dos escombros da casa, e em troca só queria que o muro da frente fosse refeito. Ouviu dos funcionários que por conta do terreno ser ilegal, o município poderia entrar e demolir, sem a obrigatoriedade de qualquer contrapartida aos moradores.
Os escombros da casa de Everton também foram deixados para trás, à beira do canal. Desde o dia em que a casa foi demolida, já ocorreram outras chuvas que alagaram, novamente, o bairro. “Sexta [dia 17] teve chuva de novo, alagou tudo lá. O que eles fizeram foi em vão, não tem que limpar só ali, tem que limpar o valão inteiro. As manilhas que eles colocam não suportam [o volume de água]”, explica.
O problema de alagamentos na área não é recente. As construções—casas e vielas—que estão à margem do canal, segundo Anna Paula Salles, existem há mais de 30 anos. “A Prefeitura agora quer resolver um problema de 30, 40 anos em uma semana? Não dá, né? As pessoas estão desesperadas”, comenta ela. A presidente da associação de moradores lembra que a estrutura de saneamento básico que atende à comunidade foi feita há, pelo menos, 30 anos. A população da cidade como um todo cresceu e a rede não acompanhou: “É um problema de falta de saneamento básico, a estrutura é inadequada e não comporta mais. O pessoal que mora na beira do valão tem consciência que está numa área de risco, mas mora há 30 anos ali. Para onde essas famílias vão?”, questiona Anna Paula.
A Mobilização em Busca do Direito de Resistir
A ação da Prefeitura no bairro aconteceu entre os dias 9 e 10 deste mês, logo após 48 horas seguidas de fortes chuvas que atingiram a cidade de Itaguaí. Anna Paula conta que os moradores se mobilizaram e começaram a registrar, em fotos e vídeos, as violações que estavam acontecendo. “Nós nos mobilizamos e colocamos os vídeos nas redes sociais. A gente conseguiu chamar atenção da cidade toda. Aí o que eles fizeram? Deram uma reduzida. Quando eles frearam, nós conseguimos fazer uma reunião com todos os moradores afetados”. Desse encontro, saiu a decisão de entrar com uma representação no Ministério Público Estadual (MP-RJ).
O encontro aconteceu de forma virtual nesta segunda-feira (20). A comunidade se reuniu na sede da associação de moradores para conversar com os defensores públicos. “A gente pôde perceber o apoio da Defensoria Pública“, avalia Anna Paula. “A comunidade se sentiu mais acolhida e mais empoderada também com essa reunião”.
Documentos comprobatórios e imagens ainda estão sendo levantados, de acordo com a Defensoria Pública. Alguns documentos foram solicitados à prefeitura de Itaguaí, que também esteve representada na reunião pelo Procurador Geral do município, além dos secretários das pastas de Defesa Civil, Obras e Assistência Social. “Eu, particularmente, estou bastante aliviada, porque nós não estamos sozinhos. Não se pode fazer ações arbitrárias se metendo com mobilizações comunitárias”, disse Anna, esperançosa sobre a resolução da situação da comunidade.
A representante da associação de moradores lembrou ainda que existe uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe remoções e despejos durante a crise sanitária da Covid-19. A medida, mencionada por Anna Paula Salles, determina a suspensão de ordens ou medidas de desocupação de áreas que já estavam habitadas antes de 20 de março de 2020, quando foi aprovado o estado de calamidade pública em razão da pandemia da Covid-19. A determinação está mantida até, pelo menos, março de 2022.