Leia a matéria original por Ann Deslandes, em inglês, no site de arquitetura verde pacífico-asiático FuturArc aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil.
Juntamente com samba, praias e a famosa estátua do Cristo Redentor, a cidade do Rio de Janeiro é lar para cerca de 1,5 milhões de pessoas que vivem em favelas—comunidades densamente povoadas cujo os primos mais próximos no Sudeste Asiático podem ser chamados de shantytowns ou slums. Favelas são em grande parte um legado do fim da escravidão no Brasil, que ocorreu em 1888, bem como do desemprego rural generalizado. Milhares de afro-brasileiros, juntamente com trabalhadores agrícolas que migraram para a cidade, criaram os assentamentos informais a fim de se alojarem e estarem perto de oportunidades de emprego na cidade formal.
Graças a produções cinematográficas e televisivas como Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), no imaginário internacional, as favelas estão normalmente ligadas à pobreza e ao crime, especialmente ao tráfico de drogas. Mas, como a organização Comunidades Catalisadoras (ComCat)* tem procurado demonstrar há mais de 20 anos, as favelas têm também uma incrível variedade de outras características, podem ser um modelo de moradia urbana sustentável e hoje são mundialmente famosas na geografia urbana e na arquitetura. Em 2016, uma avaliação comparativa mostrou que Asa Branca, uma favela na Zona Oeste, era mais sustentável do que a premiada Vila Olímpica construída para os Jogos Olímpicos que foram realizados na cidade naquele ano.
As favelas, como a avaliação constatou, têm muitas características específicas que se conectam aos objetivos da arquitetura verde em reduzir as emissões de carbono e tornam a vida mais sustentável. Para a ComCat, são eles: densidade sem demasiada verticalidade; foco no pedestre; uso elevado de bicicletas e transportes públicos; uso misto (casas sobre lojas), residências próximas aos locais de trabalho, arquitetura orgânica (a arquitetura evolui de acordo com as necessidades), alto grau de ação coletiva/solidariedade; e produção cultural vibrante.
Moradores de favela verdadeiramente carregam o fardo da desigualdade social do Rio—enfrentando desvantagens estruturais históricas associadas à raça e à classe, que se apresentam em maus resultados na área de saúde e educação. Isso tem sido dolorosamente exposto durante a pandemia do coronavírus, na qual o Brasil tem sido um dos mais duramente atingidos do mundo.
Como a diretora executiva da ComCat, Theresa Williamson, disse à FuturArc, as consequências da pandemia têm sido terríveis para as favelas: “Têm havido mortes desproporcionadas nas favelas devido à falta de investimento público nestas comunidades”.
“As pessoas não têm a opção de ficar em casa. Precisam trabalhar. Mas até mesmo o trabalho é escasso. Portanto, as pessoas têm fome. O Brasil voltou ao mapa mundial da fome e as favelas são uma parte importante da vulnerabilidade do Brasil, onde vivem muitas pessoas vulnerabilizadas. Consequentemente, as favelas estão realmente no cerne dessa estatística”.
“Quando penso em arquitetura verde, penso que as favelas são um exemplo natural. Embora os materiais de construção nem sempre sejam sustentáveis—muitas vezes concreto e aço etc.—o ambiente construído é realizado de uma forma procura satisfazer as necessidades básicas das pessoas pela sua própria natureza. E produz menos resíduos. As pessoas utilizam a terra da forma mais eficiente que está a seu alcance, conseguem melhorar suas vidas [apesar da negligência estatal] fazendo uso da flexibilidade que a informalidade proporciona.” — Theresa Williamson
O telhado verde é também uma inovação no Vidigal, que olha para a praia de Ipanema. Vidigal é lar de 35.000 moradores e representa muitos dos marcos de sustentabilidade das favelas que a ComCat identifica, incluindo altos níveis de ação coletiva e utilização inovadora de materiais reciclados (incluindo o Parque Ecológico Sitiê, um parque ecológico que já foi depósito de lixo).
Liderada pelo arquiteto do Vidigal Carlos Augusto Graciano e pela chefe de cozinha orgânica Graça dos Prazeres, em 2014**, a comunidade criou, na entrada do bairro, o primeiro ponto de parada de transportes públicos equipado com um telhado verde na cidade, com um mural mostrando a história da comunidade e um jardim de ervas medicinais. Em seguida, Carlos Augusto criou o projeto RUA (Reforma Urbanística das Artes), o qual lidera, que irá expandir a construção de telhados verdes na favela juntamente com a instalação de hortas residenciais e hortas comunitários. RUA foi recentemente apresentada no 21º Congresso Mundial de Arquitetos que também teve como sede o Rio de Janeiro e Carlos Augusto e a sua equipe irão apresentar um relatório sobre o projeto no Congresso de 2023, que se realizará em Copenhagen, Dinamarca.
No Vidigal, a pandemia é vivida como uma sindemia, ou uma combinação de duas ou mais adversidades, disse Carlos Augusto à FuturArc. Pobreza e condições precárias de moradia na favela produziram durante muito tempo problemas de saúde tais como alergias, pneumonia, hepatite e tuberculose antes da pandemia da Covid-19, que exacerbou problemas sociais, incluindo a fome. “Os telhados verdes e as hortas comunitárias contribuirão para alimentar a comunidade”, bem como para melhorar a qualidade do ar. Ele observa que eles podem ajudar a cumprir “a agenda climática global”, seguindo a recomendação da Organização Mundial de Saúde de que haja um mínimo de doze metros quadrados de espaço verde por habitante numa zona urbana.
Sobre a autora: Ann Deslandes é doutora, escritora e pesquisadora freelance com um interesse especial em urbanismo, movimentos sociais e desenvolvimento comunitário. Trabalhou como pesquisadora na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Sidney; escreveu sobre teoria urbana para publicações acadêmicas; e publicou entrevistas e comentários em Foreign Policy, China Dialogue e The New Humanitarian. Ela está sediada na Cidade do México, México.
*O RioOnWatch e a Rede Favela Sustentável são iniciativas da organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).
**Algumas correções foram realizadas nesta tradução com base em notificações das fontes.