A Degradação do Pantanal Carioca, Parte 2: A Poluição como Consequência da Histórica Falta de Saneamento Básico na Baixada de Jacarepaguá

Segundo o promotor, existem cerca de 400 pontos de despejo de esgoto irregular na região. Foto: Felipe Migliani
Segundo o promotor, existem cerca de 400 pontos de despejo de esgoto irregular na região. Foto: Felipe Migliani

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Esta é a segunda matéria de uma série de quatro sobre “A Degradação do Pantanal Carioca”, como já foi conhecida a Baixada de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Em 21 de junho, imagens feitas por helicóptero flagraram a proliferação de gigogas no Parque Chico Mendes, no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio de Janeiro. A vegetação tinha tomado quase 50% do espelho d’água da Lagoinha das Taxas. Esse processo vem, cada vez mais, comprometendo a drenagem e favorecendo as inundações na região, além de contribuir para a infestação de mosquitos. As gigogas são consequência da eutrofização, um processo de poluição de rios e lagos, que acabam adquirindo uma coloração turva e ficando com níveis baixíssimos de oxigênio na água. Isso provoca a morte de diversas espécies animais e vegetais e tem um altíssimo impacto para os ecossistemas aquáticos. A presença de toxinas de cianobactérias nas lagoas da região vem sendo notada por pesquisadores desde a década de 1980.

Essas toxinas são maléficas para animais e podem causar intoxicação em humanos. A presença de cianobactérias tóxicas no sistema lagunar de Jacarepaguá pode acarretar problemas de saúde pública na região costeira marinha, uma vez que tem comunicação com o mar, em praias de grande uso recreativo, como o Quebra-Mar. Em decorrência disso, no início do ano de 2007, a pesca e a comercialização de peixes provenientes das lagoas de Jacarepaguá foi proibida. Na época, o resultado da análise dos peixes indicou contaminação e os pescadores, em geral, provenientes das comunidades que margeiam o sistema lacunar, receberam um salário mínimo para ajudar no sustento da família. 

Para Sérgio Ricardo, ecologista, gestor ambiental e integrante do Movimento Baía Viva, a falta de uma política pública habitacional está associada à falta de saneamento básico. E a maior consequência dessa negligência do Estado e do mercado imobiliário é a poluição dos corpos hídricos da região. 

“Não tem saneamento básico! Todos os rios e os corpos hídricos da região, assim como da Baixada Fluminense, da capital e do Leste Fluminense, viraram valões, é uma tragédia civilizatória. O que é uma pena, porque nós estamos perdendo no turismo, estamos perdendo no lazer. A ausência do saneamento encarece os serviços públicos de saúde através da chamada doença de veiculação hídrica. Aquela burrice que é essa contaminação das lagoas a gente vê de fora é feio, mas para quem tá lá dentro é pior ainda. Centenas de sofás, pneus, carros e esgoto sem tratamento do passado. Nos anos 1990, iniciou-se uma grande obra de saneamento, foi feita uma estação na Barra e tal, mas a questão toda é que o investimento no saneamento não está acompanhando. Desde os anos 1970, quando houve essa metropolização do país, [com a formação de] grandes regiões metropolitanas, nós não fizemos a política habitacional, e não havendo a política habitacional não haverá o saneamento básico. Uma coisa está associada a outra.” — Sérgio Ricardo, Movimento Baía Viva

Em setembro de 2021 foi realizada a 3ª Barqueata em Defesa do Saneamento Ambiental das Lagoas de Jacarepaguá, uma manifestação náutica que pediu a despoluição das lagoas do complexo lagunar e contou com a participação de pescadores do Canal do Anil e Rio das Pedras, além do Movimento Baía Viva. 

Em março de 2022, seis meses depois da barqueata, pescadores realizaram uma nova manifestação. Desta vez ocuparam a Avenida Abelardo Bueno, na Barra da Tijuca, indignados com as seis toneladas de peixes mortos encontrados nas praias da região.

As quatro lagoas do complexo receberam avaliação “péssima”. Foto: Fernanda Calé

Francisco Alberto dos Santos, membro da Associação de Pescadores do Canal do Anil, é um dos mais experientes pescadores da região. Ele compara quantos quilos de pescado tirava do sistema lagunar por dia nas décadas de 1970 e 1980 com o quanto ele pesca nos dias atuais.

“A gente chegava a ‘fazer uma maré’ [para] pescar uma produção de 600kg por barco por dia, cada caiquinho—barco a remo, kayak. Eu mesmo cansei de, com dois barcos, trazer 1.200kg. Hoje você vai numa lagoa dessas daí e não tem mais nem como pescar nada, pela poluição… de 1976 até o ano de 1989 por aí foi assim, tava dando ainda uma boa produção. Então, quer dizer, ao longo do tempo vieram ficando mais difíceis essas coisas… se ele (pescador) vai pescar, hoje ele traz aí 50kg, 30kg. Então quer dizer, muito mal dá para ele sobreviver. Entendeu?” — Francisco Alberto dos Santos, Associação de Pescadores do Canal do Anil

Em maio de 2022, foi realizada uma audiência pública na Câmara Popular da Barra para discutir a despoluição do sistema lagunar de Jacarepaguá. Deputados das comissões de Defesa do Meio Ambiente e de Saneamento Ambiental da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), representantes do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), do Rio Águas e do Ministério Público debateram sobre os milhões de litros de esgoto despejados sem tratamento dos bairros Recreio dos Bandeirantes, Vargem Grande e Vargem Pequena nas lagoas da região. 

Em entrevista ao programa Balanço Geral, da TV Record,  o promotor de justiça José Alexandre Maximino disse que há pelo menos 400 pontos de lançamento clandestinos de esgoto na rede de drenagem.

Doutor em Saúde Pública e professor do Departamento de Engenharia Sanitária e do Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DESMA/FEN/UERJ), Adacto Ottoni explica que a poluição degrada a qualidade das águas e provoca o assoreamento das lagoas e dos rios, ocasionando enchentes e alagamentos em períodos chuvosos:

“Essa poluição além de degradar a qualidade das águas, gera o assoreamento da lagoa e dos rios. E aí o que acontece na época de chuva?! Todo ano eu sempre falo isso, onde chover ‘ferrou’, porque a água da drenagem não tem como escoar, tá tudo assoreado. Então, o problema é gravíssimo e tem solução. O que tá faltando é vontade política dos nossos órgãos responsáveis, dos nossos prefeitos e governadores, para poder viabilizar a solução do problema.”

Gráfico IQA Médio 2012/2021 Bacia do Sistema Lagunar de Jacarepaguá. Fonte: IneaSegundo o Monitoramento Sistemático dos Rios do Estado do Rio de Janeiro, realizado pelo INEA e pela Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade (SEAS), o índice de qualidade da água médio entre 2012 e 2021 da bacia do sistema lagunar de Jacarepaguá classifica cinco rios como “muito ruim”, seis como “ruim” e um como “médio”. O classificado como “médio” possui águas apropriadas para o tratamento convencional, enquanto os ruins e muito ruins possuem águas impróprias, sendo necessário tratamentos mais avançados.

Também realizado pelo INEA e SEAS, as quatro lagoas do sistema receberam, no último boletim, a classificação geral “péssima”. Também foram classificadas como área de risco para banho e estão em estágio de “alerta” e “atenção” a respeito da fauna aquática. De acordo com os resultados dos pontos de amostragem, as lagoas da Tijuca,e do Camorim encontram-se mais poluídas em comparação com as lagoas de Marapendi e de Jacarepaguá.

Gráfico RH V Baía de Guanabara, na Bacia do Sistema Lagunar de Jacarepaguá, Evolução do IQA Médio Anual. Fonte: IneaComparando os dados das amostragens aos padrões estabelecidos pela legislação, as quatro lagoas que formam o Complexo Lagunar de Jacarepaguá não estão em conformidade com os valores da Resolução CONAMA nº 357/2005. Além disso, é possível constatar a ausência de regularidade na sistematização e divulgação das informações sobre a qualidade da água do sistema lagunar de Jacarepaguá. A última, até a redação desta reportagem, ocorreu em outubro de 2021. Adacto Ottoni questiona a regularidade das coletas de monitoramento realizadas pelo INEA no Complexo Lagunar de Jacarepaguá: 

“O monitoramento para nós, que trabalhamos com o meio ambiente, é a mesma coisa que os exames médicos que o médico pede para o seu paciente. Um rio é um organismo vivo, então para você conhecer a saúde de um rio, você tem que monitorar. Infelizmente existe monitoramento? Existe, mas você tem a garantia que o INEA coleta as amostras na baixa mar? Eu não tenho essa garantia. As coletas de amostras que são feitas fora da baixa mar, não têm significado sanitário, porque a água do mar entra e dilui o esgoto, então têm o resultado abaixo.”

Lagoas de Jacarepaguá, Boletim número 4, outubro de 2021 sobre a qualidade do sistema lagunar. Fonte: Inea

Por e-mail, o INEA informou que monitora com frequência bimestral oito pontos das lagoas Tijuca e Jacarepaguá, e, com frequência trimestral, os rios que desaguam no sistema lagunar, sendo disponibilizados no site do órgão. O instituto também disse monitorar os efluentes por meio do programa Procon Água e checar alertas de desmatamentos emitidos pelo programa Olho no Verde, que, via satélite, monitora o desmatamento da Mata Atlântica em território fluminense. 

Sobre as questões referentes a planejamento urbano, a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (SMPU), através da Gerência de Macroplanejamento, disse que, no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Sustentável da Cidade do Rio de Janeiro em vigor, são estabelecidos os objetivos, as diretrizes e as ações para a política de habitação, como os programas Habitacionais de Interesse Social (HIS), em Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), que traçam um plano de urbanização, além de dispor sobre as condições de urbanização de favelas e loteamentos irregulares e sobre as condições do reassentamento de populações de baixa renda oriundas de áreas de risco. 

A SMPU ainda informa que, em 2021, foi enviado à Câmara Municipal o Projeto de Lei Complementar nº 44/2021, abordando a política urbana e ambiental do município, instituindo a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro. Por fim, a SMPU e ressalta que a aplicação das políticas setoriais depende da disponibilização de recursos, conforme orçamentos dos órgãos executores, aprovados nas leis anuais de Diretrizes Orçamentárias.

Esta é a segunda matéria de uma série de quatro sobre “A Degradação do Pantanal Carioca”, como já foi conhecida a Baixada de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. 

Sobre os autores:

Felipe Migliani é formado em Jornalismo pela Unicarioca e tem especialização em Jornalismo Investigativo. Atua como jornalista independente e repórter freelancer nos jornais Meia Hora e Estadão. É coloborador do Coletivo Engenhos de Histórias, que investiga e resgata histórias e memórias da região do Grande Méier, e do PerifaConnection.

Fernanda Calé é formada em Jornalismo pela UniCarioca e se especializou em Comunicação Popular como uma maneira de falar com diversos públicos de maneira clara e simples. Há dois anos ajudou a fundar a Agência Lume, uma agência de comunicação que produz jornalismo independente na região de Jacarepaguá, principalmente em Rio das Pedras, lugar onde nasceu.


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