“É claro que nós estamos falando de muito mais do que um evento esportivo”, disse Orlando Santos Junior. “Estamos falando de um projeto de cidade, um projeto de reestruturação urbana que merece ser discutido pela sociedade, por todos nós”. Ele argumentou que a série de intervenções que estão ocorrendo como parte da preparação à Copa e às Olimpíadas reflete uma “visão maior” do Rio de Janeiro — a que expulsa os pobres para as periferias da cidade.
Orlando, professor no Instituto de Pesquisa de Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, e pesquisador no Observatório das Metrópoles, falou a um público de centenas de pessoas que vieram de diversas comunidades e movimentos sociais, e que se reuniu no dia 15 de maio, para o lançamento do segundo dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos de autoria do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas.
O entusiasmo na sala era visível no momento em que Orlando apresentava o documento impressionante de 130 páginas relatando as violações de direitos humanos que estão ocorrendo por toda a cidade em conjunto com (ou por trás) das transformações relacionadas aos megaeventos. Esse dossiê atualizado é a continuação do trabalho da edição anterior, publicado em março de 2012. Uma colaboração nacional entre todos os Comitês Populares foi publicada em 2011.
O dossiê mostra que a preparação para os megaeventos no Rio de Janeiro vai além da modernização de instalações esportivas e de nova infraestrutura de transporte. O documento ilustra uma reconfiguração do ambiente construído e de novas estruturas de poder político-social que estão se redefinindo para favorecer a elite, prejudicando as classes urbanas mais baixas. Remoções forçadas e arbitrárias, falta de transparência e de participação democrática, acordos institucionais incertos ao que o poder de legislar é transferido à FIFA e ao Comitê Olímpico Internacional (COI), assim como a militarização de comunidades compõem o cenário da “limpeza social”, que vem determinando quem tem acesso à cidade do Rio.
A conferência de lançamento foi dividida em dois blocos. No primeiro, Orlando Santos Junior apresentou os principais temas do documento, seguido pelo professor de planejamento urbano Carlos Vainer, que falou sobre o conceito do “estado de exceção”—no qual processos democráticos tradicionais e escolhas de decisões são suspendidos ou evitados, o direito à informação negado e direitos humanos “sistemáticamente e regularmente violados”.
No segundo bloco, representantes e líderes de diferentes comunidades compartilharam suas experiências em tentativas contínuas de resistência contra as remoções forçadas.
Ambos os blocos abordaram o ponto chave apresentado por Carlos Vainer: “Nós estamos diante de permanentes e sistemáticas violações […] de direitos fundamentais, sem a presença dos quais a palavra ‘democracia’ vira uma farsa”.
Falta de Informação, Participação e Transparência
Orlando dedicou um tempo significativo à discussão em torno das remoções forçadas, uma prática que tem se intensificado desde a primeira publicação do Comitê Popular, e argumenta que as pessoas não estão sendo dadas quaisquer oportunidades para discutir ou ao menos participar do que acaba sendo um processo violento e coercivo.
O Dossiê contêm resumos das histórias de cada uma das comunidades removidas ou ameaçadas de remoção, seus esforços de resistência permanentes e as justificações da Prefeitura, que incluem: obras de infraestrutura de transporte, instalação ou reforma de instalações esportivas, “revitalização” da Zona Portuária, “área de risco” ou “interesse ambiental”.
Até então, pelo menos 3.099 famílias foram removidas e outras 7.843 estão atualmente em perigo de remoção no Rio de Janeiro (veja o gráfico).
Orlando também argumentou que existe um importante componente geográfico nestas remoções: as comunidades estão sendo removidas de áreas de alta valorização imobiliária (Zona Sul, Zona Portuária e Barra da Tijuca) e sendo reassentadas na extrema Zona Oeste. Ou seja, há um processo de deslocamento dos pobres para áreas periféricas distantes que está ligado a um projeto maior de especulação imobiliária, e não a uma real necessidade na realização dos eventos.
As violações dos direitos humanos estão muito associadas à restrição de informação e à falta de transparência, como confirmaram os palestrantes. Carlos apontou para a relação corrupta entre o governo, a mídia e os interesses privados que, juntos, trabalham para controlar informações em detrimento das comunidades pobres da cidade. “Não há apenas uma falta de informação; há uma política sistemática, organizada, e deliberada de desinformação”.
Carlos apresentou a história da Vila Autódromo–o exemplo mais visível na cidade de resistência contínua à remoção–para retratar essa prática de desinformação, pois a Prefeitura tem usado uma série de justificativas para remover a comunidade, entre elas motivos de interesse ambiental, área de risco, perímetro de segurança para os Jogos Olímpicos, instalação de mídia e assim por diante.
Juntamente com a falta de transparência e de participação pública estão os “novos arranjos institucionais“, como os chama o dossiê, em que processos democráticos e legislativos são subordinados aos interesses da FIFA, do COI e de suas subsidiárias. Orlando fez referência à Lei da Copa do Mundo (Nº 6363) aprovada no estado do Rio em dezembro do ano passado, que estabelece uma série de restrições durante a Copa do Mundo e Olimpíadas que se estende para muito além dos jogos em si, envolvendo, por exemplo, o controle de reuniões e conferências relacionadas à FIFA, alterações no calendário escolar, controle de vendas de bens e serviços nos estádios e em grandes perímetros próximos, e controle de direitos exclusivos.
Essas restrições, muitas das quais vão contra a legislação federal, “transferem à FIFA e ao COI o poder de legislar”, afirmou Orlando. O dossiê resumiu a lei como “a expressão de um certo padrão de intervenção do poder público, marcado pelo autoritarismo e pela exceção … [entregando à FIFA e ao COI] o poder de gestão dos espaços públicos direta ou indiretamente afetados pela realização desses megaeventos”.
Em sua apresentação, Orlando pôde brevemente falar sobre outras partes do dossiê, abordando os temas de mobilidade e de redes de transporte ligadas a áreas centrais; empregos e a remoção de ambulantes, camelôs e outros trabalhos informais; o esporte e a privatização e renovação do Maracanã, que, segundo ele, alteraram o “espírito popular” do estádio; o meio-ambiente e o discurso usado pelas autoridades para legitimar remoções arbitrárias; e, por fim, a segurança pública, e, em especial, o alto custo do aparato de segurança para os eventos, além de despesas crescentes e de negligências e transgressões pelas UPPs, BOPE e Polícia de Choque.
Comunidades Ameaçadas
Durante o segundo bloco, representantes e líderes comunitários de toda a cidade falaram sobre suas experiências em ser removidos de suas casas e seus esforços de resistência como resposta à ameaça de remoção.
Vitor Lira, morador do Santa Marta, comparou as diferentes atitudes do governo que, após décadas de abandono, agora quer transformar a comunidade em uma “Disneylândia”, um processo que começou desde a pacificação. Segundo ele, o Santa Marta tornou-se “um território de negócios”, onde o mercado imobiliário e turismo estão entrando na favela para explorar e lucrar. No topo do Santa Marta, a cidade determinou que 150 casas seriam removidas, dizendo ser uma área de risco; Vitor e outros argumentam que essa ação é parte de um esforço contínuo para favorecer e aumentar o turismo. A tentativa de remoção ressalta o que Vitor chamou de “ações covardes e arbitrárias que ficam obscuras dentro da comunidade”. Embora a UPP do Santa Marta seja uma das maiores referências de sucesso na pacificação, Vitor explicou que “a opressão continua, só que agora foi oficializada”. Ele disse: “até hoje, sou desrespeitado, sou discriminado, sou marginalizado nesse local”.
Em um relato emocionante, Rosilene Gonçalves, antiga moradora do Largo do Tanque, descreveu a maneira como a Prefeitura retirou as pessoas como se “morador da favela não tivesse valor”, e, entre lágrimas, contou sobre a luta da sua família no início deste ano. Na primeira semana de fevereiro, 66 famílias tiveram suas casas marcadas para remoção; três semanas depois, apenas 10 famílias restaram, lutando para permanecer em suas casas ou para, então, receber alguma forma de recompensa adequada. Rosilene, que tem um filho treinando na equipe olímpica de vôlei e outro deficiente, descreveu as autoridades–que ofereceram apenas R$18 mil–como intimidadoras: “Fizeram várias ameaças de botar gente na rua, se a gente não saísse”.
Maria do Socorro, moradora da comunidade Indiana, na Tijuca, disse que a resistência contra a “invasão do poder público” começou no começo de 2012. Ela contou que Jorge Bittar, ex-secretário Municipal de Habitação, informou à comunidade que ela receberia melhorias através do Morar Carioca, programa municipal de urbanização, e que ninguém seria obrigado a se retirar. Nesse interim, a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) começou a designar casas para remoção, citando “área de risco”. Daí em diante, começou o terror, diz Maria: “Ou você ia, ou você aceitava a indenização, ou então o trator ia derrubar a sua casa”. A indenização, hiper-desvalorizada, variava de R$15 mil a R$20 mil. Como a Prefeitura começou a demolir as casas, a comunidade também começou a se organizar: “O poder público não conseguiu nos tirar de lá… Temos que unir as comunidades, divulgar os casos e a situação”. As 397 famílias que lutam para permanecer na Indiana estão agora no processo de obtenção de título de propriedade.
Emília de Souza falou em nome dos moradores do Horto, uma comunidade de 589 famílias descendentes dos trabalhadores–alguns com mais de 80 anos de serviço–do Jardim Botânico do Rio. Hoje, essas famílias estão sob ameaça de remoção sob o pretexto de “proteção ambiental”, e desde 2008 a comunidade têm organizado um projeto para a posse da terra, com o apoio de diversas instituições acadêmicas e governamentais. Em discurso apaixonado, Emília criticou a relação mafiosa entre as várias facções da elite carioca que ela percebe como tentando remover a comunidade. “Infelizmente, os poderosos não querem pobres morando na Zona Sul”, exclamou. Não só não existe uma proposta concreta determinando um destino adequado aos moradores, mas também não existe uma proposta relatando como a terra será usada após essas mudanças: “A única proposta que eles têm é da retirada da comunidade, mas sabe para que? Para entregar na mão dos banqueiros? (…) Mas a comunidade vai resistir até o fim!”. A multidão aplaudiu em apoio à resistência.
O evento mostrou que o dossiê é muito mais do que uma publicação de pesquisa. Neste contexto de violações dos direitos humanos e de uma política sistemática de desinformação, o documento surge como um instrumento de luta extraordinário. Orlando concluiu falando sobre o objetivo geral do dossiê e do Comitê Popular:
“Tendo como base o direito à cidade – ou seja, o direito de todos nós de participarmos das discussões e decisões relacionadas à cidade onde vivemos, esse dossiê convida a todos nós… a lutar e resistir ao projeto olímpico marcado por processos de exclusão e desigualdade social… É um convite para uma mobilização em torno de um projeto de Copa do Mundo e de Olimpíadas que garanta o respeito aos direitos humanos e promova o direito à cidade”.
Fotos por Rafael Daguerre.