Favela Não Se Cala Continua Mobilizando e Conscientizando na Providência e no Horto

Mês passado na Providência, o movimento Favela Não Se Cala organizou um encontro com mais de 50 moradores de favelas cariocas, promotores, estudantes de direito, ativistas e assistentes sociais. Fotógrafos e cinegrafistas passaram pelo círculo de discussão, que incluía também a equipe do Domínio Público, um projeto investigativo que está sendo produzido atualmente sobre a privatização do Rio. Moradores das favelas compartilharam suas experiências com relação às políticas de estado dirigidas às suas comunidades e os seus esforços para se oporem à estas políticas, a saber: o deslocamento de milhares de famílias para habitações públicas com baixa transparência e obras públicas que muitas vezes prejudicam moradores mais do que os ajudam.

O Fórum da Providência no sábado, 19 de maio, foi uma das várias atividades organizadas ou assistidas pelo grupo recentemente, que também organizou uma sessão sobre o Horto no mês anterior onde mais de duzentas pessoas estiveram presente. O grupo também esteve presente no recente lançamento do dossiê do Comitê Popular e no debate sobre segurança pública na Maré.

A reunião na Providência focou detalhadamente no clima de desenvolvimento da consciência sobre o que está acontecendo com os moradores das favelas cariocas enquanto a cidade se prepara para os futuros megaeventos. Na Providência, mais de um terço das casas (mais do que 600) foram ou estão marcadas para remoção sob a justificativa que os moradores moram em áreas de risco, um conceito refutado por um engenheiro durante a reunião, ou que as remoções são necessárias para a execução do Morar Carioca, o programa municipal que se coloca proporcionando urbanizações nas favelas.

Denúncias Sobre o Teleférico

Até agora 46% do dinheiro gasto com o programa Morar Carioca na Providência foi utilizado no teleférico que atualmente ainda está sendo construído, e que o Prefeito Eduardo Paes alegou irá se tornar “o Pão de Açúcar número dois”. Durante a reunião, Isabel Costa Cardoso, professora de Assistência Social da UERJ e integrante do Fórum Comunitário do Porto, falou sobre os três maiores impactos para os moradores ao receber um teleférico, já que também conversou com moradores do Complexo do Alemão, onde um teleférico já foi instalado, e da Rocinha, onde um está sendo planejado: “O primeiro ponto é o grau em que a instalação desses teleféricos é rentável para o mesmo grupo de empresas de construção”, disse Isabel Costa Cardoso. Ela continuou: “O segundo ponto é sobre as remoções e a falta de participação pública que fazem parte do processo de instalação do teleférico”. Na Providência, mais de metade das casas situadas nas áreas mais altas do ponto do teleférico–supostamente os moradores que teriam o maior benefício da instalação–estão marcadas para remoção. Algumas casas já foram demolidas, e os seus antigos moradores hoje moram em uma das seguintes situações: em casas num conjunto habitacional na Zona Oeste; recebendo R$400 de aluguel social; construindo casas em favelas distantes em terrenos comprados com dinheiro das indenizações recebidas; ou morando com amigos e familiares enquanto esperam e negociam o pagamento de indenizações por suas casas. O restante da construção do Morar Carioca na Providência atualmente está embargado por decisão judicial que alega a falta de cumprimento de requisitos da audiência pública antes da construção começar.

“Nosso terceiro ponto a destacar”, continuou Isabel, “é que, embora esses teleféricos sejam descritos agora como métodos para aumentar o acesso ao transporte, um teleférico nunca é mencionado nem na lei municipal, estadual nem federal como um método eficaz para mobilidade urbana”.  Isabel Cardoso convidou todos que estavam interessados em participar no refinamento destes três pontos, depois da reunião, para criar estratégias para a sua disseminação dentro e fora da Providência.

“Minha avó construiu sua casa na Providência sem precisar de um teleférico, sem um moto taxi e sem uma kombi ou van”, diz o morador Cosme Felippsen. “Ela caminhava até lá em cima.” Cosme leu em voz alta um poema que ele mesmo escreveu sobre a história da Providência, a primeira favela do Rio, falando de sua fundação por soldados trabalhadores voltando da Guerra de Canudos em 1897, as instalações iniciais de prédios e espaços públicos e as fases mais recentes de desenvolvimento como a chegada das Lan Houses.

Eron César dos Santos, um professor de capoeira da Providência, disse estar feliz que pesquisas históricas estão sendo conduzidas sobre o papel da Providência no nascimento do samba. O que o fizeram ficar mais receoso, foi ver coisas como um guia de restaurantes das favelas a venda em uma loja chique por R$70. “Temos que ter cuidado com essas coisas. Quem está ganhando com esta promoção da cultura?” Eron perguntou, argumentando que é importante para moradores das favelas manterem o domínio sobre suas identidades e o legado que herdaram. “Você não precisa sair da favela para melhorar sua vida. Você precisa contar a sua história”.

Organização Para Evitar Remoções

Maria do Socorro atualizou o grupo sobre a história da sua comunidade, Indiana-Tijuca, que é representativa em dois sentidos: no grau da transparência com que as remoções estão sendo conduzidas e nas táticas que as comunidades podem usar para se oporem as remoções da melhor forma.

Maria do Socorro contou ao grupo que no dia 17 de janeiro de 2012, ela e outros membros da Associação de Moradores de Indiana-Tijuca foram chamados para uma reunião com Jorge Bittar, o então Secretário Municipal de Habitação, que alegou que a comunidade viria a receber melhorias. Duas semanas depois, em todas as casas da comunidade foram pintadas com spray as iniciais SMH, da Secretaria Municipal de Habitação, sinal de que estavam marcadas para serem demolidas. Quando algumas famílias e residências foram removidas, a comunidade começou a lutar. Em 10 de dezembro de 2012, receberam uma ordem judicial suspendendo a demolição das casas, por causa da identificação de uma pesquisa conduzida entre 2006 e 2010, que alegava que a localização da comunidade era em uma área de baixo risco ambiental. Até esse momento, 110 famílias já tinham sido removidas para habitações públicas em Triagem, na Zona Norte do Rio, a quase uma hora de transporte público. 720 famílias ainda continuam na comunidade, que iniciou a processo de legalização de propriedade da terra em 16 de maio.

Maria do Socorro alegou que embora a sua comunidade devesse servir como exemplo de uma história de sucesso na luta de comunidades pelo direito de ficar, eles também enfrentaram um dos mais comuns obstáculos no exercício desse direito: união. “Nós tivemos uma audiência pública no dia 9 de maio, com o vereador Renato Cinco e o Subsecretário de Habitação Marco Antonio sobre os despejos. Eu tenho que dizer, foi agitada, com cinquenta pessoas pedindo novas unidades de habitação pública e cinquenta que queriam ficar na comunidade”. Maria do Socorro disse que, em geral, a comunidade tem uma inércia significativa, porque 500 das demais famílias querem ficar, e 120 querem ir. “A maioria das pessoas que você perguntar vai dizer: ‘pelo amor de Deus, não me remove para Triagem'”. Maria do Socorro encorajou todos os presentes para esclarecer suas próprias mensagens sobre o que suas comunidades querem e para usar recursos como o escritório da Defensoria Pública para divulgar as informações sobre os seus casos.

André Constantine, morador da Babilônia, disse que às vezes a razão porque nem todas as comunidades são tão bem sucedidas como Indiana nesses assuntos vem de um grupo interno: a Associação de Moradores. “Em muitos casos, a Associação de Moradores foi comprada pela Prefeitura, recebendo um tratamento especial em troca de não protestar contra as ações municipais com relação à favela” disse Constantine. Clientelismo dentro da Associação de Moradores tem sido um problema na governança democrática das favelas desde que começaram a ser exigidas a legalização das associações pelo governo do Estado do Rio de Janeiro no início da década de 60. Existem muitos exemplos: em março deste ano, depois que Elisângela Sena, moradora do Pavão-Pavãozinho, reservou uma praça perto de sua casa com dias de antecedência para uma reunião do Favela Não Se Cala, ela descobriu duas horas antes que a associação estava usando a praça para um evento patrocinado pela Prefeitura. Isto obrigou o Favela Não Se Cala a lutar por um espaço novo e a tentar divulgar por telefone a mudança para todos os que pretendiam assistir o evento.

Constantine disse que por causa desses problemas é particularmente importante ficar organizado e manter os fluxos de informação abertos para o que está ocorrendo.

Inconsistências no Julgamento de ‘Áreas de Risco’

Maurício Campos, engenheiro civil e mecânico, que trabalhou por mais de quinze anos com projetos de estabilização de encostas, esclareceu algumas coisas sobre a justificativa dada pelo município de “risco ambiental” na remoção de famílias de favelas. Campos já havia dito no passado que os dramáticos deslizamentos de terra que ocorrem em algumas favelas durante a época de chuvas são o resultado da falta de estabilização de encostas e de infra-estrutura de drenagem adequadas, os dois sendo uma responsabilidade pública, e que nenhuma favela precisa ser completamente removida devido a riscos geográficos.

“É muito menos caro resolver a questão do risco ambiental fornecendo realmente esses projetos de estabilização para as favelas do que removê-las totalmente”, disse Campos. “No entanto, a Prefeitura anunciou que eles estão planejando fazer isso com 122 favelas”. Existem várias inconsistências em relação à justificativa de risco ambiental: uma comunidade no Borel foi removida por estar localizada numa área de risco, só para depois serem construídos apartamentos de R$600.000 no mesmo local.

Campos encorajou o grupo a considerar a justificativa de risco, delineada em uma publicação do município de 2010, quando estavam somando o número total de famílias sendo realocadas pela cidade. “Esta semana, vi números de até 8.000 sendo denunciados por causa do dossiê do Comitê Popular que apresentou violações de direitos humanos no período de preparação para os futuros megaeventos. Mas esse número é muito baixo. O número de famílias que vive nessas comunidades de suposto ‘alto risco’ é de 20.247. Se esse número for multiplicado por mais ou menos cinco membros por famílias, são por volta de 100.000 pessoas sendo removidas graças ao pretexto de risco”.

Campos mostrou uma cópia das diretrizes do programa Morar Carioca. “Neste documento, que foi assinado como decreto da cidade em outubro de 2012, há instruções para a remoção de quem vive em áreas que a cidade têm classificado como áreas de risco. Bem ali, isso quebra a lei nacional e a lei municipal, que exigem explicitamente a urbanização de favelas”. Campos encorajou os participantes a estar ciente dessas leis, que foram impressas em um documento distribuído pelo Fórum Comunitário do Porto.

Discutindo Gentrificação e Segurança

Em abril, Favela Não Se Cala também se encontrou no Horto, uma comunidade perto do Jardim Botânico que está atualmente resistindo a remoção. Havia mais de 200 pessoas, incluindo representantes de quase todas as catorze favelas que hoje em dia participam do Favela Não Se CalaProvidência, Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Borel, Babilônia, Chapéu Mangueira, Indiana-Tijuca, Santa Marta, Salgueiro, Manguinhos, Acari, Rocinha, Horto e Jacarezinho. Além disso, também falaram representantes da Pastoral das Favelas, do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, ex-integrantes do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado (NUTH), e da faculdade de direito da PUC-Rio. Repper Fiel de Santa Marta, que canta sobre identidade das favelas, remoções e gentrificação deu um show ao vivo.

Vários moradores de favelas falaram sobre o círculo pacificação-comercialização que está sendo cada vez mais discutido nas favelas e como isso tem gerado um aumento dos preços de serviços públicos que é injustificadamente alto até para a cidade formal. Para os moradores das favelas, esses aumentos dos preços servem como uma pressão para se mudarem da favela. Como muitos não estavam acostumados a receber contas particulares de serviços públicos e pagavam diretamente à Associação de Moradores ou outro órgão, não sabiam o que eram preços normais, portanto não sabiam se deveriam protestar. Uma senhora do Salgueiro mencionou uma conta da Light de R$350 tendo só uma televisão e uma geladeira em sua casa.

“Esteja informado de que estas questões têm a ver com qual classe social é permitida viver em qual parte”, disse Constantine da Babilônia. “Eles tiraram as vans da Zona Sul. Todas as tarifas nos ônibus públicos estão subindo. Mas somos nós que sustentamos a sociedade aqui”, referindo-se à cultura da favela e aos trabalhos que os moradores da favela executam na cidade.

Nos termos da lei de habitação distribuída pelo Fórum Comunitário do Porto, a estipulação para a urbanização local das favelas–onde em vez de desmontar comunidades funcionais mudando-as para habitação pública, os serviços públicos que faltam são trazidos pra dentro da comunidade–está explicada no código legal para servir a “função social da terra no Brasil”, que é a função de ter habitação acessível independentemente de classe social.

Francilene Cardoso, moradora do Chapéu-Mangueira, disse que é importante para moradores das favelas se manifestarem sobre o abuso físico da polícia, além dos altos custos das remoções forçadas e a gentrificação que estão passando. “Parte desse processo é que as pessoas jovens estão sendo baleadas e mortas pela polícia”, disse ela, referindo-se a táticas com armas de fogo da polícia em áreas residenciais lotadas. “Você tem o direito a um tratamento justo por parte da polícia, assim como você tem o direito à moradia”.

“Nós sabemos o que precisamos; nós não precisamos que o governo nos diga”, disse Constantine sobre o aumento de intervenções policiais e de projetos de urbanização monumentais. “Precisamos que o nosso direito de moradia seja respeitado. Precisamos que a nossa dignidade seja respeitada. E nós precisamos de união. Sem a participação popular, não vamos transformar nada”.

Adrianna Britto, defensora publica e integrante do Fórum Justiça, encorajou o grupo à participação como o método mais certo de atingir um resultado justo. “Vocês são cidadãos. Você tem uma voz, e usá-la é a única forma de alcançar a justiça”.

Tanto as reuniões no Horto como na Providência incluíram membros de outros movimentos sociais da cidade, alguns não eram moradores das favelas. Mônica Lima falou sobre o fechamento difundido das instalações de saúde pública ocorrendo no estado e sobre a privatização encorajada pelo governo de planos de saúde. Outro participante falou sobre a importância de aceitar aliados ao movimento Favela Não Se Cala que não sejam moradores de favelas, mas que poderiam oferecer suporte, na forma de comunicação ou assistência técnica.

Constantine realçou durante as duas últimas reuniões que o Favela Não Se Cala era um projeto popular de educação de médio a longo prazo. “Nós não queremos aliança com nenhum partido político, porque o sistema atual no Brasil não é uma democracia”, disse ele na Providência. “Eu não tenho fé nele”. Em vez disso, ele encoraja a comunicação como o método mais certo para mobilizar pessoas, porque é uma maneira direta de opor a informação inconsistente do governo municipal sobre futuras mudanças nas vidas dos moradores das favelas.

Particularmente, Constantine disse que é importante ter comunicação sobre as leis e as diretrizes da cidade e como elas se comparam à atual situação. “As pessoas estão me dizendo que eu não tenho o direito de viver na minha casa”, disse Maria do Socorro de Indiana-Tijuca. “Eu resisto. Eu tenho o direito”.