Click Here for English
Esta é a primeira de uma matéria de duas partes sobre a história de doze anos de luta por moradia dos moradores da Favela Skol, que revela os bastidores da política no Rio de Janeiro. em ano eleitoral para as principais cadeiras políticas do país, incluindo para o governo do Estado. Não deixa de ler a parte 2 aqui.
O xadrez é um jogo de tabuleiro que simula o conflito entre dois exércitos, cada qual composto de 16 peças passíveis de movimento em tabuleiro, disputado com a utilização de intenso raciocínio lógico e estratégico.
Todas as peças (rei, rainha, torre, bispos e peões), exceto o cavalo, movem-se em linha reta—horizontalmente, verticalmente ou diagonalmente. Ganha o jogo quem conseguir dar um xeque-mate, um ataque decisivo ao rei, peça mais importante do jogo de xadrez, deixando-a sem possibilidade de fuga ou defesa.
Na manhã de um sábado nublado de inverno no Rio de Janeiro, em 11 de junho, moradores, lideranças locais e políticas se encontraram na Avenida Itaóca, em frente a uma escola, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Todos compareceram ao local para uma cerimônia que marcou o início das obras de 495 unidades habitacionais. Nesse mesmo local onde futuramente será construído o condomínio para os moradores, estava a Favela Skol, uma ocupação que foi removida pelo Estado em 2010, quando um prédio ocupado pelas famílias pegou fogo. Cláudio Castro, atual governador e candidato à reeleição, esteve na cerimônia.
Conforme estabelecido no artigo 77, da Lei nº 9.504/97, desde a Emenda Constitucional que permitiu a reeleição do Chefe do Poder Executivo, sem o afastamento do cargo para concorrer às eleições: “é proibido a qualquer candidato comparecer, nos três meses que precedem o pleito [eleitoral], a inaugurações de obras públicas”.
É vedado ao chefe do Poder Executivo a assinatura de convênios, sorteio de casas populares, vistorias de obras e festas tradicionais. O critério tem o objetivo de prevenir que agentes públicos se utilizem da inauguração de obras públicas em detrimento dos demais candidatos: a máquina pública não pode ser utilizada na disputa eleitoral.
No dia-a-dia do xadrez político, é comum que, às vésperas da data-limite das restrições, haja uma “corrida contra o tempo” para assinar e inaugurar obras. Cláudio Castro não fugiu a regra. Ele intensificou a sua agenda de inaugurações de obras e projetos públicos para manter o capital político. Conforme noticiado pelo Extra, o governador participou do lançamento de inauguração de campos de futebol e fez questão de estar presente na entrega de leitos hospitalares e unidades habitacionais, em compromissos espalhados pelo estado. No total, ele participou de 18 agendas em apenas uma semana, entre junho e julho.
A candidatura à reeleição de Cláudio Castro ao governo do Rio foi confirmada pela convenção do Partido Liberal (PL) durante reunião realizada em 20 de julho, tendo como vice-governador na chapa Washington Reis (MDB), ex-prefeito da cidade de Duque de Caxias, que já foi condenado por crime ambiental e pode ser considerado inelegível.
O evento de inauguração do início das obras do Condomínio Skol no Complexo do Alemão, portanto, aconteceu dentro do prazo das restrições contidas na legislação eleitoral e na Resolução TSE nº 23.674/2021, que estabelece o calendário eleitoral. A data-limite que marca o prazo de três meses passou a vigorar somente em 2 de julho, exatamente três meses antes do dia do 1º turno das eleições, em 2 de outubro.
Em 18 de março, visita anterior do Governador Cláudio Castro ao Complexo do Alemão, o clima ficou tenso. No Morro da Baiana, Castro apareceu para marcar o início do projeto de recuperação do teleférico. Lá, foi pressionado por uma das lideranças do movimento por moradia no Complexo do Alemão.
“O senhor disse que o teleférico e as moradias iriam caminhar paralelamente. Nós não aguentamos mais promessas… eu não posso sorrir! Eu não tenho casa! E tem muita família aqui no aluguel social vendo novamente ser gasto milhões no teleférico… é inadmissível. Moradia é um direito humano!”, destacou o Voz das Comunidades na época.
A autoria da frase é de Camila dos Santos, conhecida como Camila Moradia, reconhecida internacionalmente como defensora de direitos humanos. Minutos antes da fala dela Cláudio Castro havia falado: “às vezes a gente não gosta de vir num lugar porque as pessoas estão tão desacreditadas que ficam olhando para a gente com cara carrancuda”.
A ativista, então, pulou por cima das câmeras de celulares e fotógrafos e começou a cobrar a promessa do governador do Estado feita em junho de 2021, quando recebeu lideranças do Complexo do Alemão para saber sobre as demandas da comunidade em diversas áreas. Na ocasião ele prometeu aos moradores da Comissão de Moradia do Complexo do Alemão que a liberação da verba para o teleférico sairia junto com a verba da construção das casas.
Segundo Camila Moradia, ele disse que iria “sair tudo junto, saísse ou não a verba da venda da CEDAE para a iniciativa privada”. Por isso ela questionou o governador, entregando a ele um abaixo-assinado demandando melhorias no aluguel social e das moradias da região:
“Eu estou há 12 anos sem casa. É óbvio que eu tenho que fazer cara feia. O teleférico custou mais de R$200 milhões e deixaram sucatear. E aí, ele vem ao Complexo do Alemão anunciar R$170 milhões para a mesma obra? Eu vou ficar ali batendo palma para o teleférico? Ainda que eu reconheça a importância da obra, pois com o fechamento houve uma evasão escolar enorme, temos mais de 1.300 famílias sem casa. Só eu tenho doze anos que fui removida da Favela Skol.”
A moradia é direito humano fundamental assegurado pela Constituição Federal desde 1988. É de competência comum da União, dos estados e dos municípios. Conforme aponta o texto constitucional, cabe aos entes federativos “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. Há, inclusive, previsão de uso de terras improdutivas não utilizadas e/ou prédios públicos ou privados que acumulam dívida com o Estado.
A história da “Favelinha Skol”, como era conhecida no Complexo do Alemão, começa pela necessidade básica de sobrevivência e falta de políticas públicas de moradia. Após pressão dos moradores, o governo publicou um edital no Diário Oficial no mesmo dia para construção de 320 unidades habitacionais. A obra será construída pela Secretaria de Infraestrutura e Obras justamente no terreno da antiga fábrica de cerveja Skol, na Avenida Itaoca, 2.277, Inhaúma.
De acordo com Camila, o texto do edital prevê que esta será a primeira fase das obras na comunidade, mas que serão entregues 1.300 imóveis para atender todas as famílias cadastradas que hoje vivem de aluguel social. Nesta primeira fase, o projeto prevê dois condomínios, com apartamentos de 45m² e dois quartos cada.
Direito ou Peça de Jogo de Tabuleiro?
O início das obras do futuro condomínio residencial–cujos prédios terão nomes de lideranças históricas da comunidade–é a realização do sonho da casa própria de 600 famílias que vêm lutando há mais de 12 anos por acesso à moradia no Complexo do Alemão.
A história da Favela Skol começa nos anos 2000, quando moradores do Complexo do Alemão, já com dificuldade de renda naquela época, decidiram ocupar um antigo terreno abandonado onde antes funcionava a fábrica da marca de bebidas que fechou em 1994.
“Na Skol, as pessoas viviam realmente abaixo da linha da pobreza. Era muita miséria. Lá tinham três prédios e um deles pegou fogo. Foi quando o vice-governador da época, o Pezão, foi visitar o local e falou que iria remover todos de lá”, relembrou Camila. Ela chegou à ocupação no final de 2003, quando estava com grande dificuldade de pagar aluguel.
Na época da ocupação do terreno pelos moradores, o Estado do Rio de Janeiro era governado por Rosinha Garotinho (2003-2007). Após o governo Rosinha, o Rio de Janeiro passou a ser governado por Sérgio Cabral (2007-2014). Esse governo fez um grande volume de obras no Complexo do Alemão, impulsionado pela ocupação da comunidade pelas forças de segurança em 2010 e posterior implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
O investimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão começou em 2008, com a construção do teleférico, listado na época como um dos legados que seria deixado para a cidade depois da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Segundo Camila Moradia, justamente devido às obras do PAC, não houve qualquer resistência das famílias à remoção:
“A gente não ofereceu resistência porque vivíamos lá de fato abaixo da linha da pobreza… e estava tendo a obra do PAC. Todo mundo estava vendo os condomínios subirem, todos sendo construídos e entregues. Então, esse era o sonho de dignidade! Por isso nós não oferecemos resistência. Uma parte saiu em 2010, outra em 2011. Eu saí [da ocupação] em 22 de setembro de 2011 e acompanhei todo o processo de demolição. Eles falaram que dentro de um ano e meio seria tudo construído. Acreditamos! E nós acreditamos porque nós vimos que em nove meses outros prédios foram construídos. Então, achávamos que ia acontecer o mesmo com a gente. Saímos sem apresentar resistência.”
O reassentamento prometido naquela época era que as famílias, ao sairem do local, passariam a receber aluguel social para depois as famílias retornarem para o local já com as unidades construídas. “Desde 2011, eu recebo o valor de R$400 de aluguel social… Existe um decreto que postula que não é possível mudar o valor, mas esse mesmo decreto também diz que a pessoa não pode permanecer no aluguel social por mais de cinco anos. Eu já estou há onze anos. É um decreto falho”, afirmou Camila.
No total, 1.300 famílias recebem aluguel social do Governo do Estado no Complexo do Alemão. Segundo o portal Aluguel Social da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (SASDH), no total, 519 famílias cadastradas como moradores da “Comunidade Skol” receberam o valor de R$400 de aluguel social até junho de 2022, totalizando o valor de R$207.600. No entando, o número total de famílias que recebem o aluguel social no Complexo do Alemão é ainda maior.
Os dados revelam como e quanto o direito à moradia digna e à construção de condomínios populares precisa avançar no Complexo do Alemão e em outras favelas do estado. Somente no Jacarezinho, por exemplo, há 1.412 famílias em situação de aluguel social, além de 386 oriundas da remoção da comunidade CCPL. A favela foi formada também por uma ocupação de pessoas sem teto dos galpões abandonados da fábrica da Cooperativa Central dos Produtores de Leite (CCPL), fechada no início dos anos 2000, em Benfica.
Ambas as regiões receberam obras de infraestrutura do Plano Estratégico do Governo do Estado do Rio de Janeiro, em parceria com o governo federal através do PAC.
O Portal do Aluguel Social ainda mostra que há outras pessoas cadastradas em favelas da capital do Rio, e na Baixada Fluminense, além de comunidades nos municípios da região Serrana de Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis.
A política pública habitacional para as favelas e populações periféricas, portanto, está no tabuleiro da agenda política dos candidatos aos cargos de deputado federal e estadual, Senado e da presidência nas eleições de 2022, sobretudo na de governador.
A reportagem sobre como a moradia popular no Rio de Janeiro se tornou uma peça de xadrez no jogo eleitoral e eleitoreiro do Estado do Rio, a partir da análise e relatos das famílias da Favela Skol, no Complexo do Alemão, ainda não acabou. Na parte dois da reportagem especial, contamos os bastidores e a saga das famílias do Complexo do Alemão para acessar o direito à moradia após serem removidos pelo Estado.