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No Mês da Consciência Negra, esta matéria apresenta três humoristas negros que se dedicam ao humor antirracista.
No final de setembro, Dan Mendes, homem preto, nascido e criado em Duque de Caxias, estreou sua peça de humor Por Trás das Câmeras – O Show, na Zona Norte do Rio. Em menos de 24 horas, os ingressos esgotaram. Ele abriu um segundo dia na agenda e, novamente, o teatro, que tem ocupação de 455 lugares, estava cheio. O espetáculo, que mistura humor como ferramenta de luta antirracista com dança e teatro, contou com o patrocínio de uma cervejaria.
“Ainda estou absorvendo tudo que aconteceu. Coisa muito linda! Duas sessões lotadas no Rio de Janeiro. Esgotadas em 30 minutos. Nós escrevemos um novo capítulo na minha história. Obrigado”, agradeceu Dan, pelo Instagram, onde reúne mais de 700.000 seguidores. Em sua rede social, Dan compartilha conselhos amorosos e faz crítica social através do humor. Ele foi formulando suas peças de comédia a partir da vivência de uma família preta que enfrenta o trânsito, ônibus lotados, distância até o trabalho, dificuldades para adquirir itens básicos de consumo, entre outras coisas tão comuns a famílias pretas e periféricas, como a dele mesmo.
Dan não é o único artista preto que usa a comédia como ferramenta de discussão social. Marcos Machado, que fala de racismo e outras desigualdades sociais, conta como enfrenta esse mal social diariamente: “Um dia, voltando do show, eu desci na estação de Nilópolis. Tinha uma senhora que achou que eu ia assaltar ela. Ela acelerou o passo, eu acelerei também, ela atravessou a rua, eu atravessei também, ela correu e eu corri também”, contou em uma de suas últimas postagens. Ações cotidianas somadas a um humor com algumas pitadas ácidas fizeram com que Marcos conquistasse 187.000 seguidores no Instagram.
Apesar de, às vezes, terem filmes sobre seus shows ou suas vidas, mais de um milhão de seguidores em suas redes sociais e de todo o alcance de seu combate ao racismo feito de forma leve e descontraída, nada impede que humoristas negros sofram com a discriminação racial. Um caso recente e emblemático foi o do humorista Yuri Marçal. Ele e sua família receberam diversos xingamentos e ameaças em outubro deste ano, após ele postar um vídeo em suas redes sociais falando do segundo turno das eleições de 2022, defendendo a importância de virar votos em oposição ao Presidente Jair Bolsonaro. Segundo disse em um vídeo postado em seu Instagram, ele já se acostumou a receber ameaças, mas foi a primeira vez que fizeram isso com sua família por causa de seu trabalho. Essa ameaça o assustou tanto que ele preferiu arquivar os vídeos.
“Eu faço comédia para fazer as pessoas rirem, mas… eu postei um vídeo falando sobre virar votos… Recebi vários xingamentos e várias ameaças… uma dessas ameaças era a placa do carro da minha noiva. E aí é complicado porque envolve outra pessoa. Porque se eu recebo a ameaça, como já recebi várias vezes e infelizmente normalizei isso, eu me viro e lido com as consequências. Só que eu não quero que ninguém, principalmente pessoas que eu amo, sejam prejudicadas por alguma coisa que eu tenha falado. E aí decidi arquivar o vídeo, além de outros vídeos mais curtos também, que estão em outras redes sociais.” — Yuri Marçal
Autocensura infelizmente segue sendo uma estratégia de autopreservação muito comum entre ativistas e humoristas negros. Como afirmou Yuri, ainda no vídeo citado acima: “Não quero ser mártir de nada, porém, nesse momento, resolvi arquivar esse vídeo e em breve esse pesadelo acaba”. No vídeo, ele deixa evidente que acha que tais ameaças partiram de apoiadores do presidente da República.
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Segundo Lívia Marques, psicóloga preta e antirracista, humoristas pretos conseguem estabelecer um nível de identificação com outras pessoas pretas que não é possível ser feito por humoristas brancos. Isso se deve ao conjunto de vivências e violências cotidianas compartilhadas pelo ser preto e periférico nas grandes cidades do Brasil. É sobre ter um repertório e valores comuns, uma linguagem verbal e corporal compartilhada, vir dos mesmos territórios. Sobretudo, é não se ver no lugar subalterno da piada, humilhado para o riso da pessoa branca. É sobre rir de si mesmo e de suas vivências, sem se desumanizar. É, pela primeira vez, rir sobre o preto periférico partindo de um lugar de respeito e autoestima, não de exotização, estigma, criminalização e racismo.
“Quando humoristas brancos contam piada, o negro muitas vezes é posto em um lugar de humilhação, de ser exposto dentro de uma humilhação. Já os humoristas negros falam inclusive de outras minorias, mas em lugares que possamos estar fazendo decisões, confrontam a escassez, trazem reflexão e diálogo entre nós, não de vergonha, de inferioridade ou de desconfiança.
É muito interessante os movimentos que os comediantes negros têm feito. Eles têm trago arte e pertencimento. Muita gente fala sobre identidade, inclusão e diversidade. Isso é, sobretudo, pertencer! É praticar o riso mesmo em cima da dor tão imensa da população negra, que vivencia o apagamento diário [no humor]. O Yuri Marçal, por exemplo, traz um humor que faz com que a gente pense, que a gente reflita. Não é um humor que traz um movimento de marginalização. Pelo contrário, ele visibiliza o lugar para que possamos rir sem que sejamos apagados, sem que soframos humilhações.” — Lívia Marques
Além de questões como o racismo, as ameaças e a falta de respeito, as pessoas em geral tendem a ser mais críticas e a reconhecer menos os humoristas pretos por seus trabalhos. Recentemente, o próprio Marcos Machado teve seu show em São Paulo cancelado e trocado pelo de outro comediante, só que branco, sem sequer ser avisado disso. A justificativa foi de que não teriam vendido ingressos suficientes para manter o show dele naquele horário. Ele lamentou:
“Eu viajei até São Paulo. Duas horas antes do show me avisaram que estavam cancelando, eu disse ok. Depois seguidores vieram no meu inbox dizer que tinham trocado meu show por um de um artista branco. E que aproveitaram até a arte que eu fiz para divulgar o show dele.”