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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre a questão da água e a população LGBTQIAP+ nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense.
Pela terceira vez em uma semana, entre 7 e 13 de fevereiro, o Colégio Estadual Pandiá Calógeras, que fica no bairro de Alcântara, São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, foi inundado devido às fortes chuvas ocorridas na cidade. Na terça, dia 7, o andar térreo ficou completamente submerso. A escola sofreu muitas perdas materiais. Alguns dias depois, na tempestade de sábado, dia 11, mais uma vez o prédio foi invadido por uma enxurrada. Desta vez, um muro que separa a escola de um córrego vizinho foi derrubado pela força da cheia do riacho. Depois do desabamento do muro no dia 11, a Defesa Civil interditou o colégio por tempo indeterminado, conforme informou a Secretaria Estadual de Educação (Seeduc), em nota à reportagem. Dois dias depois, no temporal de segunda, dia 13, São Gonçalo foi, pela terceira vez, atingida por um evento climático extremo e sofreu as consequências da falta de estrutura. Mais uma vez, o Pandiá Calógeras ficou inundado.
Os estudantes do Colégio Estadual Pandiá Calógeras deveriam ter começado o período letivo de 2023 a partir do dia 6 de fevereiro, junto com o restante da Rede Estadual de Ensino. Contudo, devido ao rastro de destruição deixado na escola depois do dia 7, tornou-se impossível a volta às aulas na semana do dia 6. Alguns dias depois, após um intenso trabalho de limpeza e remediação emergencial de danos por parte de funcionários e da Seeduc, a previsão era de que as aulas retornariam na segunda-feira, dia 13. No entanto, as chuvas dos dias 11 e 13 fizeram com que o início das aulas fosse cancelado novamente e, agora, sem uma previsão para a abertura do ano escolar.
Na tempestade de terça-feira, 7 de fevereiro, que atingiu toda a Região Metropolitana, São Gonçalo registrou o maior acúmulo de chuva do estado do Rio: 199mm em 24 horas, 44mm só em Alcântara, bairro da escola. Graças a esses índices de chuva e à negligência estatal, o córrego ao lado do Pandiá transbordou, deixando o andar térreo do colégio submerso e com milhares de reais em material escolar estragado. A tempestade foi tão intensa que nove sirenes de alerta contra deslizamento de terra foram acionadas em São Gonçalo, nos bairros de Arsenal, Barro Vermelho, Covanca, Engenho Pequeno, Nova Grécia, Novo México, Sete Pontes, Tenente Jardim e Venda da Cruz.
Na noite de sábado, dia 11, novamente a cidade e a escola ficaram alagadas. Só que desta vez, a chuva que caiu na região da escola foi ainda mais intensa: só em Alcântara, choveu 88mm. É por isso que o nível de água dentro do Pandiá ficou mais alto no dia 11 do que no dia 7. É possível notar que, no dia 11, segundo imagens do circuito interno de câmeras do colégio, o andar térreo praticamente desapareceu. Foi nesta enxurrada que o muro do Colégio Estadual Pandiá Calógeras foi destruído e o prédio interditado.
No dia 13 de fevereiro, dois dias depois do segundo alagamento do Pandiá, de acordo com a Defesa Civil Municipal, aconteceu a maior chuva da semana em São Gonçalo: 200mm. A escola de Alcântara, já interditada, mais uma vez, alagou. Por toda a cidade, aconteceram inundações e deslizamentos de barreiras. No bairro de Engenho Pequeno, uma senhora morreu soterrada e três pessoas da mesma família ficaram desaparecidas, com a possibilidade de estarem presas sob os escombros de sua própria casa, que caiu com o desabamento de uma encosta. Contudo, depois de três dias de procura, na quinta-feira, dia 16, as suspeitas foram confirmadas: os corpos do pai, mãe e filha do casal foram resgatados das ruínas do lar da família pelos bombeiros. Sendo assim, a chuva do dia 13 e a negligência dos governos mataram quatro pessoas em São Gonçalo.
Enchentes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro são comuns e evidenciam a falta de infraestrutura causada pela inação dos governos. No caso específico de São Gonçalo, que tem a segunda maior população do estado, 55% dela negra, segundo o último censo do IBGE, quase duas milhões de pessoas podem ser afetadas pelo descaso das autoridades. Além disso, São Gonçalo tem um dos maiores PIBs do estado, logo arrecada grandes quantias em impostos justamente para investir no bem-estar da população, o que não tem sido feito.
Estudantes na Luta por Educação e Justiça Climática
Inconformados com o que aconteceu à escola em que estudaram, ex-alunos da unidade se mobilizaram para denunciar a situação. Segundo eles, o que está acontecendo impacta diretamente a educação pública de, pelo menos, 2.000 jovens moradores de favelas e do asfalto periférico de Alcântara e arredores. O grupo tenta incidir politicamente e divulgar o que aconteceu com quem deseja estudar em São Gonçalo durante o período de chuvas.
Os ex-alunos Jhuly Anne Valério, 22, e Christian Ferreira, 24, lembraram de uma grande enchente que afetou suas vidas estudantis em 2016. Segundo eles, quando viram o mesmo quadro se repetindo sete anos depois, ficaram inconformados com o fato de o poder público ainda não ter resolvido o problema. A dor de ver sua escola tomada por esgoto e água da chuva, além do prejuízo causado pela perda de aulas, os levaram a tentar ajudar de alguma forma. Jhully e Christian visitaram a escola na quarta-feira, dia 8 de fevereiro, dia seguinte à primeira enchente, para ver os estragos e tentar ajudar os funcionários da escola.
Para eles, essa tragédia geológica, climática e humana é um exemplo de racismo ambiental na cidade de São Gonçalo. Jhully considera a situação “Deplorável! Infelizmente, a situação se repete sete anos depois, agora, no entanto, com a escola recém-reformada. A situação é muito caótica”. A dupla fez um vídeo para mostrar como ficou a escola no dia seguinte e compartilhou nas redes sociais.
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Os ex-alunos Jhully e Christian estavam prestes a dar início à atividades do ano de sua organização SUM, que, em latim, significa “pertencer”, para discutir o problema da falta de infraestrutura na cidade e propor soluções contra a desigualdade social, racial e climática no município. Atualmente, Jhully é professora de história e pretendia começar o trabalho da SUM no Pandiá na semana do dia 6, o que teve que ser adiado após os estragos de terça (dia 7). Com a força-tarefa de limpeza que se seguiu ao 7 de fevereiro, a ação da SUM passou a ser pensada para a segunda-feira (dia 13), quando se pressupunha que as aulas voltariam. No entanto, esse plano também foi frustrado pelas chuvas de sábado (dia 11) e do próprio dia 13.
De acordo com Jhully e Christian, a ideia central da SUM é aproximar os alunos da própria escola. Os principais objetivos da iniciativa são estimular os alunos a pensar em atividades que gostariam de ver desenvolvidas na escola, no bairro e na cidade, além de promover o debate sobre participação popular no governo de São Gonçalo, principalmente sobre questões ambientais e climáticas, que afetam a vida de milhões de cidadãos e causam mortes todos os anos. Os episódios de racismo ambiental sofridos pelos alunos do Colégio Estadual Pandiá Calógeras serviram de estímulo para a luta e inflamaram os estudantes pelo desejo de mudança.
Danos ao Patrimônio Público e Risco à Saúde dos Alunos
A direção da escola ficou impressionada com os estragos das águas de fevereiro. E, com a proximidade do carnaval, prevê-se que as aulas só voltem depois do recesso carnavalesco. Segundo a diretora Celinha Coelho, após a inundação de 7 de fevereiro, a previsão inicial dos prejuízos materiais da escola era de R$50.000. No entanto, novas contas precisam ser feitas, pois não há cálculo atualizado para os danos causados pelas chuvas de 11 e 13 de fevereiro.
“Nós perdemos muitos mantimentos que ficam na primeira prateleira da despensa, porque a água subiu em torno de um metro e meio. Perdemos fogão, geladeira, três freezers, balança, liquidificador industrial… muito material de papelaria da sala de artes, que a gente recém reformou.” — Celinha Coelho
Funcionários descreveram os danos do dia 7 à reportagem: “O pior de tudo foi a cozinha. Muita coisa se perdeu de alimento. Os freezers todos ficaram virados. As salas, cheias de lama e algumas [ainda estavam] com um palmo de água,” descreveu João dos Santos*. Na ocasião, a cisterna d’água foi contaminada e foi preciso contratar um serviço especializado de limpeza. Enquanto o abastecimento não era restabelecido, carros-pipa providenciaram água para a limpeza da unidade e consumo dos funcionários. A Seeduc não informou quanto custaram os serviços de limpeza da cisterna e de carros-pipa. Agora, tudo terá de ser refeito. E o prejuízo deverá ser recalculado.
Problema Crônico e Falta de Interesse do Poder Público
O problema crônico expõe a necessidade de mais atenção da Prefeitura com relação à infraestrutura da cidade. Porém, segundo o Vereador de São Gonçalo Romário Régis (PCdoB), essa não tem sido uma prioridade da gestão municipal atual.
“Infelizmente, não é prioridade da atual gestão da prefeitura e nem do Governo do Estado. Não dá para a gente olhar uma escola inundada e achar que isso é normal. Escola deveria ser um lugar prioritário para que se tenha bem-estar para todo mundo.” — Romário Régis
O bairro de Alcântara, onde fica a escola, é também um importante ponto comercial de São Gonçalo. Há um comércio de rua movimentado, com centenas de pessoas fazendo compras ali todos os dias. O bairro também possui um terminal rodoviário e um intenso fluxo de carros. Mesmo assim, a Prefeitura parece não estar interessada em prevenir alagamentos na região:
“O Pandiá, assim como a região em que o Pandiá se encontra, é uma região extremamente sensível e também muito importante para a economia de São Gonçalo… Em toda chuva um pouco mais forte, isso acontece. Ou seja, se a gente já sabe que essa região é impactada pelas chuvas e alagamentos, a gente deveria dedicar tempo suficiente para solucionar esses problemas, com investimentos robustos de infraestrutura. O descaso é tanto, que a cidade foi a última da Região Metropolitana a alertar oficialmente sobre o risco de alagamentos [no dia 7], quando diversos bairros já estavam sofrendo o impacto da chuva. A Prefeitura do Rio notificou às 15h, a de Niterói às 16h e a de Maricá às 19h. A de São Gonçalo, apenas às 23h.” — Romário Régis
Jogo de Empurra das Autoridades e Inundação da Escola Evidenciam Racismo Ambiental
A cria do Complexo da Maré e Ministra da Igualdade Racial Anielle Franco, afirmou, em nota à reportagem, que o ocorrido na escola estadual de São Gonçalo é “sem sombra de dúvida” um caso de racismo ambiental:
“Sem sombra de dúvidas, as tragédias causadas pelas chuvas no Rio de Janeiro e outras localidades evidenciam o racismo ambiental. Essa expressão fala sobre a discriminação racial presente, por exemplo, na determinação dos locais onde pessoas negras e pobres moram—frequentemente mais expostas à riscos pela falta de infraestrutura, de saneamento básico, ou por morarem em locais mais propensos a alagamentos, deslizamentos de terra, por exemplo. Quando acontecem as chamadas tragédias naturais, podemos observar que, onde as pessoas brancas moram, os efeitos da natureza não agem da mesma forma que nos locais onde a maioria dos residentes é de pessoas negras. Aí está o racismo ambiental.” — Anielle Franco
O Vereador Romário diz que nem o debate sobre racismo ambiental, nem os assuntos para mitigar os impactos das mudanças climáticas são debatidos pela Prefeitura:
“Se o mínimo a ser feito, que é pelo menos alertar a população, eles não fazem, imagine discussões mais complexas, que impactam a vida da nossa cidade? Infelizmente, nós não percebemos [esse debate] por parte da Prefeitura e também não me parece que eles estão preocupados com as questões climáticas ou com desigualdades, como é o caso do racismo ambiental.” — Romário Régis
A Secretaria Estadual de Educação informou ainda que, em 2016, providenciou que o muro da escola fosse aumentado, para tentar evitar que o córrego que passa ao lado do prédio transbordasse para dentro da escola. Contudo, afirma caber ao Instituto Estadual do Ambiente (INEA) e à Prefeitura Municipal de São Gonçalo responder sobre a manutenção de rios e córregos. Já a assessoria de Comunicação da Prefeitura de São Gonçalo informou que “a escola é estadual e que a limpeza de rio é com o INEA”. Até o fechamento desta reportagem, a prefeitura de São Gonçalo não havia respondido se existe um plano para implementar obras de infraestrutura que previnam novos alagamentos e desmoronamentos na cidade.
Nota da Seeduc à Reportagem:
“A Secretaria de Estado de Educação informa que, em função das fortes chuvas que atingiram São Gonçalo neste sábado (11.02), a Defesa Civil deste município interditou, na data de hoje (12.02), o Colégio Estadual Pandiá Calógeras, em Jardim Alcântara, para vistoria, avaliação técnica e laudo.
A Seeduc informa, ainda, que continua trabalhando para dar prosseguimento às tratativas junto ao município de São Gonçalo, visando solucionar o problema, considerando tratar-se de tema de drenagem de águas pluviais, de alçada da municipalidade.
A equipe técnica da Seeduc realizou vistoria no imóvel nesta segunda-feira (13.02).”
*Pseudônimos foram utilizados para preservar a privacidade e segurança dos funcionários entrevistados
Sobre a autora: Amanda Ares é jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense e trabalha cobrindo cidades desde 2020 no A Seguir: Niterói. Mora no Fonseca e, entre 2020 e 2021, atuou no projeto Jovens Comunicadores da BemTV, ajudando a combater a desinformação sobre a Covid-19 na Região Metropolitana do Rio. Faz parte da ONG SUM, que tem como objetivo discutir e prevenir os impactos das mudanças climáticas em São Gonçalo. Também é fotógrafa e videomaker.