Enquanto chovia, no Quilombo da Gamboa no sábado, dia 15 de junho–e não muito longe das propagandas e do Maracanã ricamente remodelado para a inauguração da Copa das Confederações–comunidades enfrentando remoções participaram da Copa Popular Contra as Remoções. Vitor Mariano, charmoso locutor do torneio, exclamou no microfone: “o objetivo dessa Copa é dar voz, é dar vez, é dar espaço, para quem está sendo excluído, para quem esta sendo removido!” O evento inspirado foi um de uma série de protestos, reuniões e debates ocorridos no Rio ao longo dos últimos meses, culminando com os protestos que hoje ganham grande atenção da imprensa brasileira e internacional.
Organizado pelo Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, a “Copa Popular”, tinha dois objetivos estratégicos e simbólicos.
O primeiro objetivo foi o de colocar essas comunidades em contato uma com as outras e mobilizar os esforços comunitários distintos em uma articulação unificada contra as remoções que ocorrem em toda a cidade. Pablo Lima, jogador da defesa do time da Vila Autódromo, explicou, “é para mobilizar as pessoas, se unirem, para tentar evitar as remoções, e mostrar para outras pessoas que existem outras comunidades na mesma situação que a gente”. O locutor Vitor foi mais longe: “o evento tem como objetivo juntar as comunidades que estão sofrendo qualquer processo de remoção, não só por conta da Copa e das Olimpíadas, mas também por causa do processo de especulação imobiliária”.
O segundo objetivo é o fato do torneio ter servido como um contraponto simbólico, no dia da abertura da Copa das Confederações, lembrando a comunidade internacional que esses espetáculos, aparentemente festivos, são marcados pela dor e tragédia de milhares de famílias a serem removidas por toda a cidade.
Integrante do Comitê Popular, Renato Cosentino explicou: “a TV irá mostrar um jogo bonito, um estádio recém reformado, porém existe um outro processo que está acontecendo, um processo que viola direitos humanos que é gravíssimo, que atinge cerca de 40 mil pessoas na cidade, e esse campeonato hoje marca isso, mostra isso que está acontecendo na preparação para os grandes eventos esportivos”. 11.000 pessoas já foram removidas, outras 29.000 estão, atualmente, sob ameaça.
No dia do torneio, dez times masculinos e quatro femininos representaram as comunidades de Providência, Santa Marta, Salgueiro, Indiana, Muzema, Vila Autódromo e Vila Recreio II, cada uma competindo pelo título, demonstrando “o futebol como uma forma de protesto”, bem como diversão. Os times que ficaram em primeiro e segundo lugar foram homenageados em uma cerimônia e receberam troféus após os jogos, também recebendo o status de celebridade pela mídia brasileira e internacional presente que entrevistavam os jogadores. Alaine Carla Souza Mendes, de 18 anos, estrela do time feminino campeão, Criciúma Salgueiro, disse: “foi ótimo participar nesse evento porque conseguimos divulgar o futebol feminino para outras comunidades… peço uma participação maior do governo para ajudar as pessoas que estão perdendo suas casas”. E, claro, o evento não seria completo sem uma performance musical ao vivo e churrasco gratuito para comemorar!
O torneio também lançou o Saci Pererê, o “Mascote do Povo” oficial em desafio a marca corporativa e o processo de seleção do mascote da FIFA. De acordo com a ideia de copyleft, o fotógrafo e autor do projeto Saci, André Mantelli, explica: “O nosso saci é um saci solto, que ninguém vai prender, ninguém vai tirar a carapuça. A gente coloca mesmo a carapuça e vai para a rua. A ideia é que o trabalhador informal que quiser comercializar isso em camisa tenha liberdade total. Nosso desejo é que isso seja replicado livremente e até que outros sacis apareçam. O mais importante é que ganhe visibilidade como ideia, não o desenho em si”.
O torneio destacou uma série de sobreposições e contradições intrínsicas a estada dos mega-eventos no Rio de Janeiro. Jogadores e líderes das comunidades durante todo o dia reiteraram um sentimento semelhante: “Queremos a Copa do Mundo, mas ela precisa ser uma Copa do Mundo no Brasil”. Em essência, a Copa do Mundo que “poderia gerar muitas melhorias na cidade, que poderia ter uma participação popular efetiva”, explicou Gustavo Mehl, outro integrante do Comitê Popular. Em vez disso, uma série de projetos em andamento em nome da Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016 removem, sistematicamente, as comunidades e servem aos interesses particulares de poucos. Altair Guimarães, presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo explicou que o terreno onde está localizada a sua comunidade se tornou a “menina dos olhos” de corporações imobiliárias e da Prefeitura. Ele disse: “eu trabalhei 58 anos da minha vida nessa cidade. Eu tenho que ter o direito a um lugar onde escolho para viver. Não é o Prefeito que tem que dizer onde tenho que morar”.
E sobre o espaço comunitário onde o torneio foi realizado sobreposto ao espetáculo da FIFA, o Chris Gaffney, professor visitante em Urbanismo da Universidade Federal Fluminense e membro do Comitê Popular, explica: “Isto é real. Isto que é a experiência cotidiana de futebol em um lugar que tem buracos, que tem um campo terrível, e que mesmo na chuva há pessoas apenas se divertindo e expressando-se por meio do futebol. Não há consumismo, é apenas as pessoas se reunindo para resistir e usar o futebol como uma expressão do seu descontentamento, mas também ao seu conteúdo. As pessoas estão felizes de jogar futebol. Isto é o que isso significa”. Este espírito está em oposição ao novo caráter do Maracanã, segundo o Comitê Popular. Eles também foram protestar contra a recente privatização do Maracanã, historicamente um símbolo da democracia e acesso ao espaço público em uma cidade marcada por divisões extremas.
A Copa Popular foi muito mais do que um torneio para protestar contra as remoções forçados na cidade do Rio de Janeiro, foi também uma forma de resistência criativa que desafia a cultura da FIFA. Enquanto a organização da Taça do Mundo é corporativa, direcionada para o consumo, e privatizada, a Copa Popular exala um espírito de abertura e democracia, dando voz aos marginalizados pelos próprios acontecimentos.
Fotos por André Mantelli.