O Rio de Janeiro chegou lá. Ou pelo menos é o que as autoridades da cidade, e a maior parte da publicidade internacional sobre a ‘Cidade Maravilhosa’ nos últimos anos, quer nos fazer acreditar. Depois de décadas de mal-estar econômico e sofrimento social, a sorte pareceu ter virado para o Rio no meio da década passada. A retomada da economia nacional e a descoberta de grandes jazidas de petróleo (pré-sal) alimentaram o crescimento constante nos negócios dominantes e no setor de serviços da cidade. Como resultado, grande parte da população viram sua renda aumentar e muitos, incluindo aqueles que vivem nas favelas da cidade, foram retiradas da pobreza. Mesmo a taxa de homicídios, notoriamente elevado, em grande parte resultado de conflitos em curso entre gangues de traficantes fortemente armados e uma força policial de estilo militar, caiu de um pico de 70,6 por 100.000 habitantes em 1995 para 26,7 em 2010. Quando o Rio foi agraciado com a Olimpíada de 2016 em 2009 os cariocas receberam a notícia de forma tipicamente exuberante, vendo-a como um importante reconhecimento internacional.
Hoje o clima é um pouco diferente. Um constante fluxo de más notícias sobre os grandes projetos de transportes e infra-estrutura, atrasados e grosseiramente super faturados, azedaram a opinião pública sobre as Olimpíadas e a Copa do Mundo do próximo ano e aumentaram o peso à percepção generalizada de corrupção no governo e ineficiência. Estas falhas no momento em que o transporte e outros custos estão aumentando levaram a protestos em massa iniciados em São Paulo e que tomaram força no Rio de Janeiro e outras grandes cidades, revelando que as manifestações são bem mais do que meras reclamações que, muitas vezes, acompanham os mega-eventos caros. Isto porque, no caso do Rio, a Prefeitura e Governo do Estado não estão tratando os eventos como fins em si mesmos, mas como catalisadores em uma estratégia abrangente para reordenar a cidade socialmente, espacialmente e economicamente. Através de suas intervenções em habitação, transporte e segurança, o “projeto de cidade” tocou todos os segmentos da sociedade carioca, de alguma forma ou de outra, para melhor ou para pior. Seus objetivos declarados de investimentos, integração e universalismo são amplamente apoiados, daí a paciência com que, até agora, foram recebidos os atrasos e contratempos. No entanto, a maneira pela qual o projeto está tomando forma tem conduzido a um número crescente de questionamentos sobre as verdadeiras intenções das autoridades e as conseqüências finais para os moradores comuns.
O aumento da prosperidade do Rio e a melhora na segurança nos últimos anos lançaram as bases para um grande boom imobiliário. Enquanto isso significou um golpe de sorte para os especuladores imobiliários e proprietários de imóveis, os locatários foram pressionados com os custos e também a população mais jovem, incluindo os originários da classe média, estão saindo das áreas que cresceram para bairros que estavam fora de moda e que têm sido objeto de especulação rápida, e até mesmo as favelas favoravelmente localizados estão sob pressão de gentrificação. Um grande projeto de regeneração na área do porto em ruínas e a promoção da rápida urbanização em Jacarepaguá parecem concebidos para abrir novas fronteiras para o desenvolvimento especulativo. Em sua defesa, o governo tem proporcionadonovas habitações acessíveis, através do programa federal Minha Casa Minha Vida, que financia os imóveis para famílias de baixa renda. No entanto, as novas unidades têm sido esmagadoramente localizadas no noroeste distante da cidade, onde os valores da terra são baratos, as oportunidades de emprego são limitadas e as conexões de transportes pobres. O resultado é aprofundar as tendências segregacionistas criadas pelo boom especulativo nas zonas centrais e costeiras.
Com o aumento do custo de vida, a má qualidade do sistema de transporte da cidade, um símbolo da falha dos serviços públicos em geral, tornou-se uma questão política em chamas. A rede do metrô do Rio é escassa e mal integrada com outros modos de transporte, um problema que a extensão cara para a rica Barra da Tijuca fará pouco para resolver. Da mesma forma, três novas linhas de BRT (Bus Rapid Transit) irão ajudar a facilitar o movimento entre as instalações olímpicas ao aeroporto internacional, mas dado o seu custo e a sua rota, não é claro que irá trazer benefícios generalizados. Enquanto isso, o sistema de ônibus em geral está em um ponto de ruptura, com motoristas sobrecarregados, mal pagos e mal treinados que não conseguem prestar um serviço básico. As lacunas no sistema de ônibus são preenchidas por vans, normalmente usadas pelos pobres por causa dos preços mais baixos e a capacidade para trafegar nas encostas e ruas da favela. No entanto, depois de um caso de alta visibilidade, em que uma turista foi estuprada e roubada em uma van, sem licença para operar, o Prefeito Eduardo Paes unilateralmente proibiu a circulação de vans nas áreas turísticas, colocando assim uma maior pressão sobre os moradores pobres que para lá se deslocam para trabalhar.
As favelas, onde quase um quarto da população do Rio e muitos dos seus trabalhadores pobres vivem, foram colocadas no centro da nova estratégia da cidade. Na verdade, a promessa de pagar uma dívida histórica com essas comunidades, após anos de negligência endêmica e repressão freqüente, foi um dos casos mais poderosos de apoio à candidatura olímpica. Desde 2008, o programa de “pacificação” tem sido seguido, sob o qual a polícia entra e estabelece uma presença permanente em favelas anteriormente controladas por traficantes de drogas. A política tem sido criticada por não conseguir pôr fim ao tráfico, mas por apenas empurrá-lo para outras áreas ou mantendo-os fora de vista, e pela persistência de tensões entre a polícia e moradores em algumas áreas. No entanto, tem reduzido drasticamente a violência no entorno das favelas pacificadas e parece ter feito a ostentação, a céu aberto nestas áreas, de armamento pesado por gangues uma coisa do passado.
Enquanto a situação de segurança melhorou e mantém amplo apoio dos moradores das favelas e da população como um todo, a atual cobertura geográfica do programa e um registro irregular em intervenções sociais pós-pacificação têm levantado dúvidas quanto à final do jogo. Até o momento a pacificação foi esmagadoramente destinada à rica Zona Sul e ao Centro da cidade, bem como as áreas consideradas de importância estratégica para fornecer os mega-eventos. Enquanto isso, gangues e violência policial continuam existindo nos subúrbios periféricos e pode estar aumentando em municípios vizinhos com traficantes sendo expulsos do Rio de Janeiro. O oeste da cidade tem caído cada vez mais no controle de milícias, muitas vezes em conluio com funcionários corruptos. Das vinte e quatro unidades de pacificação estabelecidas até agora, apenas uma está em uma área anteriormente controlada pela milícia.
Além da segurança, as melhorias prometidas para os moradores das favelas em grande parte não se materializaram. A “UPP Social” que era destinada a mapear, atualizar e se unir aos serviços públicos pós-pacificação, ao em vez disso, acaba de se tornar uma agência de coleta de dados. Enquanto isso, o prefeito arquivou indefinidamente o programa original do ‘Morar Carioca‘ com exceção só em um pequeno número de comunidades–o programa original era uma iniciativa de planejamento participativo planejado para ser lançado em todas as favelas do Rio de Janeiro e em sua origem vista como o “grande legado social” dos Jogos Olímpicos. Em vez disso, as intervenções de alta visibilidade, como a instalação de teleféricos na Providência (favela mais antiga da cidade) e no Complexo do Alemão (uma das maiores) tem sido unilateral e de questionável benefício para os moradores. No caso da Providência as obras de urbanização podem vir a resultar na remoção de cerca de um terço da população. O espectro da remoção assombra em muitas outras áreas marcadas para receber espaços desportivos e novas linhas de transporte, predominantemente em regiões valorizadas da cidade. O número de famílias removidas poderia, eventualmente, chegar a mais de 10.000.
Em suma, o projeto da cidade até a data de hoje forneceu o aumento dos custos de transporte, engarrafamentos, securitização altamente seletiva e remoções de favelas, até agora, nenhuma melhoria dos bens e serviços públicos. As escolas públicas e hospitais permanecem sub financiados e superlotados. Em vez de anunciar a modernização e a cura das velhas feridas, está se tornando cada vez mais difícil discernir se a cidade está, na verdade, se movendo para frente ou para trás. Semelhanças incômodas podem ser extraídas da última grande tentativa de reordenar o Rio de Janeiro, no auge da ditadura militar no Brasil no final da década de 1960, quando milhares de moradores de favelas foram removidos de suas casas, liberando terrenos valiosos para a especulação imobiliária e tornando nítida a segregação urbana. Em seguida, os serviços públicos também definharam e o protesto foi recebido com uma violenta repressão.
Mas o Brasil de hoje é diferente. É uma democracia, embora extremamente desigual e muitas vezes disfuncional, há um verdadeiro espírito reformador dentro de alguns órgãos do Estado. A sociedade civil também está redescobrindo sua voz, tanto online e nas ruas. Os cariocas querem ver a sua cidade reformada da maneira que foi prometido e apoiará tentativas genuínas de fazê-lo. O que temos visto até agora não os convenceu, mas ainda não é tarde demais para mudar essas percepções. A fim de fazê-lo as autoridades devem começar por perguntar-se sobre as verdadeiras questões: para quem são os megaeventos? E abaixo desta, encontra-se uma questão muito maior que, desde a democratização, o Brasil ainda tem que responder: Para quem é a cidade? No entanto, se ainda não sabem a resposta, eles podem estarem prestes a descobrir.
Matthew Richmond, atualmente, está realizando uma pesquisa de doutorado sobre os impactos de megaeventos em duas favelas e os seus efeitos nos bairros vizinhos e nas redes sociais. Leia mais em seu blog.