Na Reta Final da Revisão do Plano Diretor, Prefeitura do Rio Apresenta Emendas para Alterar o Texto, Sob Intensas Críticas da Sociedade Civil

Entre as mudanças destacadas, tivemos a retirada de um importante instrumento inovador de defesa do direito à moradia

Audiência pública sobre o Plano Diretor do Rio, com morador da Maré segurando cartaz "Maré Quer Moradia!"
Audiência pública sobre o Plano Diretor do Rio, com morador da Maré segurando cartaz “Maré Quer Moradia!”

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A revisão do Plano Diretor de uma cidade é um assunto que diz respeito a todos os seus habitantes. Principal lei urbanística em nível municipal, o Plano Diretor orienta o desenvolvimento urbano de uma cidade pelo prazo de 10 anos, estabelecendo os parâmetros de crescimento, as zonas da cidade e seus usos, as metas da política urbana e os instrumentos para alcançá-las. Apesar de parecer uma discussão distante e restrita a técnicos, o Plano Diretor afeta diretamente a vida de todos os moradores da cidade, por isso a participação social deve ser um dos pilares fundamentais desse processo. A cada 10 anos, na ocasião da revisão da lei, toda a sociedade deve ser convidada a participar e debater os desafios dos seus territórios, os interesses de diferentes setores e soluções de como melhorar o dia a dia na cidade, levando em consideração uma ampla gama de perspectivas e interesses na abordagem final do Plano.

No Rio de Janeiro, a revisão do Plano Diretor começou em 2019, sendo interrompida pelo advento da pandemia. Apesar do momento ainda delicado de crise sanitária pela qual passávamos, a Prefeitura optou por retomar a discussão em 2021, formando grupos de trabalho com a participação de organizações da sociedade e técnicos do poder público em formatos online, para construir o que seria a proposta de revisão do Plano Diretor. O processo foi marcado por críticas, principalmente por conta do cronograma apertado e das poucas audiências públicas propostas pelo Poder Executivo. O reduzido espaço destinado à participação popular não é condizente com a formulação de uma legislação que irá ditar as normas do desenvolvimento de 10 anos de uma cidade. Apesar disso, a minuta do projeto de lei foi finalizada pela Secretaria Municipal de Planejamento Urbano a toque de caixa e enviada à Câmara dos Vereadores ainda no final de 2021.

Membros do público se manifestam com cartazes e faixas a favor da permanência do Termo Territorial Coletivo (TTC) no Plano Diretor do Rio de Janeiro na audiência pública de 5 de abril. Foto: Alexandre Cerqueira / RioOnWatch
Membros do público se manifestam com cartazes e faixas a favor da permanência do Termo Territorial Coletivo (TTC) no Plano Diretor do Rio de Janeiro na audiência pública de 5 de abril.

No Legislativo, a revisão do texto enviado pela Prefeitura se deu com maior espaço para a participação social. Ao longo de 2022, foram realizadas 26 audiências públicas para discutir o projeto de lei do Plano Diretor, sendo 17 delas realizadas em diversas regiões da cidade. O texto foi discutido com diferentes setores da sociedade que colocaram suas posições e defenderam seus interesses. Ainda que não tenha havido clareza sobre quais demandas da sociedade foram de fato ouvidas e levadas em consideração, houve uma possibilidade maior da população reivindicar suas pautas. 

Eis que, em novembro de 2022, a Prefeitura encaminhou à Câmara 215 emendas ao projeto de lei do novo Plano Diretor, que ela mesmo elaborou. Na época, a votação do projeto estava prevista para acontecer também em novembro, poucos dias depois da apresentação das emendas, o que não deixaria tempo suficiente para discuti-las com a população. A pressa para aprovação e falta de clareza quanto às motivações das emendas geraram reações por parte de setores da sociedade, que cobraram mais transparência ao Executivo. A justificativa genérica apresentada foi de que as mudanças propostas se tratam de um mero aprimoramento do texto do plano, que não provocaram alterações substanciais. Além disso, segundo o Executivo, as mudanças estariam respondendo a demandas da sociedade que surgiram no curso das audiências públicas.

No entanto, o que se verifica na prática é bem diferente. Segundo levantamento do IBAM—órgão responsável por prestar assessoria à Câmara Municipal a respeito do Plano Diretor—das 215 emendas apresentadas, 80 delas representam uma alteração relevante à lei. Algumas apresentam novos parâmetros urbanísticos, outras modificam procedimentos, e há aquelas que extinguem completamente instrumentos previstos na lei. Longe de significar um mero ajuste de texto, as mudanças foram tão substantivas que levaram a Câmara a agendar sete novas audiências públicas para discuti-las com a sociedade. Após anos de discussão do novo Plano Diretor da cidade, em um processo que a Prefeitura defende que foi participativo, vemos uma tentativa de reformulação significativa da lei, na reta final da revisão, sem qualquer transparência ou preocupação de justificar as mudanças para pessoas que dedicaram seu tempo e esforços para construir juntas um Plano Diretor que responda aos interesses de todos. 

Balanço das emendas do Executivo. Fonte: apresentação IBAM na Audiência Pública realizada no dia 29/03/2023

A respeito do argumento de adequação do texto às demandas populares manifestadas nas audiências, não houve nenhuma indicação de quais manifestações estavam sendo encampadas e quando ou de que forma elas foram apresentadas. De fato, parece que a participação social foi usada como pretexto para que o Executivo apresentasse as mudanças que lhe interessavam, sob a roupagem de estar escutando a população. Um exemplo emblemático disso foi a retirada completa de um novo instrumento de garantia de moradia na cidade: o Termo Territorial Coletivo.

O Termo Territorial Coletivo (TTC) é um modelo de gestão coletiva do território caracterizado pela separação entre a propriedade da terra (coletiva) e das construções (individual). O arranjo permite um equilíbrio entre interesses individuais e coletivos e efetiva o objetivo central do modelo: garantir a permanência de comunidades em seus espaços, ao mesmo tempo em que se preserva a acessibilidade econômica da moradia e o desenvolvimento comunitário protagonizado pelos moradores. Com mais de 50 anos de existência e aplicações em mais de uma dezena de países do mundo, o TTC é amplamente reconhecido como uma ferramenta potente para a concretização do direito à moradia adequada. Tanto que, em 2017, foi incluído na Nova Agenda Urbana (item 107)—documento da ONU que estabelece diretrizes globais para a boa governança de cidades—como um modelo habitacional inclusivo e sustentável, que deve ser estimulado pelos Estados signatários, dentre eles o Brasil.

Foto aérea do Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña, TTC implementado em um conjunto de favelas em Porto Rico, e vencedor do Prêmio Mundial do Habitat em 2015
Foto aérea do Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña, TTC implementado em um conjunto de favelas em Porto Rico, e vencedor do Prêmio Mundial do Habitat em 2015

Durante a revisão do Plano Diretor do Rio de Janeiro, o TTC foi bastante discutido pelos grupos de trabalho coordenados pelo Executivo e depois nas Audiências Públicas. As diversas manifestações por parte da sociedade foram positivas, no sentido de reconhecer a importância da inclusão deste instrumento inovador no Plano Diretor, o que foi feito como resultado de um movimento de vanguarda que traz novas formas de abordar os desafios da questão habitacional em nossa cidade. Ele acompanharia o movimento de outros municípios que vêm discutindo o modelo, como é o caso de São João de Meriti, que recentemente aprovou o TTC em seu Plano Diretor.

Vimos no curso das audiências públicas falas de diferentes setores da sociedade se manifestando no sentido de reivindicar a aprovação do Termo Territorial Coletivo no Plano Diretor, sem qualquer manifestação contrária. A inclusão do Termo Territorial Coletivo na política urbana da cidade é uma demanda social, como fica explícito em uma carta aberta aos parlamentares que defende a aplicação do instrumento, assinada por 49 organizações da sociedade envolvidas historicamente com a luta pelo direito à moradia e à cidade. Em uma recente audiência pública, realizada no dia 5 de abril, vimos uma ampla mobilização da sociedade no sentido de defender a manutenção do TTC no novo Plano Diretor, em que mais de 100 moradores e lideranças comunitárias lotaram a Câmara cobrando por mecanismos que protejam comunidades da gentrificação (processo em que moradores são “expulsos” por não ter condições econômicas de se manter em uma área que passe por uma valorização).

Moradores e lideranças comunitárias lotam a Câmara em audiência pública de 5 de abril cobrando mecanismos que protejam comunidades da gentrificação. Foto: Alexandre Cerqueira / RioOnWatch
Moradores e lideranças comunitárias lotam a Câmara em audiência pública de 5 de abril cobrando mecanismos que protejam comunidades da gentrificação.
Jurema da Silva, moradora da Cooperativa Shangri-lá, defende a inclusão do TTC no Plano Diretor.
Jurema da Silva, moradora da Cooperativa Shangri-lá, defende a inclusão do TTC no Plano Diretor.

No entanto, a Prefeitura continua a manter o posicionamento de excluir essa promissora possibilidade de assegurar moradia acessível para famílias de baixa renda na cidade, sem apresentar qualquer justificativa para isso. Ao ler a emenda n. 182, responsável por retirar o Termo Territorial Coletivo do Plano Diretor, vemos que a justificativa dada é de um mero “aprimoramento de texto”, o que está longe de explicar o porquê de uma mudança tão significativa, demonstrando um descaso da Prefeitura com os pleitos da população. A total falta de transparência por parte do executivo municipal quanto às mais de 200 emendas apresentadas vai no sentido contrário do princípio da participação popular como um dos pilares da política urbana, como estipula nossa Constituição e o Estatuto da Cidade.

A retirada do TTC está longe de ser a única mudança significativa ao texto do Plano Diretor. Entre outras novas propostas do Executivo, destaca-se uma mudança drástica na concepção da Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), um instrumento com potencial de ampliar significativamente a arrecadação do município por meio de cobrança de contrapartida para a construção de empreendimentos imobiliários. Ele funciona a partir do estabelecimento de um coeficiente básico de aproveitamento do terreno, dentro do qual novos empreendimentos podem construir sem custo adicional. Qualquer construção que exceder este coeficiente deve pedir uma concessão da Prefeitura, mediante pagamento de contrapartida financeira. Antes considerado um instrumento de aplicação geral na cidade, as emendas criam diversas exceções à sua aplicação, invertendo totalmente a sua lógica. Além disso, impõem uma isenção da cobrança nos cinco primeiros anos de vigência da lei, deixando um cenário de incerteza e limitando o potencial arrecadatório do instrumento, atendendo exclusivamente a uma demanda do setor imobiliário, que seria o principal impactado pela sua cobrança. A principal demanda da sociedade apresentada nas audiências quanto ao instrumento, referente à destinação dos recursos arrecadados para habitação social e desenvolvimento urbano, não foi sequer endereçada nas emendas, o que mostra mais um grave descaso quanto às reivindicações da população.

Público interessado aguarda entrada à porta da Câmara no que deveria ser uma audiência pública. Muitos não conseguiram entrar mesmo havendo espaço nas galerias, contrariando o princípio da participação popular. Foto: Alexandre Cerqueira / RioOnWatch
Público interessado aguarda entrada à porta da Câmara no que deveria ser uma audiência pública. Muitos não conseguiram entrar mesmo havendo espaço nas galerias, contrariando o princípio da participação popular.

À luz destas e de outras mudanças estruturais ao projeto de lei do novo Plano Diretor do Rio de Janeiro encaminhadas de forma nada participativa e sem apresentação de justificativas, fica claro que a postura da Prefeitura coloca em cheque o respeito a um processo efetivamente democrático. Participação social não é meramente um detalhe formal, uma inconveniência que o poder público pode simular e riscar da lista, mas sim uma exigência constitucional e um direito coletivo. Muito além de ouvir as demandas populares, é preciso que o poder constituído as recepcione ou, pelo menos, dê uma resposta transparente acerca dos motivos das recusas. Ao contrário, continuaremos a produzir uma política urbana centralizada e distante de atender as necessidades dos citadinos, como parece ser o desejo de alguns para o Plano Diretor do Rio de Janeiro.

Assista à fala de Tarcyla Fidalgo sobre o TTC na Audiência Pública do Plano Diretor em 5 de abril aqui:


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