Vários amigos pediram minha opinião sobre a proposta de trazer médicos estrangeiros para atuar em regiões do interior do país e em áreas de pobreza. É um desses temas complexos onde a simplificação é sempre burra, e onde todos tem um pouco de razão e ninguém está inteiramente certo. O que está inteiramente errado é afirmar que esta é a solução para os problemas da saúde. Isso chega a ser uma piada de mau gosto.
Ninguém precisa ser especialista para perceber que 500 mil médicos cubanos ou noruegueses não vão resolver o problema da péssima infra-estrutura, de hospitais caindo aos pedaços, equipamentos quebrados por falta de (contratos de!) manutenção, falta de medicamentos e insumos básicos, emergências superlotadas e por aí vai. Existem muitos fatores para explicar tudo isso, mas o mais importante é a má gestão (incluindo a corrupção, mas não só ela) e a insuficiência de recursos. O primeiro é mais sério–se o recurso que existe fosse bem gerido e aplicado honestamente, muitos destes problemas deixariam de existir.
É difícil levar médicos para os “grotões”? Sim. Mesmo com ótimos salários, poucos se arriscam nessa aventura: podem ficar à mercê de políticos sujos nas prefeituras, os bons salários atrasam por meses, as condições de trabalho muitas vezes são péssimas, perde-se contato com colegas, é difícil se atualizar, não há como encaminhar ou resolver casos graves por falta de estrutura, e além disso, esses médicos formados nos grandes centros têm que enfrentar os problemas de uma vida no “interior” – limitações culturais e sociais que nem todos os jovens estão dispostos a enfrentar.
OK, a solução é criar planos de carreira no SUS, investir em infra-estrutura, etc. Soluções a médio e longo prazo. Mas porque não trazer para o país médicos–contanto que tenham seus diplomas validados e sua perícia minimamente avaliada–que estejam dispostos a trabalhar por um tempo definido nestes locais onde é tão difícil deslocar um profissional? A Alemanha está cheia de médicos gregos, Portugal tem muitos médicos cubanos e nas áreas mais remotas (e geladas) do Canadá há brasileiros, argentinos e europeus. Não é um pecado em si “importar” médicos, como grita o corporativismo da classe. Errado é atribuir a esta medida um caráter de panacéia ou solução mágica para um sistema de saúde que–com todos os seus méritos, e são muitos–está atolado em problemas. Errado é deixar áreas enormes do território sem nenhuma assistência médica. Errado seria trazê-los sem nenhum tipo de avaliação ou validação–mais que pecado, seria uma temeridade e uma irresponsabilidade.
E aliás, por falar no assunto, a formação do médico brasileiro–com muitas e boas exceções, é claro–não se caracteriza exatamente pela excelência. Além disso, a formação nas melhores escolas médicas é voltada para a medicina hospitalar, de alta complexidade, para a formação de especialistas. Uma linha de montagem voltada, aliás, para o mercado privado. Para o atendimento das necessidades de áreas pobres do interior, precisamos de médicos bem formados na chamada atenção primaria à saúde, os chamados médicos de família ou generalistas. Essa é uma prática complexa, riquíssima, mais ampla que a medicina hospitalar na minha opinião, e muitas vezes desprezada pelos doutos professores de faculdade como “medicina de pobre”. Nada mais equivocado.
Muito melhor que tudo isso seria implementar a proposta do serviço civil para recém formados de faculdades públicas de medicina. A grande maioria destes jovens–que vai à faculdade em carros de luxo e estudou nas melhores escolas e cursos pré-vestibular, e se forma a um custo de cerca de 700 mil reais–vai trabalhar no setor privado. Uma boa forma de devolver o magnífico presente que receberam da sociedade brasileira seria trabalhar por um ou dois anos como médicos de família (ou atividade similar) nas áreas mais carentes de médicos. Tenho certeza de que a própria presença deles acabaria desencadeando algum investimento em infra-estrutura, tão necessário nestas localidades.
Creio que num primeiro momento, eles e seus pais não ficariam muito felizes com essa proposta. Mas tenho certeza, por experiência própria, de que esses jovens voltariam pra casa transformados, mais maduros, mais experientes, conhecendo melhor o país e a sociedade em que vivem. Como diz o Chico: crescidos de coração.
Daniel Becker é médico pediatra e consultor em saúde pública. Daniel foi pediatra da organização Médicos Sem Fronteiras em campos de refugiados na Ásia e é fundador do CEDAPS – Centro de Promoção da Saúde – ONG com forte atuação social em comunidades populares. Curta a sua página, Pediatria Integral no Facebook.