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A Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas reúne veículos jornalísticos em rede, como uma proposta tecnológica ancestral para calar os silêncios do mercado de comunicação e mudar o futuro do jornalismo no Brasil, com vozes pretas, faveladas, indígenas, periféricas e quilombolas, entoadas “de dentro para dentro”, com território, raça, etnia, gênero e classe marcados.
“Nós somos a Coalizão de Mídias Periféricas, Faveladas, Quilombolas e Indígenas. Um conjunto de soluções tecnológicas ancestrais e jornalísticas para produzir e distribuir informação de interesse público em contextos sociais em que a internet é precária ou inexistente… Trabalhamos por uma comunicação antimachista, antirracista, anticapacitista, antiLGBTQIA+fóbica e antietarista.” — Manifesto de lançamento da Coalizão, maio de 2023
Trata-se de uma tecnologia de produção de saber desenvolvida em prol do trabalho coletivo dos povos, territórios e saberes ancestrais das favelas, periferias, aldeias e quilombos. Esta é uma iniciativa construída por onze organizações: Periferia em Movimento (SP), Desenrola e Não Me Enrola (SP), A Terceira Margem da Rua (SP), Frente de Mobilização da Maré (RJ), Fala Roça (RJ), Rede Tumulto (PE), Mojubá Mídias e Conexões (BA), TV Comunidades (MA), TV Quilombo (MA), Coletivo Jovem Tapajônico (PA) e Coletivo de Comunicação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Lançada oficialmente durante o Festival de Jornalismo 3i, realizado pela Associação de Jornalismo Digital (Ajor), a Coalizão quer reinventar o jornalismo no país, mas a partir da base, assentado no chão do Brasil.
Outra forma de explicar a iniciativa é através do provérbio iorubá: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje“. Isso porque a disputa da proposta não é sobre visibilidade ou espaço de fala, mas sobre a construção do futuro do jornalismo no país.
Para isso, a Coalizão de Mídias vai trabalhar em três dimensões: “incidência política de articulação local e nacional, trocas de saberes de tecnologias ancestrais de comunicação e jornalismo e um consórcio de produções de conteúdos jornalísticos”.
“Nós não somos apenas veículos comunitários de fazer jornalismo, também somos veículos que querem fazer incidência política nacional e regional. A gente quer disputar e promover política pública através das comunicações que nós fazemos”, afirma Michel Silva, diretor de redação do Fala Roça, mídia do território da Rocinha, localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro.
Para Michel Silva, a comunicação feita dentro dos territórios tem como “barreira” uma cultura midiática disseminada na população por grandes veículos de mídia. Por isso, ele acredita que trabalhar para viabilizar a sustentação de um ecossitema de mídias periféricas, faveladas, indígenas e quilombolas é essencial para romper essa barreira social.
“A gente tem que romper porque grande parte das nossas comunidades estão com um pensamento crítico muito contaminado por esses grandes meios de comunicação. Como é que a gente disputa a sociedade, a opinião dos nossos sobre, por exemplo, a violência contra a juventude negra, se a gente convive com a nossa própria população falando de pessoas da comunidade como ‘CPF bom’ ou ‘CPF cancelado’? Esse pensamento e maneira de ver a vida não veio do nada. Ele foi construído pelos telejornais sensacionalistas da hora do almoço. Então, a gente precisa produzir formas que nos sustentem, mas também que a gente consiga distribuir e visibilizar nossos conteúdos. E, para isso, tem que ter trocas de conteúdos, acúmulo, uma plataforma em coalizão.” — Michel Silva
Para os comunicadores populares, este é o princípio da existência das mídias comunitárias: valorizar e respeitar as formas de viver dos territórios. Outro traço comum é reconhecer as práticas ancestrais dos territórios como tecnologia.
Por isso, a Coalizão de Mídias não quer ser só mais uma ferramenta de acesso ao direito à comunicação, mas plataforma política para vidas, corpos e identidades de territórios historicamente negligenciados e silenciados pela mídia tradicional. Vem daí, a opção do grupo de se nomear enquanto Coalizão de Mídias, como explica a ativista Gizele Martins.
“Na aldeia indígena, eles talvez se denominem com outro conceito de comunicação. Na Maré, a gente se define como comunicação comunitária. Na Rocinha, o Fala Roça já se autodefine como jornalismo de favelas. Então, a gente fala em ‘mídias’ e de uma Coalizão de Mídias para respeitar as particularidades [territoriais].” — Gizele Martins
Gizele é comunicadora comunitária do Complexo da Maré, defensora de direitos humanos e integrante da Frente de Mobilização da Maré, fundada em março de 2020 para combater a desinformação em meio à pandemia do coronavírus.
“Passamos muito tempo distribuindo cesta básica porque a gente foi combater a fome. Mas, a Frente é um coletivo de comunicação comunitária. Para a gente, é como se fosse uma continuidade desse trabalho que a gente fez na pandemia.
Se você olhar as organizações que estão na Coalizão, vai perceber que são as mídias que atuaram nesses territórios com ações de combate às fake news e à fome. Para além da mídia, são coletivos que a gente se identifica também como aqueles que atuaram na pandemia. São aqueles que vêm fazendo um jornalismo ou uma comunicação comunitária que tem lado, que é ideológico, que é antirracista, que quer disputar a pauta do jornalismo. Aliás, não só a pauta, mas o conceito de jornalismo dentro das universidades. A gente quer disputar o que é jornalismo.” — Gizele Martins
Já Michel Silva conta que a ideia da Coalizão de Mídias surgiu em uma reunião realizada em 2022, em São Paulo, quando pessoas que constroem comunicação comunitária em diferentes lugares no Brasil perceberam que compartilhavam a mesma inquietação sobre como, enquanto mídia, eles poderiam se sustentar a longo prazo. Logo, decidiram agir juntos.
“Eu já vinha pensando na possibilidade de como os veículos do Rio de Janeiro podem se sustentar. Como podem ser vistos por organizações como um todo, como um consórcio de veículos. Descobri que a galera de São Paulo também estava com uma ideia de construir algo como uma rede para valorizar os veículos da periferia que estão trabalhando a comunicação no país… Tem pessoas que estão na Coalizão para discutir e pensar formas de fomentar comunicação, tem pessoas que querem mais a questão do fazer da comunicação, outras querem a valorização da notícia e das relações de rede.
A Coalizão é uma mistura de interesses em comum. A gente parte de e usa a comunicação comunitária, a comunicação popular, como uma ferramenta de luta política. Por isso, entre tantos nomes possíveis, nós definimos pela palavra ‘coalizão’, que vai nesse sentido político. O objetivo é que a gente tenha uma rede forte em que possamos construir a comunicação [popular] brasileira.” — Michel Silva
Para Ronaldo Matos, cofundador e editor do Desenrola e Não Me Enrola, a iniciativa da Coalizão representa um “movimento de democratização”, que nasce para contribuir diretamente para o futuro do jornalismo.
“Essa lacuna, esse abismo de cobertura jornalística que a gente tem hoje nos territórios, não acontece somente em São Paulo, mas no país inteiro. É esse o problema que a gente vem tentando atacar e vencer.” — Ronaldo Matos
Para ele, a tecnologia desenvolvida pelo Desenrola e Não Me Enrola, por exemplo, “foi significativa” por “elaborar uma metodologia de ensino de jornalismo que fomenta o debate com a juventude, fazendo o jovem refletir sobre contexto político do seu bairro, a memória e a política pública que não chega ou é negada”. Um processo que incide também na produção da notícia.
“Quando a gente surgiu, não se falava muito o termo jornalismo periférico. Existia o termo jornalismo comunitário, cidadão, jornalismo independente, mídia alternativa, mas não existia o termo jornalismo periférico.” — Ronaldo Matos
Jornalismo Ancestral
Localizado no município de Vargem Grande, no Maranhão, o Quilombo Rampa é produtor de tecnologias não apenas ancestrais, mas produzidas a partir da terra. É o que conta Raimundo José, fundador da Rádio e TV Quilombo.
Com um smartphone modesto, doado pela irmã, colado dentro de uma caixa de papelão cortada no formato das antigas câmeras de TV, ele começou a produzir e gravar histórias dos mais velhos da comunidade.
“A gente não tem dinheiro para comprar nada. Nem câmera, nem celular, nem tripé. Então, para essa necessidade, a gente criou a alternativa a partir da nossa realidade, criando tecnologia quilombola… Foi um desafio muito grande porque até então, eles nunca tinham se deparado com uma câmera, por mais que a câmera fosse de papelão, mas era uma estrutura que eles nunca tinham tido contato, não fazia parte da nossa realidade… para cada necessidade que ia surgindo, a gente ia criando uma alternativa. Foi assim que nasceu a câmara de papelão e o suporte de câmera de bambu, que é tripé.” — Raimundo José
A tecnologia quilombola também desenvolveu um “bambu-drone”. Trata-se de uma vara de bambu de 10 metros, com um celular amarrado na ponta. O “bambu-drone” é usado para fazer imagens aéreas das rodas de tambor na comunidade.
“Tiramos o bambu ali mesmo da mata e conseguimos, com o bambu, fazer esse movimento de TV, filmando [de cima], relatando aquelas histórias e mostrando pras pessoas.” — Raimundo José
Para ele, a criatividade vem da cultura e dos saberes tradicionais da comunidade e não apenas da necessidade. São tecnologias fruto da observação, do conhecimento, da potência e da inovação apresentados pela ancestralidade, muito viva nos territórios.
“Fomos criando nossos próprios materiais para dar suporte à nossa programação, para contar a realidade da comunidade. A gente nasce com essa missão, apesar da dificuldade do acesso às coisas, isso também aproxima as pessoas, pois proporciona uma real comunicação com a comunidade.” — Raimundo José
Para Raimundo José, participar da Coalizão de Mídias é uma oportunidade de visibilidade, mas sobretudo de construir políticas que democratizem os meios de comunicação.
“A gente vive essa realidade de como essas vozes têm uma dificuldade muito grande de ecoar. O conteúdo que a gente põe na TV Quilombo não consegue atingir todo o Brasil, mesmo estando nas redes sociais.” — Raimundo José
Com a Coalizão, Raimundo acredita que os jornalistas e comunicadores populares podem realizar trocas de conteúdo, potências, metodologias e tecnologias ancestrais.
“Em coalizão, a gente une forças. É uma luta necessária, porque eu costumo dizer que a gente que faz comunicação a partir do território luta pela vida. É algo maior, não é só comunicar. A luta é para se manter vivo, pela proteção dos nossos territórios, da nossa cultura… Por isso, não vamos desistir até que se esgote esse silêncio. Vamos juntos com todas essas forças, essas potências da comunicação periférica, quilombola, indígenas e de favelas, produzir um futuro” — Raimundo José
Sobre a autora: Tatiana Lima é jornalista, comunicadora popular e repórter especial do RioOnWatch. Mestra em Mídia e Cotidiano pela UFF e doutoranda em Comunicação pela mesma instituição, integra o Grupo de Pesquisa Pesquisadores Em Movimento do Complexo do Alemão. Feminista negra, cria da Favela do Quitungo e do Morro do Tuiuti, hoje é moradora do asfalto periférico do subúrbio do Rio.