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No dia 25 de julho, foi realizada a live “Comunicação Insurgente: do Brasil à Palestina”, uma das ações do Julho Negro, uma iniciativa internacional de combate à violência, à militarização da vida, ao racismo e ao apartheid que, em 2023, chegou à sua oitava edição. A iniciativa foi fundada em 2016, através da articulação dos movimentos de mães e familiares vítimas da violência do Estado e organizações do Brasil, em contato direto com movimentos sociais de outros países, que também sofrem com a militarização e suas consequências.
Com apoio da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial), Coletivo Maré 0800 e Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), o encontro teve mediação da jornalista e articuladora do Julho Negro Gizele Martins; a participação de Badra El Cheikh, membro do coletivo de comunicação insurgente palestino-brasileiro Juventude Sanaúd; Thais Siqueira, jornalista fundadora do Desenrola e Não Me Enrola, que atua na periferia de São Paulo e faz parte da Coalizão de Mídias Periférica, Favelada, Quilombola, Indígenas; e André Vieira, correspondente da Telesur no Rio de Janeiro.
De acordo com Gizele, moradora do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, abordar a insurgência na comunicação está em construir novas imagens do favelado, a partir de narrativas que tenham como protagonistas as narrativas faveladas.
“Quando falamos da construção da nossa memória, historicamente apagada, reafirmamos para dentro e fora da comunidade o dissolvimento de estereótipos, principalmente para aqueles que nos criminalizam. Além de denunciarmos a militarização presente em nossas vidas.” — Gizele Martins
Em 2017, por meio da organização Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS Brasil), Gizele foi convidada a representar o movimento de favelas do Rio, em uma brigada brasileira que viajaria para a Palestina para conhecer e comunicar a realidade do país no Oriente Médio. A ativista mareense já esteve lá duas vezes, em 2017 e em 2023.
“Assim que cheguei lá, vi a mesma violência vivida pela Maré, porém intensificada pelo apartheid. A Palestina tem as armas mais vendidas do mundo e são as mesmas que vêm para as favelas do Rio. Lá consegui sair do meu próprio contexto e entender que a violência é um projeto internacional de Estado. Portanto, o jornalismo também precisa estar transcendendo as barreiras invisíveis desses conflitos.” — Gizele Martins
Badra é membro da Juventude Sanaúd, projeto de comunicação sobre a realidade da Palestina voltado para o público brasileiro, que existe desde os anos 1980. Sanaúd é um verbo conjugado no futuro em árabe (سنعود), que significa nós retornaremos, nítida referência à diáspora palestina e ao direito ao retorno. Ela compartilha como é difícil a luta por espaços de escuta na grande imprensa, mesmo em meio a chacinas vivenciadas pelo povo palestino e pelo povo favelado, perpetradas seja pelo Estado de Israel, seja pelo Estado brasileiro.
“Nosso maior desafio é sensibilizar os veículos a se abrirem às pautas palestinas, tentando mostrar a forte conexão com o Brasil. Os conflitos são assuntos mal vistos e se deparam com a redução de alcance pelos algoritmos, situação em que temos que burlar legendas com números em vez de letras, o que dificulta a disseminação do conteúdo e que outras pessoas tomem conhecimento dessa realidade. Na época em que ocorreram conflitos simultâneos na Palestina e Jacarezinho, identificamos, também inúmeros problemas em comum, como a ineficiência do serviço de internet e [portanto da comunicação]. Assim como nós [pretos, favelados, periféricos do Brasil], os palestinos são presos sem grandes justificativas ou direitos, a internet é cortada ou seu acesso limitado, o fornecimento de energia é de apenas quatro horas, dificultando ainda mais qualquer comunicação. Temos que reinventar tudo. E não há como não falar da perseguição aos jornalistas: nesses últimos 22 anos foram mortos 44 profissionais palestinos em serviço.” — Badra El Cheikh
André Vieira, correspondente da Telesur, explica a relação das realidades de ambos países não ser mera coincidência.
“Quando cruzamos dados levantados pelo grupo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI), da UFF, sobre a violência na região metropolitana do Rio de Janeiro, pudemos constatar a relação entre o aumento da violência na cidade com a Copa do Mundo de 2014. Nesse momento, houve a militarização das comunidades e também foi vivido um estreitamento [das relações] entre a indústria bélica de Israel e o governo do estado do Rio de Janeiro. O estudo constatou o aumento e a intensificação da violência. Só assim para podermos analisar os fatos. A imprensa [comercial] não associa esses acontecimentos, por isso é muito importante quando as lutas se conectam.” — André Vieira
Thais Siqueira, que esteve na Palestina este ano, na mesma brigada que Gizele Martins, representando a Coalizão de Mídias, descreveu como o cenário de remoções, negligência e violência de Estado é semelhante nos dois países. Ela expõe que o mesmo processo que o Brasil reproduz de hiperencarceramento e genocídio da juventude negra também é reproduzido na Palestina, com sua juventude, que se vê assassinada e presa pelas Forças de Defesa de Israel (FDI), que, ao invés de defender, como diz seu nome, atacam, ocupam e expropriam, além de contribuírem para o processo de limpeza étnica e de mudança demográfica da região.
“Durante meus cinco dias de passagem, conheci esses lugares, as casas de beduínos que estão sendo ameaçados de despejo no Vale do Jordão e o encarceramento da juventude negra e periférica. Muitos homens lá já foram presos, por vários motivos. Nós, aqui no Brasil, ainda conseguimos garantir alguns direitos básicos. Já na Palestina, isso não acontece. Crianças de quatro a cinco são presas! Como um povo já perseguido passou a perseguir e a exterminar uma outra etnia em seu território? O ato de se defender desses abusos do povo israelense faria dos palestinos terroristas? Se você é atacado, precisa se defender de alguma forma! Porém, quem pode se comunicar irá deter o poder… Minha passagem por lá me trouxe questionamentos sobre como podemos ter atitudes efetivas em potencializar essa comunicação para o mundo.” — Thais Siqueira
Thais também aponta que se sentiu em casa, que comentou com Gizele na Palestina, por diversas vezes, como aquelas situações lembram a periferia em que mora em São Paulo, como os campos de refugiados, vilas e cidades são similares às favelas e periferias do Brasil. Ela cita sua visita ao Campo de Aida, em Belém, e sua surpresa ao perceber que essas violações são perpetradas pelas forças de Israel, mesmo com a presença da ONU no campo.
“Me chamou muita a atenção o cenário dos campos de refugiados e cidades palestinas, que me lembraram muito os territórios periféricos e favelados [do Brasil]. Logo quando a gente entra, o cenário é muito parecido. Tanto que lembro que brinquei com Gi Martins, ‘poxa, eu tô em casa! Isso aqui pra mim é periferia!’… o Exército de Israel, com armamento pesado apontando para senhoras de idade… me chamou muita atenção o assassinato da juventude palestina… como no Brasil… e o encarceramento da juventude Palestina me chamou atenção com relação ao que acontece no Brasil com a juventude preta e periférica… [no Brasil] mais de 60% dos encarceramentos são de homens e jovens pretos vindos de periferia… na Palestina, tem a questão de que quase todos os homens já foram presos por qualquer motivo… como pode esse tipo de coisa estar acontecendo e o mundo não fazer nada?… no Campo de Refugiados de Aida tem um prédio enorme da ONU e aí eu fiquei assim: ‘Meu Deus do céu! A ONU está aqui e nada se faz?’ São coisas que te impactam.” — Thais Siqueira
Em crítica aos padrões de cobertura da grande imprensa, Badra sinaliza o reforço de preconceitos:
“Homens negros, assim como os palestinos, não têm suas mortes contabilizadas… aqui porque são considerados bandidos… [lá] terroristas… Esse encontro é muito importante para nós por mostrar a força que o coletivo tem para as pessoas que são marginalizadas. Quanto mais fortes pensam que são, mais força fazemos para derrubar essas barreiras e muros.” — Badra El Cheikh
Além disso, ela falou sobre a sistemática perseguição a jornalistas na Palestina pelo Estado de Israel. Badra relembrou a Jornalista Shireen Abu Akleh, que, em 2022, foi assassinada por soldados israelenses a tiros, enquanto cobria protestos no Campo de Refugiados de Jenin, ao norte da Cisjordânia. A jornalista palestino-americana da Al Jazeera estava agachada junto a outros jornalistas, atrás de um muro, todos com capacete e colete à prova de balas identificados como “imprensa” e, mesmo assim, Shireen levou um tiro na cabeça de um soldado isralense. Após o assassinato, mesmo com toda a repercussão internacional, Israel decidiu não abrir investigação sobre o caso que, até hoje, segue impune.
“Se a gente está falando de comunicação insurgente e de Palestina, não tem como a gente não falar da perseguição a jornalistas, que Israel faz com muita força e com muito empenho. De 2000 a 2022, foram 44 jornalistas mortos por Israel enquanto estavam em serviço. A mais recente e chocante foi Shireen Abu Akleh, que foi assassinada enquanto cobria mais um massacre [perpetrado por Israel] ao Campo de Refugiados de Jenin… ela foi assassinada por um soldado israelense, apesar dela estar usando toda a vestimenta de proteção de jornalista. Isso só denuncia o histórico de Israel contra a comunicação palestina, seja contra a Shireen, que trabalhava pra uma mídia comercial, como a Al Jazeera, seja contra os comunicadores populares palestinos.” — Badra El Cheikh
Comércio da Militarização, Negação de Direitos e Falta de Acesso
Realizada em abril deste ano, no Rio de Janeiro, a feira de produtos bélicos, LAAD Defence and Security, expôs diversos produtos, dentre eles, o novo modelo de blindado produzido pela empresa Combat Armor, criado exclusivamente para uso no Brasil.
“Essa feira é a maior no setor bélico da América Latina e veiculou durante o evento a propaganda de um blindado, reproduzindo cenários de violência na Palestina. A empresa usava dessas imagens para argumentar sobre a resistência do produto, mostrando ter sido testado nos piores cenários. Uma realidade muito difícil de se ver.” — André Vieira
O mercado da violência se desdobra em outras formas, menos visíveis, como a privação de direitos fundamentais como o direito à propriedade e o acesso a serviços públicos, como a internet.
“Lá [na Palestina] também há o racismo digital, que é a dificuldade de acesso à internet… A gente teve muita dificuldade com foto, vídeo, de conseguir subir de lá a produção de conteúdo que a gente fez [para sites, nuvens e redes sociais]… É uma escassez de conexão muito gritante.” — Thais Siqueira
Situação que Gizele também passou antes de conseguir entrar na live deste VIII Julho Negro. A comunicadora mareense analisou sua situação comparando o racismo digital na Maré e na Palestina. Para ela, os paralelos não acabam por aí. A ativista entende que há paralelos no racismo ambiental e na situação de abandono que sofreram na pandemia, além de outros.
“Fiquei aqui pensando sobre o racismo digital. Antes de conseguir entrar aqui [nesta live], tentei me conectar sete vezes à internet… Não vou me estressar com a internet porque já sei como ela funciona: não funciona… durante a pandemia inteira, as nossas internets foram cortadas, né?… quando falamos em racismo ambiental, vemos outras várias conexões… Na pandemia, na minha casa, ficamos seis meses sem água, na Maré…. lembro de depoimentos no Campo de Refugiados de Aida, a água é liberada quatro horas por dia. Em Ramallah é uma vez por semana, mas, por exemplo, em Gaza [território palestino sem conexão territorial com a Cisjordânia que não foi visitado por Gizele e Thais porque está sob bloqueio de Israel], ninguém nem sabe daquela situação!… O apartheid delimita tudo, tira tudo da pessoa!” — Gizele Martins
Além disso, Gizelle contou sobre a história de um jovem de 23 anos preso 33 vezes: “Qual infância essas pessoas têm? O mesmo [acontece] no Brasil”. Por fim, convidou os participantes a sugerirem possíveis caminhos para a superação das opressões desses sistemas coloniais, racistas e militarizados no Brasil e na Palestina.
Para Badra, a persistência no trabalho de comunicação insurgente e o fortalecimento de redes aumenta a chance de fazer ecoar essa mensagem sob o ponto de vista das comunidades locais.
“Nossa luta é uma só… contra um sistema opressor… que tenta esmagar a vida e a potência dessas pessoas… Quando nos dissociamos dos estereótipos, conseguimos ver o que essas pessoas são e podem acrescentar… A luta dessa comunidade tem tudo a ver com as pessoas faveladas, a opressão é a mesma, temos que disputar esses espaços… precisamos batalhar para que essas pontes sejam feitas. Para que a comunidade palestina [árabe] no Brasil, e aqui vai uma crítica minha, entenda que a luta dela tem tudo a ver com a luta das pessoas faveladas. Tem uma questão de classe que é super importante de ser superada… as pessoas têm uma dificuldade de entender que a opressão que acontece aqui é a mesma que acontece lá… esse incentivo nosso um ao outro, se fortalecendo e se divulgando nos ajuda a tornar esse mundo melhor: sem opressão, sem apartheid, sem muro.” — Badra El Cheikh
André aponta que é papel de todo cidadão pressionar os governos e as organizações internacionais a mudarem suas posições e a responsabilizarem os perpetradores de violações de Direitos Humanos. Para ele, a solidariedade é a principal arma de construção de possibilidades de superação desses cenários no Brasil e na Palestina.
“Temos que cobrar de nossos governos, em defesa ao povo palestino… [também] uma postura mais enérgica da ONU… Como é importante a solidariedade, desde o apoiar o outro até a levar a experiência de um povo, ajudar na resistência… Como essa solidariedade fortalece quem está sendo solidário também. Como essa ida de vocês à Palestina fortalece essa luta aqui… o que vai transformar, o que vai nos dar força é a solidariedade, que não pode faltar de jeito nenhum. Inclusive, é o elemento que quando muitos dos outros não estão mais ali, já não existem, a solidariedade é aquela que resiste, até o último momento se necessário. Então, acho que é importante mostrar esses exemplos de solidariedade para que outras pessoas possam conhecer, participar mais dessa realidade, até mesmo para poderem contribuir.” — André Vieira
Já Thais, em sua fala de encerramento, fez uma reflexão que conectou a ditadura militar no Brasil à ocupação militar de Israel na Palestina e defendeu o direito pleno à vida na Palestina e no Brasil.
“A gente passou por vários checkpoints, pontos de controle do exército de Israel, extremamente armados… momentos bem tensos para a gente… do mesmo jeito que a ditadura militar no Brasil não foi algo bonito, não foi algo democrático, não foi algo que transformava vidas, que favorecia o povo, o que acontece na Palestina, o que Israel faz com os palestinos, também não é algo favorece o povo da Palestina, só favorece Israel e um povo que quer dominar uma terra que não pertence a eles… Queria fechar falando sobre garantia, sobre pensarmos formas de comunicar, a partir das nossas atuações, sobre a garantia dos direitos, sobre o direito de ir e vir, sobre o direito à terra, sobre o direito de viver e não de sobreviver, sobre o direito à vida!… basicamente quando estamos falando do povo palestino hoje, assim como quando vivemos nos territórios periféricos, estamos falando do direito à vida.” — Thais Siqueira
E, então, fechando o VIII Julho Negro, Gizele Martins reforçou as falas de André e Thais sobre o papel da solidariedade na luta pelo direito à vida. Segundo ela, as comunicações insurgentes são meios para futuros diferentes para Brasil e Palestina.
“O que nos une da Palestina à Maré, da Palestina ao Capão Redondo, da Palestina a Maceió é a luta pelo direito à vida, o direito à terra, o direito ao ar, o direito de comer bem, o direito de viver, que vem sendo retirado da gente… Mas, como André falou, tem algo que eles não vão tirar da gente, que é esse sentido de solidariedade, de povo, de comunhão… esse encontro das comunicações insurgentes.” — Gizele Martins
Assista o VIII Julho Negro:
Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é estudante de jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau e atualmente mora na Vila do João, ambos no Complexo da Maré.