CPX da Mangueirinha em Pauta: Desafios Jornalísticos de Comunicadores do Maior Complexo de Favelas da Baixada Fluminense

'A gente quer quebrar essa política de medo que o Estado cria em cima da gente."

Equipe do CPX Mangueirinha em Pauta. Da esquerda para direita: Adillenon Jorge, Pedro Vinícius, Jade Albuquerque e Wallace Clayton. Foto: Acervo Pessoal
Equipe do CPX Mangueirinha em Pauta. Da esquerda para direita: Adillenon Jorge, Pedro Vinícius, Jade Albuquerque e Wallace Clayton. Foto: Acervo Pessoal

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O Complexo da Mangueirinha, em Duque de Caxias, é o maior conjunto de favelas da Baixada Fluminense. Ali, onde a presença do Estado é primordialmente sentida através da intervenção das forças de segurança, um grupo de jovens se cansou das narrativas tendenciosas, preconceituosas e, por vezes, irreais da mídia hegemônica em relação a seus territórios. Munidos do desejo de mudar a representação costumeira das favelas como cenários de violência e hostilidade, puseram a mão na massa e fundaram, em abril de 2023, o mais novo canal de comunicação das favelas da Baixada Fluminense: CPX Mangueirinha em Pauta.

Um dos idealizadores da iniciativa, Pedro Vinícius Lobo, tem 31 anos, é estudante de relações públicas e faz parte de outros coletivos como o Portal Favelas. Adilenon Jorge, mais conhecido como Lennon Kira, tem 26 anos e é estudante de ciências sociais, além de ser rapper nas horas vagas. Ambos são estudantes da UERJ. Eles uniram forças aos moradores Wallace Clayton e Jade Albuquerque, que, além de repórteres, também exercem funções administrativas no coletivo. Pedro afirma que os panoramas social e político da região foram os principais elementos norteadores para a construção do coletivo. Ele se surpreendeu, por exemplo, com o número de votantes de sua comunidade que elegeu Cláudio Castro como governador do estado do Rio, um político preocupado em demonstrar poder através de operações policiais sangrentas em favelas e periferias e que se mantém em silêncio diante de violações e abusos cometidos por agentes de segurança pública sob sua responsabilidade durante estas ações.

“Essa percepção de realidade dos moradores daqui só se baseia em como os meios de comunicação nos retratam de forma pejorativa. A nossa preocupação é identificar o que os moradores querem enquanto demanda. Como, de fato, eles querem ser vistos. Isso acaba refletindo em vários aspectos, inclusive no voto. A grande maioria aqui votou em um governador, cuja prioridade é o extermínio desses próprios moradores. É como se a formiga fosse votar na companhia de dedetização.” Pedro Vinícius Lobo

CPX Mangueirinha. Foto: Fabio Leon
CPX Mangueirinha. Foto: Fabio Leon

Compreendendo as favelas da Mangueirinha, Santuário, Corte 8, Lagoinha, Morro do Sapo, Favelinha de Caxias (Escadão, Curva da Morte, Rua Aureliano Lessa, Rua J.J. Seabra e Caixa d’Água), além do Morro do São Pedro, o Complexo da Mangueirinha ganhou certa notoriedade quando a grande mídia noticiou a instalação da primeira e única Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Baixada Fluminense, que funcionou entre 2014 e 2018. Essa instalação ocorreu em um momento em que a política de pacificação já se encontrava agonizante, em desmonte. Desestabilizada, a UPP da Mangueirinha foi extinta, tornando-se um destacamento da Polícia Militar em 2018.

“Ninguém nos perguntou, na época, se queríamos isso [essa UPP] aqui. Não perguntaram se queríamos uma creche, um posto de saúde, se precisaríamos de mais mobilidade ou garantir que o que já existia, em termos de equipamentos públicos, iria continuar funcionando.” — Pedro Vinícius Lobo

Sobre as inquietações dos moradores sobre seus territórios, Lennon explica que elas inevitavelmente giram em torno da segurança. Segundo ele, há dois tipos de segurança que preocupam os favelados: a física, para não se tornarem vítimas fatais dos tiroteios e da violência policial, e a segurança alimentar, pois há muitos casos de famílias inteiras passando fome nas favelas do Brasil.

“O foco de atenção sempre acaba predominando na entrada da favela, mas muitos se esquecem que, lá no alto do morro, tem muita gente em situação precária, morando em casa de madeira. Só que é muito fácil colocar o Rio de Janeiro como um lugar do futebol, do carnaval, do Cristo Redentor, dos Arcos da Lapa. Porém, jornalista que mora na Zona Sul não mostra a real necessidade dos moradores da Baixada. A gente faz esse exercício de acessar espaços que são tratados como se não existissem.” — Lennon Kira

Um dos desafios do CPX Mangueirinha em Pauta é transpor as longas distâncias do complexo, quase sempre a pé. A opção se justifica, pois alguns becos e vielas são muito estreitos e é necessária a caminhada para que nenhum território fique desprovido de cobertura jornalística. As vezes, tiroteios iminentes forçam um desvio de rota, que acaba se estendendo, para que não sejam alvejados.

“Por sermos daqui, eu sempre peço para sairmos de nossa zona de conforto. Vamos caminhar mesmo para que a gente se sinta parte do Complexo, né? [Normalmente], eu não ando em todas as comunidades, mesmo [elas] sendo da mesma facção. Eu não sei o que os mais jovens do movimento, que costumam ser mais acelerados, vão achar. Provavelmente, vão estranhar eu percorrer tanta distância por aqui. Eu sei que os mais velhos vão respeitar.” — Pedro Vinícius Lobo

Lennon e Pedro Vinícius. Foto Fabio Leon
Lennon e Pedro Vinícius. Foto: Fabio Leon

Os Primeiros Dias do CPX Mangueirinha em Pauta

Os primeiros dias foram de muito corre. As reuniões de pauta, divisão de trabalhos e a produção de notícias renderam e produziram um cotidiano intenso, segundo Lennon. Os primeiros 30 dias foram cruciais para se fazer uma avaliação sobre as limitações e possibilidades de continuidade do trabalho do coletivo.

“Trabalhamos todos os dias, de domingo a domingo, até no Dia das Mães abdicamos de estar com nossas famílias para cobrir eventos fotografando, colhendo entrevistas, ouvindo o que o pessoal tinha a dizer sobre o evento. Ontem mesmo, ficamos em reunião até meia noite. Além disso, cada um tem seus trabalhos pessoais, a sua correria.” — Lennon Kira

MC Rafinha e DJ DRika. Foto: Arquivo pessoal
MC Rafinha e DJ DRika. Foto: Arquivo pessoal

Nessa primeira fase, as matérias destacam moradores da região, como a DJ DRika e o MC Rafinha, produtores e idealizadores da Roda Cultural do Centenário, um dos cenários da cultura hip-hop em Duque de Caxias. Ambos são moradores da Lagoinha, no Complexo da Mangueirinha, território frequentemente lembrado por uma chacina perpetrada pela PMERJ em 2008, onde dez pessoas foram assassinadas. A entrevista com o casal trata, dentre outros assuntos, sobre gravidez, rede de apoio e sobre como é produzir cultura periférica carregando “todo um universo dentro da barriga”.

Há também uma conversa com o motoboy e árbitro Emerson de Souza Rocha, integrante da Federação de Futebol do Rio de Janeiro (Ferj) e organizador de vários campeonatos da região.

As notícias são produzidas em regime de colaboração, por aqueles que têm disponibilidade no momento em que os eventos ocorrem. Toda a equipe desempenha múltiplas tarefas, todos precisam saber escrever, fotografar, editar vídeos, gerenciar e cuidar da identidade visual do CPX Mangueirinha em Pauta nas redes sociais. Em breve, será lançado um site do coletivo, que ainda não foi ao ar por questões envolvendo estudos sobre a segurança digital da plataforma. Aliás, as redes sociais e aplicativos de mensagem, como o WhatsApp, funcionam como apoio no levantamento prévio do que anda acontecendo nas comunidades da Mangueirinha. Chegam mensagens de moradores compartilhamento informações com os temas mais variados, como tiroteios provocados por alguma operação ou eventos comunitários programados nos fins de semana.

“Todo mundo aqui está dentro de uma penca de grupos de WhatsApp. É uma forma da gente se proteger também, porque muitos são pai de família. Precisamos estar conectados com tudo o que rola. No momento, existe a importância da gente se fazer presente nesses locais, pois alguns membros desses grupos moram em locais tidos como inacessíveis. Se formos sair daqui e ir pra Lagoinha, por exemplo, a gente vai ter que dar uma volta enorme, tendo de ir até o Centro de Caxias. Pode acontecer da gente chegar lá, estar havendo confronto e não termos essa informação. [É um problema, pois] nos informar é mais uma forma de driblar riscos.” — Pedro Vinícius Lobo

Dilemas e Percepções Cruéis

Os membros do coletivo também forneceram outras dicas sobre como sobreviver jornalisticamente em favelas. Para eles, a principal condição que garante que o trabalho do coletivo continue se desenrolando com qualidade e efetividade é o bom relacionamento com as fontes. Ter bastante proximidade com as lideranças de associações de moradores ajuda bastante, por exemplo.

Cobertura do CPX Mnangueirinha em Pauta de atividade recreativa com moradores do complexo. Foto: CPX Mangueirinha em Pauta
Cobertura do CPX Mangueirinha em Pauta de atividade recreativa com moradores do complexo. Foto: CPX Mangueirinha em Pauta

Um dos pontos mais sensíveis da conversa com os membros do coletivo foi o cotidiano de violações daqueles que moram nas favelas. Ser um produtor de conteúdo favelado, impossibilitado de fugir do perverso estereótipo de ser um alvo em potencial das atrocidades do Estado, revela um drama pessoal vivido por Lennon. Com 12 anos de idade, de manhã, a caminho da escola, foi atingido por dois tiros de fuzil 556. Ele revela que houve ainda um terceiro tiro, que foi efetuado por um agente do Estado, com a intenção de intimidá-lo. Uma bala atingiu a perna direita de raspão, já a segunda, entrou por sua perna esquerda e lá está até hoje. “Ela ficou alojada na veia femoral. Se a bala for retirada, posso ter uma hemorragia e morrer”, atesta Lennon.

Mesmo tentando se recuperar fisica e mentalmente, canalizando de forma positiva o que poderia ser o resultado de sua própria morte, o comunicador foi vítima de um segundo episódio violento perpetrado pelas forças policiais do Estado. Numa operação policial, teve sua casa invadida, sem mandado judicial para isso. Durante a invasão da casa, Lennon foi derrubado no chão por um PM, que pisou no seu peito com um coturno gritando que iria matá-lo. Foi chamado de traficante pelos policiais, por causa dos longos dreadlocks que usa, sua marca registrada enquanto militante cultural do movimento hip-hop. Entretanto, nem isso foi capaz de tirar sua perseverança em difundir a democracia e a liberdade de expressão pelas comunidades da Mangueirinha.

“A construção desse coletivo vem pra diminuir, de certa forma, o trauma que eu adquiri com esses episódios. Porque, quando aconteceu aquilo comigo, eu não tinha a quem recorrer. Agora os moradores sempre vão ter com quem contar, quando os seus direitos forem violados. Podemos encaminhar as denúncias ao Ministério Público. A gente quer tentar, dentro do possível, quebrar essa política de medo que o Estado cria em cima da gente. Quem mora em comunidade tem medo de facção rival, da polícia, do ladrão e da milícia. É uma vida de cerco.” — Lennon Kira

Sobre o autor: Fabio Leon é jornalista, ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.


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