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No Mês da Consciência Negra, esta matéria cobre a Festa Literária das Periferias (FLUP) sobre autores negros brasileiros pioneiros, pretas e pretos velhos da literatura brasileira: o cria de favela Machado de Assis, Lima Barreto e Mãe Beata de Iemanjá. A FLUP realizou sua 13º edição ao longo do ano de 2023, em diversas fases de ativação cultural que ocuparam a Pequena África. Sua abertura aconteceu no Dia dos Pretos Velhos e também da Abolição da Escravatura, 13 de maio, onde foi celebrada a oralidade ancestral sob o tema “Mundo da palavra, palavra do mundo”. Sua mais recente etapa de eventos ocupou a Região Portuária entre os dias 12 a 15 e 18 a 22 de outubro. Neste ano, a FLUP aconteceu em diversos espaços da Pequena África, como o Cais do Valongo, o maior porto escravista do mundo, a Arena Samol, na Ladeira do Livramento, a poucos metros de onde Machado de Assis nasceu, a Vila Olímpica da Gamboa, o Galpão da Ação da Cidadania e a Garagem da Viação Reginas, aos pés do Morro da Providência, a primeira comunidade nomeada favela.
Nesta edição, a FLUP homenageia a sabedoria ancestral das pretas e pretos velhos, sobretudo, do cria do Morro do Livramento, fundador da Academia Brasileira de Letras e maior escritor da literatura brasileira Machado de Assis, sob o lema “Machado É Cria!“. Além dele, são comemorados Lima Barreto e Mãe Beata de Iemanjá, importante escritora e liderança religiosa e comunitária, que sempre pautou sua atuação pela preservação do meio ambiente, pela defesa dos direitos humanos, do combate ao sexismo e ao racismo.
Em 13 de maio, na primeira fase da FLUP 2023, com cerca de 3.000 presentes, pretas e pretos velhos encarnados nos deram a régua e compasso, entre eles: Gilberto Gil, Haroldo Costa, Mãe Glória de Iemanjá, Conceição Evaristo, Nêgo Bispo e Dona Zélia do Prato. Essas discussões de mais alto nível contaram com a mediação de importantes intelectuais brasileiras, como: Flávia Oliveira e Eliana Alves Cruz.
O slogan “Vem pra gira, cria!” teve como objetivo unir a ancestralidade afro-indígena, as literaturas e a diversidade das favelas e periferias do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo. O mote serve de convite, em bom pretuguês, aos que queiram celebrar nossos ancestrais e nossos mais velhos nesse terreiro literário da Pequena África.
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Em sua etapa mais recente, com uma extensa programação ao longo de nove dias, a FLUP contou com shows como os de Leci Brandão, MV Bill, Xamã, Linn da Quebrada, Bia Ferreira, Mulheres na Roda, Teresa Cristina e Rita Beneditto; com uma apresentação única, exclusiva e gratuita, na Pequena África, da premiada peça Macacos; e com batalhas de Slam, com poetas nacionais e estrangeiros. Em suas edições anteriores, tradicionalmente, essa gira acontece em favelas, como Morro dos Prazeres, Mangueira, Chapéu Mangueira, Cidade de Deus, Vidigal e Complexo da Maré. Em 2023, a feira acontece numa região do Centro da cidade, a Pequena África, berço das favelas do Brasil, um território negro ancestral entre asfalto e favela.
Neste ciclo mais recente de atividades, em outubro, diversas intervenções ocuparam espaços públicos e da sociedade civil na Gamboa. Através das mais diferentes propostas, reforçou-se o protagonismo da oralidade nas literaturas. Nesta reportagem, será dado foco a três destas atividades: à FLUP Infantil e aos ciclos de palestras “Periferias Globais: da Margem ao Centro do Mundo” e “O Brasil das Cotas e o Pioneirismo da UERJ 20 Anos de Cotas“. Nestes debates, foram abordadas temáticas que celebraram conquistas do Movimento Negro, dentre elas os 20 anos de cotas na UERJ e como tais políticas beneficiaram também indígenas, pessoas em vulnerabilidade econômica e alunos de escola pública, os 50 anos do Hip Hop, o massacre de Canudos e a fundação do Morro da Favella, há 126 anos, hoje conhecida como Morro da Providência, e a história deste tipo de territorialização da negação do direito à moradia.
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Periferias Globais
No dia 16 de outubro, no âmbito do ciclo de palestras Periferias Globais, realizou-se a mesa “Morro da Favela: A Providência de Canudos”, na qual estiveram presentes o fotógrafo, cria da Providência, Maurício Hora; João Batista S. Lima, cria de Canudos, historiador e descendente de conselheristas; Luiz Torres, professor, quilombola e cria da Providência; e Sílvia Capanema, professora e pesquisadora. Durante as exposições, foi debatida a relação direta entre Canudos e o Morro da Providência.
“Olha que coisa interessante: quando fazia 100 anos da Guerra de Canudos, uma pessoa da UNEB (Universidade do Estado da Bahia) entrou em contato comigo falando que eu tinha que ir para Canudos porque tinham aparecido ruínas… Fizeram um açude para esconder os vestígios da Guerra… Em 1968 [foi] concluído o açude… [e] a previsão [dos engenheiros] era do açude encher em três ou quatro anos… [No entanto,] encheu em três dias, [e] no quarto dia transbordou… Então, quando [fez] 100 anos da guerra, o açude secou e apareceu toda a cidade de novo! Coisa divina isso… a UNEB fez um grande trabalho de arqueologia… Quando eu fiquei sabendo da notícia eu falei: cara, eu tenho que ir! Eu tenho que ir, mas acabou que eu não fui, não tinha dinheiro para ir…” — Maurício Hora
João Batista, historiador e guia de turismo em Canudos, falou sobre a perspectiva dos canudenses da história da guerra, da sociedade que ali era desenvolvida e do legado dos conselheiristas.
“Eu quero começar lendo aqui uns versos… que diz o seguinte:
‘Uma terra sangrenta se deu no sertão
destruindo um sonho em comunhão,
apagando a esperança de um povo guerreiro e libertação.O sertão virou mar de sangue, o sangue encharcou o chão,
a caatinga chorou os nossos e despida gritou somos todos irmãos.O massacre medonho em Canudos marcou a nação,
coronel e generais e soldados com a mesma visão:
apagar a utopia de um coração.O sertão virou mar de sangue e o sangue encharcou o chão,
a caatinga chorou os nossos e despida gritou somos todos irmãos.
Sertanejo é forte enfrenta a seca pedindo a Deus provisão,
a chuva que chega traz esperança lavando esse torvão.’A guerra se foi e os anos passaram não esquecendo jamais Canudos de outrora, será novamente lembrada em uma canção de amor justiça e paz e todos unidos em um mesmo sentido dirão guerra nunca mais. O sertão é um mar de sonhos, de esperança e de redenção, a caatinga encanta a vida.” — João Batista
Ainda parte do ciclo de palestras Periferias Globais, a mesa do dia 19 de outubro, “Línguas Faladas, Mundos Falados”, teve participação da rapper, poeta e compositora, Carol Dall Farra; do cordelista, poeta e ator, Edmilson Santini; do escritor e poeta, Mauricio Acuña; e da escritora, Natalia Ospina. A mesa tratou sobre as diferentes formas de linguagem, artes e cultura em diferentes periferias globais. Edmilson Santini narrou sua história em diversos momentos usando técnicas de cordel. Ele lembrou o quanto suas origens foram importantes para que ele fosse quem é hoje.
“Eu fui criado numa roda de contação de histórias de cordel. Meu avô era chamado pajé do sertão, ele vivia na fazenda na divisa de Alagoas com Pernambuco, no lugar chamado Canapi. Hoje, com o cordel patrimônio imaterial, eu vivo assim, meu melhor patrimônio imaterial foi o meu avô.” — Edmilson Santini
“Então, eu lembro que eu escrevia muito porque minha mãe lia muito, minha mãe é uma mulher que não terminou nem o ensino médio, mas que era uma leitora assídua… Ela não só lia, como ficava rindo, ela externalizava. Então, às vezes, pegava a minha mãe chorando horrores e, às vezes, rindo horrores, sempre com um cafezinho e um cigarro na mão… E eu ficava observando aquilo, ainda antes de saber ler. Eu ficava muito intrigada.” — Carol Dall Farra
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FLUP Infantil
No dia 12 de outubro, a programação contou com a distribuição de 500 pipas. Teve também o evento “O Carnaval de Cria – Cortejo Carnaval dos Animais”, com a Companhia de Mystérios e Novidades. Além disso, o Cine FLUP para Crianças realizou a oficina AfroAmanhã, com o cineasta Eric Paiva sobre afrofuturismo para dezenas de crianças alunas de escolas do município.
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Na oficina, Eric tratou de temas como questões sobre o uso de inteligências artificiais (IA), ética no uso da IA e como isso pode impactar populações negras e periféricas.
“Eu já dei aula aqui na Providência… bons anos atrás, quando eu [es]tava estudando cinema… Voltar aqui na Providência é sempre bacana… Eu também sou cria de favela, então, tá tudo em casa… Eu pude experimentar [mostrar para as crianças] uns vídeos que eu fiz. A recepção foi maravilhosa… No final, uma menininha pequenininha veio e me abraçou.” — Eric Paiva
UERJ: 20 Anos de Cotas
Pioneira na implementação de cotas, a UERJ foi tema de um longo ciclo de palestras na FLUP 2023. Foram organizadas mesas, espaços para debater as cotas e as consequências da política de reserva de vagas, que já faz parte da realidade da universidade há 20 anos.
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No dia 20 de outubro, uma outra mesa, parte deste mesmo ciclo de palestras, chamada “Universidade: Território Indígena” trouxe a tona como os povos indígenas foram impactados pelas cotas nas universidades, em especial na UERJ. A mesa contou com a participação das lideranças indígenas Cacique Marcos Xukuru, Tayná Álvares, que é aluna da UERJ, e Wallace Amaral.
“A UERJ foi pioneira no sistema de cotas. Eu acho que a UERJ poderia dar mais um passo, pensando naqueles que são aldeados, na questão de acesso dos que mantêm a língua materna. Que se preparem para que possam acolher e pensar essa acessibilidade para os parentes que são aldeados e mantém essa resistência. Acho que essa seria uma forma de dizer que somos bem vindos e que podemos ocupar esses espaços” — Tainá Álvares
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A FLUP, anualmente, lembra que as periferias também vivem, produzem e consomem cultura. Em uma realidade que há pouco tempo um ex-ministro sugeriu que houvesse taxação e aumento dos preços dos livros, pois, segundo ele, livro era um artigo das classes mais ricas, a feira mostra justamente o contrário: que consumimos livros, filmes, música, teatro e muito mais. Mas que não é só isso, também fazemos e somos, muitas vezes, o centro da nossa cultura.
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Além desta última rodada de grande eventos, que aconteceram sobretudo em maio e outubro, a FLUP ainda continua. Sua programação não terminou e se descentralizou ainda mais, apesar de sempre levar consigo a identidade de uma feira literária de favela e periferia. No dia 4 de novembro, em uma ação pontual, houve uma roda de leitura dramatizada no SESC Tijuca da obra que homenageia Lima Barreto, produzida e lançada no âmbito da FLUP este ano: Quilombo do Lima.
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Além disso, slams nacionais e internacionais marcaram a programação da FLUP ao longo do ano, como: a Batalha de Rima, da FLUP em parceria com a Batalha Marginow; a fase classificatório do Campeonato Mundial de Poetry Slam; o Trans Slam Internacional; o Slam FLUP das Minas BR, organizado pelo Slam das Minas RJ em conjunto com a feira literária; e o Slam Coalkan na FLUP, o primeiro slam indígena do mundo, que une artistas originários que vivem na encruzilhada entre a favela, periferia e aldeia.
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Em novembro, a feira ainda continua apoiando eventos do gênero por todo o Brasil. De 30 de novembro a 3 de dezembro, a FLUP ajuda a organizar o Slam BR 2023, na cidade de Itabira, no estado de Minas Gerais, nas dependências da Fundação Carlos Drummond de Andrade. Um encontro de poesia falada com poetas de 22 estados do Brasil. A apresentação será feita pela equipe do SLAM MG, que também fará exposição de filmes, rodas de conversa, oficinas e até um seminário.
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Sobre o autor: Vinícius Ribeiro é nascido e criado na Zona Oeste, entre a Estrada da Posse, em Santíssimo, e o Barata, em Realengo. Atualmente mora na Mangueira. Jornalista, cineasta e fotógrafo, é membro do Coletivo Fotoguerrilha. Assina direção e roteiro dos curtas Sobreviver, Dame Candole, Sob o Mesmo Teto e Entregadores. Atualmente, está em um projeto sobre uberização e precarização do trabalho.