Neste Mês da Mulher, Conheça Valdirene Militão: Agricultora Urbana que Luta pela Autonomia das Mulheres de Favela

Valdirene Militão em uma das oficinas de brinquedos sustentáveis na creche Zilda Arns, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, Zona Oeste. Foto: Acervo Pessoal
Valdirene Militão em uma das oficinas de brinquedos sustentáveis na creche Zilda Arns, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, Zona Oeste. Foto: Acervo Pessoal

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Valdirene Oliveira Militão ou Val, como é conhecida na favela Roquete Pinto, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde mora há 52 anos, representa a possibilidade de práticas sustentáveis cotidianas e acessíveis para moradores de favela. A agroecologia e a sustentabilidade, que têm cada vez mais ganhado espaço no debate público, são conhecimentos que, na favela, são passados pelos mais velhos, de maneira afetiva e local. Contudo, esses saberes pupulares são invisibilizados e deslegitimados por serem práticos, concebidos por meio da vivência e das necessidades, através de pretagogias. Tais valores só passam a ser aceitos e vistos como solução ao serem embranquecidos e transformados em mercadoria, em ferramentas de controle.

Casa Ateliê da Val, na produção de roupas sustentáveis no Complexo da Maré. Foto: Acervo Pessoal
Casa Ateliê da Val, na produção de roupas sustentáveis no Complexo da Maré. Foto: Acervo Pessoal

Nesse sentido, reaproveitar resíduos e (re)criar a partir de sucatas é, nas mãos de Valdirene, instrumento para ressignificar a vida e sua comunidade. Essa combinação de perspectivas sintetiza as iniciativas de Valdirene Militão em prol da sustentabilidade e da emancipação econômica das mulheres. Por meio de oficinas, ela as ensina a reaproveitar resquícios de materiais para transformá-los e comercializá-los, assim gerando renda.

No entorno da sua casa-ateliê, onde desenvolve as atividades de reciclagem, Val reúne caixas de leite, a fim de construir mantas protetoras para animais. Além disso, a artista plástica reúne também cápsulas de café, bijuterias e garrafas pet para a construção de objetos de decoração e roupas, como a roupa da Yá Burihan para o Baile da Vogue 2024, em que a artesã da Maré reuniu 204 cápsulas de café para criar uma roupa em estilo futurista.

“Fiz o vestido em dois dias, mas estudei uma semana sobre o que faria.” — Valdirene Militão

Além da carreira de artista plástica, Val fomenta outras iniciativas sustentáveis. Foi uma das idealizadoras do Projeto Ricardo Barriga, que surgiu na pandemia do coronavírus, em 2020, para gerar renda aos moradores da Maré e promover a segurança alimentar. Ele foi batizado com esse nome em homenagem a Ricardo Barriga, ex-cunhado da Val, que morreu de Covid-19. As atividades desenvolvidas têm por objetivo promover a cultura da sustentabilidade, como a oficina de sabão feito com óleo de cozinha usado, distribuição de cestas básicas, máscaras e sabão Eco.

Geração de Renda Verde, Emancipação Feminina e Infância Sustentável

Mobilização do Projeto Ricardo Barriga para distribuição de alimentos no período da pandemia do coronavírus. Foto: Acervo Pessoal
Mobilização do Projeto Ricardo Barriga para distribuição de alimentos no período da pandemia do coronavírus. Foto: Acervo Pessoal

No contexto de pandemia, que intensificou a falta de acesso à alimentação nas favelas, o Instituto Data Favela, em parceria com a Locomotiva Pesquisa e Estratégia e a Central Única das Favelas (CUFA), revelou que 70% dos moradores de favela não tiveram dinheiro para comprar comida. Para reverter essa triste realidade, o Projeto Ricardo Barriga se dedicou a arrecadar e distribuir cestas básicas, como conta Ednalva do Nascimento, moradora do Piscinão de Ramos, na Maré:

“A vida na pandemia foi horrível não só para mim, como para toda a comunidade. Tivemos muitas perdas de vizinhos. Além disso, a pandemia impactou muito na vida dos moradores de favela. Teve gente que passou muita necessidade e as cestas ajudaram muito, principalmente para quem perdeu seus trabalhos.”

Para além das necessidades pontuais, como a distribuição de cestas básicas, Valdirene pensou, ainda na pandemia, também a longo prazo. Seu foco na manutenção e na sustentabilidade das famílias e mulheres de favela fez com que ela promovesse oficinas de aproveitamento de óleo de cozinha. Por meio da Fiocruz Mata Atlântica, ela realizou uma oficina online de produção de sabão a partir de óleo usado, com a possibilidade de comercialização pelos moradores do entorno para geração de renda e economia doméstica.

“Comecei a fazer os sabões para economizar em casa e para consumo próprio e depois passei a comercializar, assim pude ajudar a minha família em período muito difícil e adquiri um conhecimento que vai ficar para a vida toda.” — Fátima Maria da Silva

Nessa mesma linha de atuação, Val ensina a produzir outros produtos sustentáveis e fundamentais para combater a vulnerabilidade social nas favelas. É assim que ela ensina a produzir absorventes sustentáveis, na luta por dignidade menstrual, por exemplo.

“Muitas mulheres não têm se quer o dinheiro para comprar um absorvente, além de darmos autonomia no ir e vir, elas podem gerar renda vendendo esse absorvente e ainda não polui o planeta por ser reutilizável.” — Valdirene Militão

Val oferecendo oficina de elaboração de sabão eco feita com óleo de cozinha. Foto: Acervo Pessoal
Val oferecendo oficina de elaboração de sabão eco feita com óleo de cozinha. Foto: Acervo Pessoal

Para além de gerar renda, as produções sustentáveis e as ideias inovadoras de Val impactam as novas gerações, já que ela também ministra oficinas para crianças, ensinando a construção de brinquedos a partir de resíduos plásticos como tampinhas e garrafas pet. Materiais que se transformam em carrinhos, liquidificadores, chocalhos e etc. É o que relembra Rosário Frazão, moradora do Piscinão de Ramos e ex-aluna de Valdirene: “As crianças aprendem como cuidar da natureza, utilizando materiais recicláveis”.

Ganhadora do Prêmio ‘Mulher Cidadã’ da ALERJ

Val recebendo o Diploma Mulher Cidadã Leolinda Daltro, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) no Dia Internacional das Mulheres das mãos da Deputada Renata Souza. Foto: Acervo Pessoal
Val recebendo o Diploma Mulher Cidadã Leolinda Daltro, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) no Dia Internacional das Mulheres das mãos da Deputada Renata Souza. Foto: Acervo Pessoal

Por sua trajetória de vida em prol da sustentabilidade e emancipação econômica das mulheres de favela, Val recebeu a condecoração Diploma Mulher Cidadã Leolinda Daltro, conferida a ela pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) no Dia Internacional das Mulheres. Em 2024, o prêmio foi concedido a dez mulheres que lutam pela equidade de gênero no estado do Rio de Janeiro. Além de Val, foram homenageadas: Angela Andrade, Enfermeira Rejane, Joyce Trindade, Mariana Torres, Marinete Silva, Moana Martins, Patrícia Felix, Rafaela França e Sabrina Rodrigues.

Valdirene é um exemplo inspirador de como a agroecologia e a sustentabilidade podem ser ferramentas de transformação social nas favelas, os territórios mais impactados pelo racismo ambiental e pela injustiça socioambiental nas cidades brasileiras. Mesmo vulnerabilizados pela negligência do Estado, moradoras e moradores de favela como Valdirene Militão são protagonistas na luta por uma cidade sustentável e por favelas resilientes às mudanças climáticas.

“A sustentabilidade é nossa prioridade… a natureza nossa fonte de vida e de riqueza pede socorro… lutamos por um planeta melhor, nos unimos nessa corrente de fé e coragem, diante desse tsunami gigante, pedindo para o povo se conscientizar, que precisamos uns dos outros, para mudanças melhores… fazendo ações simples, como sujou limpou… Limpar as ruas, as praias, os riachos, as baías, o meio ambiente, as águas… Recicle o lixo e transforme em artes, em dinheiro para comprar seu pão de cada dia. A sustentabilidade é nosso foco para a nossa sobrevivência.” — Rosário Frazão

Através de suas iniciativas, Valdirene evidencia que práticas sustentáveis cotidianas e acessíveis podem gerar renda, emancipação econômica e empoderamento para as mulheres. As favelas são espaços de resistência onde a comunidade se une para construir soluções inovadoras para seus problemas. O trabalho de Valdirene Militão é um farol de esperança que demonstra o potencial da sustentabilidade das favelas com educação ambiental, valorização dos saberes tradicionais e da criatividade. É através da luta de mulheres como Valdirene que será possível construir um Rio de Janeiro mais verde, justo e próspero para todas e todos.

Sobre a autora: Carol Marinho é cria do Complexo do Alemão, mestra em Relações Étnico-Raciais, educadora e jornalista.


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