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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
No início de 2020, quase 6 milhões de pessoas no Grande Rio de Janeiro tiveram que mudar seus hábitos com relação à água, pois ficou comprovada a presença de uma substância estranha, que não deveria estar ali: a geosmina. Se trata de uma substância orgânica produzida por bactérias que apareceram no mais importante manancial hídrico do estado do Rio de Janeiro, o Rio Guandu, deixando sua água com sabor e odor desagradáveis. O gosto assemelhava-se a água como retirada de um lamaçal. A presença de geosmina na água fornecida pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) se tornou, a partir de então, um problema recorrente.
Isso ocasionou uma crise de abastecimento de água potável em dezenas de bairros da capital, sobretudo em favelas e territórios periféricos. Quem podia recorreu a medidas alternativas, como a compra de água mineral. Cinco meses depois, o que era uma desconfiança transformou-se fato. Um laudo emitido pelo laboratório de microbiologia da UFRJ constatou que a qualidade da água do Guandú continha alta abundância de bactérias provenientes de fezes humanas, o que sugere contaminação por esgoto.
Lagoinha: Mudança na Vida de 55 Pescadores da Região
Esse cenário afetou em cheio a Lagoinha, comunidade na divisa entre Nova Iguaçu e Seropédica, que pertence à Área de Proteção do Rio Guandu ou APA do Guandu, como é mais popularmente conhecida. Ali encontram-se a Lagoa do Quiabal e o Lagoão do Guandu, que tiveram suas áreas ampliadas pela ação humana em razão da instalação de barragens. A comunidade local as conhece como as “Lagoas do Guandu” ou o “Pantanal Iguaçuano”, uma área de vegetação conservada sobretudo pela ação da população local.
É onde mora Vitor Ambrozioni, presidente da Associação de Pescadores das Lagoas do Guandu (Pesguandu) e militante ambiental. Morador do bairro há mais de 40 anos, ele conta como era a vida no local:
“Tem criança que não saía da rua, mas a gente aqui não saía era do rio (risos). Pescava muito eu e minha esposa, quando éramos namorados ainda. A criançada daqui só fazia pescar, nadar, andar no mato, comer fruta do pé. A gente não tinha tecnologia [digital].”
Ele diz que até 2018, Lagoinha era uma região próspera para quem vivia da pesca. Vitor acordava por volta das 5h30 da manhã, retornando ao lar às 18h da tarde, chegando a ficar mais de 12h navegando pelo Rio Guandu e seus afluentes, os rios Queimados, Poços e Ipiranga que abastecem os municípios de Nilópolis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, Itaguaí, Queimados e Rio de Janeiro.
Recolhia traíras, tilápias e piabas, espécies descritas por ele como grandes e saudáveis naquele tempo. Tinha uma barraca de madeira na antiga Estrada Rio-São Paulo e afirmava que os peixes não ficavam mais do que 24h no gelo do isopor. Vendia tudo e rápido. Com a crise hídrica, os peixes também foram contaminados e os prejuízos começaram a ficar evidentes. Faturava por semana entre R$2.000 e R$2.500, abarrotando quatro caixas de 25kg com os pescados.
“Eu tinha uma saúde perfeita, apesar do esforço físico que fazia. Hoje, tem três anos que trabalho com carteira assinada, como pedreiro. Eu me sinto oprimido, tenho problemas de saúde mental por causa da pressão, da autoestima baixa. Mas é o que tenho para sobreviver.” — Vitor Ambrozioni
Vitor e Ademário Jordão Pereira compunham o grupo de 55 pescadores cadastrados na Associação Pesguadú. Basicamente todos tiveram que escolher entre três destinos: mudar de cidade, mudar de profissão ou conciliar o que restou para pescar nos rios e lagoas da região com bicos eventuais e sofrer com a falta de estabilidade financeira. Obrigado a mudar de ofício, Ademário, morador há pelo menos 30 anos da Lagoinha, agora ex-pescador, virou comerciante. Há seis anos, ele montou um pequeno restaurante à beira do Pantanal Iguaçuano.
O comerciante afirma que, em 2016, os níveis de poluentes representavam um risco bem menor de intoxicação. Ademário diz que, naquela época, uma hora de pescado era tempo suficiente para lucrar durante uma semana, o que lhe permitiu fazer uma reserva financeira e mudar de vida quando o cenário se tornou mais escasso. Embora ainda trabalhe com pescados na hora de servir as refeições, toda a carga de tilápias é encomendada em lugares distantes dali, como a Lagoa de Marapendi, na Barra da Tijuca, e Maricá, cidade localizada há duas horas e meia de carro de seu estabelecimento. O custo de gasolina em uma viagem de ida e volta da Lagoinha a Maricá é de R$200.
“Não deixa de ser uma ironia. O mesmo peixe que tirei daqui durante anos, utilizando a minha rede de pescador, agora tenho que buscar do outro lado do estado e ainda pagando mais caro.” — Ademário Jordão Pereira
O caso mais delicado dentre os pescadores que insistem em viver do pouco que os lagos, lagoas e rios da APA do Guandu ainda têm a oferecer é o de Ivo Manoel do Carmo, 61 anos. Com problemas de saúde nas articulações e o mais economicamente vulnerável entre os três entrevistados, Ivo faz capina, retira entulho de obra, pinta, levanta parede (e ainda faz o reboco), tudo para garantir a sobrevivência. E ainda pesca umas tilápias minúsculas e contaminadas pela água barrenta.
“Eu tirava uns 800 conto por semana. Hoje em dia, eu consigo uns 100 no máximo, quando ganho. Depois que eles ‘limparam’ a lagoa, tá muito difícil.”
Geosmina e os Riscos para a Saúde
O “eles limparam”, expressão utilizada pelo ex-pescador, é um eufemismo para uma manobra controversa com vistas a gerenciar a crise provocada pela geosmina. Em 15 de janeiro de 2020, o então presidente da CEDAE, Hélio Cabral Moreira, enviou um ofício ao presidente do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), Carlos Henrique Vaz, pedindo autorização para a aplicação no Rio Guandu e em seus outros três afluentes (rios Queimados, Ipiranga e Poços) de um produto chamado Phoslock, uma espécie de argila quimicamente modificada com elevada quantidade de flúor, capaz de limpar sedimentos e outros elementos poluidores presentes na água. Seriam jogados 260 toneladas desse produto ao custo de quase R$6 milhões. A notícia foi dada em primeira mão pelo blog do jornalista Ruben Berta.
A geosmina não apresenta toxicidade, mas é um indicador da qualidade da água coletada, isso porque as cianobactérias (algas azuis) têm seu crescimento favorecido pelo aumento da concentração de matéria orgânica devido à poluição por dejetos domésticos (esgoto), fertilizantes agrícolas e efluentes industriais, despejados diretamente em rios e lagos, bem como esgoto doméstico. O Phoslock no Brasil é produzido pela empresa Hydroscience Consultoria Ambiental, do Rio Grande do Sul, e a ideia era utilizá-lo para reverter a poluição.
No entanto, pesquisas têm demonstrado o potencial danoso do produto para o meio ambiente. Um artigo publicado pela Revista Brasileira de Recursos Hídricos, intitulado “Aplicação de Phoslock para Remoção de Fósforo e Controle de Cianobactérias Tóxicas“, por pesquisadores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), evidencia e analisa possíveis danos ambientais e para a saúde humana decorrentes do uso de Phoslock em lagos e rios. É o que confirma o relato dos moradores, testemunhas do assassinato da bacia hidrográfica mais importante do Rio de Janeiro, que relatam que, depois do uso do Phoslock, houve uma quase extinção das espécies de peixe na Lagoinha do Guandu e nas cidades próximas.
Criada em março de 2007 através do Decreto Estadual nº 40.670 e englobando as cidades de Engenheiro Paulo de Frontin, Miguel Pereira, Nova Iguaçu, Paracambi, Piraí, Seropédica e Vassouras, a Área de Proteção Ambiental do Rio Guandu tenta sobreviver a uma série de atentados contra a sua integridade ambiental, mesmo depois da crise da geosmina. Atrocidades cometidas pelo próprio Estado, ao não garantir o direito ao saneamento básico e à água limpa e de qualidade, e por empresas do Distrito Industrial de Queimados que poluem os mananciais de forma indiscriminada.
Em 2022, o Ministério Público Federal assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a empresa Duratex S.A (DECA), fabricante de material sanitário, ré em uma Ação Civil Pública após serem constatadas infrações ambientais no local. De acordo com o documento, homologado pelo Juízo na 2ª Vara Cível de Queimados, a empresa se comprometeu a adotar uma série de adequações, melhorias e modernizações, além de pagar R$560.000, a título de compensação, ao Fundo Estadual de Conservação Ambiental (FECAM).
O último grande desastre na Área de Proteção Ambiental do Guandu envolvendo uma empresa do Distrito Industrial de Queimados foi em agosto de 2023. A Burn Indústria e Comércio Ltda, foi multada por despejo de surfactante, composto presente em detergentes, no Rio Queimados, o que provocou a paralisação da Estação de Tratamento de Água do Guandu por mais de 13 horas. A Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) chegou a pedir a interdição das atividades da Burn “pela prática do crime de poluição hídrica”.
Sobre o autor: Fabio Leon é jornalista, ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada.