Projeto Mirante: Após Chacina do Jacarezinho e Tantas Outras, Novas Metodologias de Investigação Serão Aplicadas em Casos de Violência Policial em Favelas

Registro do ato um dia após a chacina do Jacarezinho, maio de 2021. Foto: Ramon Vellasco
Registro do ato um dia após a chacina do Jacarezinho, maio de 2021. Foto: Ramon Vellasco

Na virada de 2023 para 2024, enquanto a maior parte do Rio de Janeiro celebrava com alegria a maior festa de ano novo do mundo, a favela do Jacarezinho, na Zona Norte, vivenciava uma realidade cruel: tiroteios e violações de direitos que revelam a disparidade gritante que escancara o abismo entre diferentes realidades na nossa cidade. Diante disso, a Defensoria Pública do Rio e o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de Niterói e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, lançaram o Projeto Mirante, com o objetivo de investigar casos de violência policial em favelas, que recorrentemente não são solucionados pela Polícia Civil do Estado do Rio (PCERJ).

Entre Tiros e Fogos de Artifício

Após um mês de operações policiais realizadas na favela do Jacarezinho, a reportagem do RioOnWatch conversou com uma moradora da região, que relatou um início de ano marcado por invasões e tiroteios. Reviver momentos de dor e violência durante uma entrevista pode re-traumatizar as vítimas. Por isso, muitas pessoas preferem não prestar depoimentos. No entanto, a moradora Maria*, 52, esteve disposta a falar. Ela não quis revelar seu nome verdadeiro e preferiu que a conversa fosse realizada por telefone, para preservar sua identidade, como uma medida de segurança. Durante quase uma hora ao telefone, a voz da mãe vítima do Estado estava embargada e cansada.

“Nesse início de ano, os moradores mais uma vez viveram a violência de uma operação policial e casos de bala perdida. Uma senhora quase perdeu a perna quando estava chegando do trabalho, além de outras pessoas que foram baleadas e não tivemos mais nenhuma notícia delas.” — Maria*

Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Fogo Cruzado, em janeiro de 2024 foram contabilizados vinte tiroteios só no Jacarezinho, com duas pessoas mortas e sete feridas. O Instituto também registrou as operações: em Brás de Pina, também na Zona Norte, com nove tiroteios, dois mortos e um ferido; Praça Seca, na Zona Oeste, com sete tiroteios e três mortos; Gardênia Azul, na Zona Oeste, com seis tiroteios, quatro mortos e um ferido; e Éden, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, com seis tiroteios e uma pessoa ferida.

“É desesperador! O que deixa a gente revoltado é o total abandono. O que aconteceu em janeiro, o que aconteceu em 2021… É como se nada tivesse acontecido, a gente pedia ajuda todo dia, de manhã até de noite, enquanto as pessoas tinham que passar por essa violência do Estado novamente.” — Maria*

Caveirão no Jacarezinho.
Caveirão no Jacarezinho

Há três anos, a favela do Jacarezinho viveu um dos momentos mais difíceis de sua história, em meio à pandemia do coronavírus: uma operação policial que se tornou a maior chacina da história do Rio de Janeiro. 28 pessoas foram mortas, 27 moradores e um Policial Militar. Maria* nunca conseguirá esquecer o dia 6 de maio de 2021. Tem em sua memória a dor de perder seu filho, assassinado por policiais durante a chacina.

“Na realidade, é duro relembrar, mas é uma questão que não tem como não falar. É uma coisa que me impulsiona a lutar. Que é dar dignidade e buscar justiça pelo meu filho e aos outros 26 jovens mortos. É deixar claro que, quando um menino ou uma menina são assassinados pela polícia, não podemos normalizar e nem permitir que o poder público deixe as nossas vidas de lado.” — Maria*

Segundo dados do Fogo Cruzado, 2023 foi o pior ano para os mais jovens. Ao menos 25 crianças foram baleadas na região metropolitana do Rio de Janeiro, se igualando ao ano de 2018, ano da intervenção federal, quando a mesma quantidade de crianças havia sido baleada no Grande Rio. Apesar disso, 2023 foi o ano mais letal para as crianças cariocas da série histórica. Dos 25 pequenos baleados, em 2018, quatro morreram, enquanto, em 2023, dez perderam a vida.

‘A Gente Precisa Responsabilizar o Estado ou Ele Continuará Nos Matando’

Maria* conta que, no caso da Chacina do Jacarezinho, “o único que segue em investigação é o de Omar Pereira”. Os outros assassinatos tiveram seus inquéritos arquivados, supostamente por falta de provas.

“Quando eu cheguei no Ministério Público, em fevereiro, quando eles arquivaram o processo do meu filho, eles alegaram que as marcas [de bala que ficaram no móvel em que ele estava sentado quando foi baleado e assassinado] poderiam ser de outro tiroteio… Na época, eles [os promotores] disseram que eu precisaria ter o móvel se eu quisesse levar o processo adiante… mas a polícia quebrou o móvel e jogou no rio [para não ter provas]… Então, para eu ter algum argumento e levar o processo para frente, eu tinha que ter gravado a execução do meu filho? Para a Justiça, essa era a única forma de entender a morte do meu filho!” — Maria*

Outra opção dada a Maria* para evitar o arquivamento do caso seria conseguir testemunhas do crime que vitimou seu filho. No entanto, segundo ela, é complicado conseguir convencer algum morador a testemunhar, já que no território está implementado o Programa Cidade Integrada, um projeto de ocupação permanente da favela pela polícia. “Como falar alguma coisa, quando os mesmos policiais que participaram da chacina [estão trabalhando aqui e]… podem invadir nossas casas e fazer o que quiser com a gente? É como uma tática de silenciamento”.

De acordo com o Fogo Cruzado, após a ocupação da polícia em 2022 pelo projeto Cidade Integrada, o número de tiroteios cresceu 79%. Os dados apontam que, entre janeiro de 2022 e 2024, foram 68 tiroteios, com 13 pessoas mortas e 19 feridas. Antes do Cidade Integrada, durante o mesmo período de dois anos, entre 2020 e 2022, haviam sido 38 tiroteios na favela, com 28 mortos e 11 feridos.

Exatamente para contornar problemas como estes, responsabilizar o Estado pelas investigações mal feitas e acobertamento, e para prevenir o arquivamento por falta de provas, comuns em casos de violência policial, a Defensoria Pública do Rio e o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF) apresentaram novas metodologias de investigação voltadas para casos de violência de Estado.

Quarto da criança de 8 anos que assistiu à execução de uma das vítimas mortas. Foto: Pedro Padro
Quarto da criança de oito anos que assistiu à execução de uma das vítimas mortas. Foto: Pedro Padro

Projeto Mirante: Metodologias e Tecnologias Inovadores para Investigar Casos de Violência Estatal

No dia 16 de janeiro de 2024, considerado um dos piores dias das operações de início de ano no Jacarezinho, o Projeto Mirante foi apresentado na Defensoria Pública do Rio, subsidiado pela Secretaria de Acesso à Justiça e Segurança Pública (SAJU/MJSP). O trabalho entre as instituições é uma iniciativa inédita, aplicando e desenvolvendo metodologias e tecnologias inovadoras para investigação independente para casos de violência de intervenção policial. Além das instituições acima, outros grupos de pesquisa atuam no projeto, com o intuito de fortalecer e ampliar políticas de segurança pública e direitos humanos.

Para Daniel Hirata, coordenador e pesquisador do Geni/UFF, o projeto será importante para contrapor provas e versões criminais sobre a atuação da polícia. No Brasil, segundo o pesquisador, somente as autoridades policiais podem realizar os processos de laudos sobre intervenção policial.

“Em outros países há atuação de órgãos independentes nas perícias, mas aqui precisamos aguardar primeiro a polícia. É um gargalo na nossa situação, porque as próprias instituições que cometem violações são as que fazem a instrução dos inquéritos e os próprios laudos. Não me parece saudável para ninguém, nem para as famílias das vítimas, nem para as polícias, essa falta de independência.” — Daniel Hirata, coordenador e pesquisador do Geni/UFF

Durante a apresentação do Projeto Mirante, o grupo de pesquisadores explicou sobre a utilização de imagens (fotos e vídeos) produzidas por moradores e familiares vítimas de violência policial. Demonstraram que tornam-se parte do levantamento de evidências para a sistematização e a análise de dados e documentos sobres os casos de violação e violência policial, e que reforçam as investigações, servindo de contraponto sobre as versões criminais da polícia e também de suporte técnico a membros do Núcleo de Direitos Humanos da DPRJ (Nudedh), promovendo a defesa de vítimas de violência institucional.

A principal proposta é atuar na revisão e elaboração de laudos criminais, como laudos de balística, necropsia e laudo local (reconstituição), utilizando o conhecimento de antropologia, arquitetura, sociologia, comunicação, psicologia, ciência de dados, comunicação e ciências forenses.

Um dos primeiros casos investigados no âmbito do Projeto Mirante é o de Omar Pereira da Silva, uma das 27 vítimas da Chacina do Jacarezinho. Em parceria com a Defensoria Pública e o Geni/UFF, os peritos Cássio Thyrone Almeida de Rosa e Flávia Palladino apresentaram um parecer técnico e um vídeo de reconstituição 3D do crime contra o jovem morador do Jacarezinho, assassinado por um tiro de fuzil no tórax, disparado à queima roupa pelo policial da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Rio de Janeiro (CORE), Douglas de Lucena Peixoto Siqueira.

Inicialmente, o projeto analisará 30 casos de violência estatal, dentre eles: a Chacina do Jacarezinho; o das primas Emily e Rebecca, mortas em 2020, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense; o do zelador Guilherme Lucas, morador do Morro da Coroa, assassinado na saída do baile funk da favela do Santo Amaro, no Catete, Zona Sul do Rio de Janeiro; e o do estudante Lucas Albino, morto em 2019, em Costa Barros, na Zona Norte. O Projeto Mirante também vai analisar o caso que ficou conhecido como Massacre de Paraisópolis, ocorrido em São Paulo, em 2019.

*O nome da entrevistada é fictício, para preservar sua privacidade.

Sobre o autor: Ramon Vellasco é fotojornalista e repórter freelance, cria da Vila da Penha. Atua em temas sobre direitos humanos, cultura, educação, diversidade e grupos sociais em situação de risco. Trabalha a partir de territórios periféricos, favelados e suburbanos.


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