Expansão das Milícias: Homicídios na Zona Oeste Aumentam 44% e Põem em Evidência Novo Mapa do Crime no Rio de Janeiro

Carcaças de ônibus queimados entre as comunidades Antares e Cesarão, na Zona Oeste do Rio de Janeiro; cerca de 35 ônibus foram incendiados na zona oeste do Rio após morte de um dos líderes da milícia que atua na cidade. Foto Reprodução Redes Sociais
Carcaças de ônibus queimados entre as comunidades Antares e Cesarão, na Zona Oeste do Rio de Janeiro; cerca de 35 ônibus foram incendiados na Zona Oeste após morte de um dos líderes da milícia que atua na cidade. Foto: Reprodução Redes Sociais

A presença de policiais atuando à margem da lei e formando grupos armados no Rio de Janeiro não é recente e já tem registros, pelo menos, desde a década de 1950. Grupos de extermínio, com a participação de policiais, bombeiros e guardas municipais, ativos ou aposentados, operam há décadas na Baixada Fluminense e em outras regiões do Grande Rio. Esses grupos se apresentavam como protetores da comunidade, como garantidores privados da segurança pública. A contrapartida seria a cobrança de taxas de segurança, inicialmente opcional, a ser paga pelos moradores dos territórios “protegidos”. Com o passar do tempo, a taxa da milícia se tornou obrigatória, cobrada com ameaças, violência e morte contra quem se recusa a pagar. Além disso, as milícias expandiram suas atividades para contemplar serviços públicos e negócios ilegais, tais como: transporte alternativo, feito por vans e kombis; serviço de internet e televisão a cabo, mais conhecida como a gatonet; monopólio do fornecimento de gás de cozinha; e incorporação imobiliária. É notória que a atuação e rápida expansão desses grupos paramilitares contribuiu para o aumento da violência e da corrupção no Rio de Janeiro.

Número de unidades legalizadas (2009-2020) por Região administrativa e milícias na cidade do Rio de Janeiro. Mapa: Geni-UFF
Número de unidades legalizadas (2009-2020) por Região Administrativa e milícias na cidade do Rio de Janeiro. Mapa: Geni/UFF

O Surgimento da Milícia

Nesta matéria, compartilhamos os desafios e caminhos possíveis para lidar com o crescimento das milícias no Rio de Janeiro, seguindo Silvia Ramos, socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).

Silvia explica que o surgimento da milícia se deu na década de 1950, com grupos de extermínio. Nos anos 2000, passou a ter uma nova cara. Ainda integrada por agentes ou ex-agentes da lei, tinha o suposto objetivo de “promover” proteção. Era criada uma contranarrativa, lastreada na presença de homens armados e ameaça a infratores da lei da milícia, de que nos espaços dominados não haveria circulação de traficantes ou venda de drogas. Seriam, portanto, favelas e bairros populares menos perigosos, sem tiroteios e confrontos com a polícia. Em um primeiro momento, agentes do Estado mancomunados em milícias passavam de porta em porta cobrando taxas de segurança voluntárias dos moradores. No entanto, “as taxas passaram a ser obrigatórias e quem não pagava era ameaçado… e quem não respeitava as ameaças era morto”, pontua Silvia. 

Com isso, surgiu uma nova roupagem à organização criminosa. As milícias, segundo a especialista, passaram a ter a participação de políticos, como Natalino e Jerominho, ligados à exploração de transportes alternativos na Zona Oeste. Silvia salienta que muitos deputados não eram milicianos, mas sim eram eleitos em áreas dominadas pela milícia. 

Quem são os membros da milícia da família Braga? Fonte: Folha de São Paulo
Quem são os membros da milícia da família Braga? Fonte: Folha de São Paulo

“A partir de 2014, a fase de milícia ser só de policial acabou e os milicianos tomavam áreas que tinham sido do tráfico, sendo uma das primeiras ali em Três Pontes, na Zona Oeste. Entrou primeiro o Carlinhos Três Pontes e depois os irmãos dele, o Ecko, e o Zinho [chefe da maior milícia do Rio].” — Silvia Ramos

Segundo a socióloga, houve uma fragmentação que resultou na disputa entre a milícia e outros poderes, como o Comando Vermelho (CV), provocando alianças com a facção rival: o Terceiro Comando Puro (TCP). Assim sendo, áreas inteiras, sobretudo na Zona Oeste e Baixada Fluminense, estão expostas a conflitos armados entre milícias e outras facções criminosas.

“Essas disputas geram alta letalidade. As taxas de homicídios só [no último] ano, de janeiro a setembro de 2023, comparado com janeiro a setembro de 2022, nas duas áreas da Zona Oeste, tiveram aumento de mortes intencionais, violentas, de mais de 150%, mostrando que ali já havia dinâmicas.” — Silvia Ramos

Outro complicador foi a fragmentação da milícia na Zona Oeste, com impactos devastadores na vida da população. Quadrilhas rivais de milícia passaram a disputar territórios e poder. Essa disputa se traduz em tiroteios frequentes, atos de violência e execuções sumárias. Novas alianças e inimigos, criando um cenário complexo de alianças e inimizades entre diferentes grupos, tornam a guerra entre facções ainda mais imprevisível e letal. Isso também resulta numa corrida armamentista, com o crescimento do calibre e da letalidade dos armamentos empregados pelas quadrilhas, em uma busca constante por eliminar rivais. Intensificando-se o poder de fogo, aumenta também a capacidade de causar dano dessas armas à sociedade.

Além disso, a fragmentação da milícia, exatamente como do tráfico tradicional, causa uma insegurança constante na população que vive em alerta e com medo, em meio a tiroteios frequentes, e tentativas de invasão de território, que não têm hora para acontecer. Frequentemente, é observada a perda de vidas, com grandes repercussões na saúde mental dos moradores.

A CPI das Milícias

Parte do poder público já atuou de maneira combativa contra a milícia. Em 2008, o então Deputado Estadual Marcelo Freixo presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias (CPI das Milícias), que teve como resultado a prisão de 246 membros da organização criminosa.

A implementação da CPI se deu após jornalistas de O Dia na Zona Oeste serem torturados, após descobertos fazendo uma reportagem sobre a milícia.

“Foi surpreendente a quantidade de provas e de evidências de participação de policiais, ex-policiais e políticos em grupos de milícia. Muitos foram presos, políticos perderam mandatos. Foi impressionante.” — Silvia Ramos

Silvia salienta que é preciso repensar a maneira como é feito o combate às organizações criminosas.

“Você tem que desorganizar e desestruturar o esquema, o processo, não cortar as cabeças, e muito menos cortar as pontas. [Se fizer] essa guerra no varejo e matar um monte de gente em operações impressionantes… ali nas pontas, no varejo… já retorna com outras pessoas… Mesmo cortando as cabeças você não interrompe esse fluxo.” — Silvia Ramos

A socióloga defende que uma nova CPI das Milícias pode trazer novos resultados no combate ao grupo organizado. Ela avalia que é preciso que a polícia trabalhe com inteligência, promovendo investigações que desmantelem as estruturas da milícia.

“Claro que a gente se pergunta como isso será feito numa Assembleia Legislativa, onde milicianos e as milícias têm hoje um poder muito maior do que tinham em 2008. Será que isso vai para frente? Mas, sim, seria necessário fazer uma espécie de scan de cabo a rabo, passar ali, entender tudo que está acontecendo, tornar isso público e fazer essas prisões e, principalmente, seguir o caminho do dinheiro, desarticular os arranjos… Não adianta sair matando gente nas entradas das favelas ou dentro, entrando com um caveirão e com helicóptero se o esquema continua o mesmo. Inclusive, o esquema de corrupção policial, muitas vezes.” — Silvia Ramos

A Relação da Milícia com o Comando Vermelho

Nas disputas por território que trouxeram conflitos pelo Rio de Janeiro, a primeira aproximação da milícia com facções do tráfico foi com o Terceiro Comando Puro. Ambas se uniram para tomar territórios e mercados do Comando Vermelho, o maior grupo traficante do estado do Rio de Janeiro. No entanto, como Silvia remarca, este é um fenômeno novo e muito complexo. Logo, em algumas localidades, observaram-se alianças formadas entre milícias e o CV. Ela ressalta que há uma articulação de traficantes passando a fazer parte das milícias e milicianos integrando o tráfico de drogas.

“O que a gente tem hoje é um cenário muito complexo de ‘milização’ das facções de drogas e de ‘traficanização’ das milícias. Começamos a ver uma contaminação de práticas, normas.” — Silvia Ramos

A socióloga explica que, na prática, a milícia passou a adotar esquemas típicos do tráfico, como ter gerente e vender drogas. O tráfico, por sua vez, começou a realizar a exploração da venda de serviços, monopolizando e obrigando moradores a comprarem alguns produtos exclusivamente do tráfico. De acordo com o Mapa dos Grupos Armados, um estudo realizado pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), a milícia sofreu uma redução de 19,3% do domínio de território no Rio de Janeiro, seguido pelo TCP, com 13%, e a facção Amigo dos Amigos (ADA), registrando diminuição de 16,7%. Já o CV avançou e registrou aumento de 8,4% de domínio de território entre 2022 e 2023. As milícias deram lugar ao CV, que concentrou 51,9% dos territórios controlados por grupos armados na região metropolitana do Rio em 2023.

Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro. Mapa: Fogo Cruzado
Mapa histórico dos grupos armados do Rio de Janeiro. Mapa: Instituto Fogo Cruzado
Miliciano Zinho preso
Zinho preso. Foto: Reprodução

O miliciano Luiz Antonio da Silva Braga, conhecido como Zinho, se entregou à polícia na véspera de Natal. Ele é o principal chefe da milícia que atua na Zona Oeste e o mais procurado do estado. Antônio Carlos dos Santos Pinto, o Pit, de 44 anos, braço direito de Zinho, foi morto durante uma operação policial na comunidade de Três Pontes. Perguntada se acredita no desmantelamento da milícia, Silvia Ramos afirma que é possível, baseando ações de inteligência da polícia, com investigações contundentes.

Número de Homicídios na Zona Oeste do Rio Cresce em 2023

Em 2023, a Zona Oeste do Rio de Janeiro foi palco de uma intensa disputa entre o Comando Vermelho e as milícias, resultando em um aumento expressivo da violência. Os ataques a ônibus em outubro evidenciaram o poder da milícia na Zona Oeste, que impõe taxas de segurança e controla a venda de gás, subjugando a população local. Os números traduzem a triste realidade: de janeiro a dezembro de 2023, a Zona Oeste e parte da Zona Norte registraram 733 homicídios, um aumento de 44% em relação ao mesmo período de 2022. Em setembro, o número de mortes chegou a 75, mais do que o dobro do registrado no mesmo mês do ano anterior.

Em 2023, o Rio de Janeiro ficou marcado por diversos conflitos gerados pela milícia, colocando em xeque as ações de segurança pública do Governo do Estado. Após os ataques a ônibus, que ganharam repercussão midiática, houve tentativas do governo para conter a milícia e o tráfico de drogas na região metropolitana. No entanto, Silvia Ramos avalia a iniciativa como “pouco consistente”.


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