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A presença de policiais atuando à margem da lei e formando grupos armados no Rio de Janeiro não é recente e já tem registros, pelo menos, desde a década de 1950. Grupos de extermínio, com a participação de policiais, bombeiros e guardas municipais, ativos ou aposentados, operam há décadas na Baixada Fluminense e em outras regiões do Grande Rio. Esses grupos se apresentavam como protetores da comunidade, como garantidores privados da segurança pública. A contrapartida seria a cobrança de taxas de segurança, inicialmente opcional, a ser paga pelos moradores dos territórios “protegidos”. Com o passar do tempo, a taxa da milícia se tornou obrigatória, cobrada com ameaças, violência e morte contra quem se recusa a pagar. Além disso, as milícias expandiram suas atividades para contemplar serviços públicos e negócios ilegais, tais como: transporte alternativo, feito por vans e kombis; serviço de internet e televisão a cabo, mais conhecida como a gatonet; monopólio do fornecimento de gás de cozinha; e incorporação imobiliária. É notória que a atuação e rápida expansão desses grupos paramilitares contribuiu para o aumento da violência e da corrupção no Rio de Janeiro.
O Surgimento da Milícia
Nesta matéria, compartilhamos os desafios e caminhos possíveis para lidar com o crescimento das milícias no Rio de Janeiro, seguindo Silvia Ramos, socióloga e coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
Silvia explica que o surgimento da milícia se deu na década de 1950, com grupos de extermínio. Nos anos 2000, passou a ter uma nova cara. Ainda integrada por agentes ou ex-agentes da lei, tinha o suposto objetivo de “promover” proteção. Era criada uma contranarrativa, lastreada na presença de homens armados e ameaça a infratores da lei da milícia, de que nos espaços dominados não haveria circulação de traficantes ou venda de drogas. Seriam, portanto, favelas e bairros populares menos perigosos, sem tiroteios e confrontos com a polícia. Em um primeiro momento, agentes do Estado mancomunados em milícias passavam de porta em porta cobrando taxas de segurança voluntárias dos moradores. No entanto, “as taxas passaram a ser obrigatórias e quem não pagava era ameaçado… e quem não respeitava as ameaças era morto”, pontua Silvia.
Com isso, surgiu uma nova roupagem à organização criminosa. As milícias, segundo a especialista, passaram a ter a participação de políticos, como Natalino e Jerominho, ligados à exploração de transportes alternativos na Zona Oeste. Silvia salienta que muitos deputados não eram milicianos, mas sim eram eleitos em áreas dominadas pela milícia.
“A partir de 2014, a fase de milícia ser só de policial acabou e os milicianos tomavam áreas que tinham sido do tráfico, sendo uma das primeiras ali em Três Pontes, na Zona Oeste. Entrou primeiro o Carlinhos Três Pontes e depois os irmãos dele, o Ecko, e o Zinho [chefe da maior milícia do Rio].” — Silvia Ramos
Segundo a socióloga, houve uma fragmentação que resultou na disputa entre a milícia e outros poderes, como o Comando Vermelho (CV), provocando alianças com a facção rival: o Terceiro Comando Puro (TCP). Assim sendo, áreas inteiras, sobretudo na Zona Oeste e Baixada Fluminense, estão expostas a conflitos armados entre milícias e outras facções criminosas.
“Essas disputas geram alta letalidade. As taxas de homicídios só [no último] ano, de janeiro a setembro de 2023, comparado com janeiro a setembro de 2022, nas duas áreas da Zona Oeste, tiveram aumento de mortes intencionais, violentas, de mais de 150%, mostrando que ali já havia dinâmicas.” — Silvia Ramos
Outro complicador foi a fragmentação da milícia na Zona Oeste, com impactos devastadores na vida da população. Quadrilhas rivais de milícia passaram a disputar territórios e poder. Essa disputa se traduz em tiroteios frequentes, atos de violência e execuções sumárias. Novas alianças e inimigos, criando um cenário complexo de alianças e inimizades entre diferentes grupos, tornam a guerra entre facções ainda mais imprevisível e letal. Isso também resulta numa corrida armamentista, com o crescimento do calibre e da letalidade dos armamentos empregados pelas quadrilhas, em uma busca constante por eliminar rivais. Intensificando-se o poder de fogo, aumenta também a capacidade de causar dano dessas armas à sociedade.
Além disso, a fragmentação da milícia, exatamente como do tráfico tradicional, causa uma insegurança constante na população que vive em alerta e com medo, em meio a tiroteios frequentes, e tentativas de invasão de território, que não têm hora para acontecer. Frequentemente, é observada a perda de vidas, com grandes repercussões na saúde mental dos moradores.
A CPI das Milícias
Parte do poder público já atuou de maneira combativa contra a milícia. Em 2008, o então Deputado Estadual Marcelo Freixo presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias (CPI das Milícias), que teve como resultado a prisão de 246 membros da organização criminosa.
A implementação da CPI se deu após jornalistas de O Dia na Zona Oeste serem torturados, após descobertos fazendo uma reportagem sobre a milícia.
“Foi surpreendente a quantidade de provas e de evidências de participação de policiais, ex-policiais e políticos em grupos de milícia. Muitos foram presos, políticos perderam mandatos. Foi impressionante.” — Silvia Ramos
Silvia salienta que é preciso repensar a maneira como é feito o combate às organizações criminosas.
“Você tem que desorganizar e desestruturar o esquema, o processo, não cortar as cabeças, e muito menos cortar as pontas. [Se fizer] essa guerra no varejo e matar um monte de gente em operações impressionantes… ali nas pontas, no varejo… já retorna com outras pessoas… Mesmo cortando as cabeças você não interrompe esse fluxo.” — Silvia Ramos
A socióloga defende que uma nova CPI das Milícias pode trazer novos resultados no combate ao grupo organizado. Ela avalia que é preciso que a polícia trabalhe com inteligência, promovendo investigações que desmantelem as estruturas da milícia.
“Claro que a gente se pergunta como isso será feito numa Assembleia Legislativa, onde milicianos e as milícias têm hoje um poder muito maior do que tinham em 2008. Será que isso vai para frente? Mas, sim, seria necessário fazer uma espécie de scan de cabo a rabo, passar ali, entender tudo que está acontecendo, tornar isso público e fazer essas prisões e, principalmente, seguir o caminho do dinheiro, desarticular os arranjos… Não adianta sair matando gente nas entradas das favelas ou dentro, entrando com um caveirão e com helicóptero se o esquema continua o mesmo. Inclusive, o esquema de corrupção policial, muitas vezes.” — Silvia Ramos
A Relação da Milícia com o Comando Vermelho
Nas disputas por território que trouxeram conflitos pelo Rio de Janeiro, a primeira aproximação da milícia com facções do tráfico foi com o Terceiro Comando Puro. Ambas se uniram para tomar territórios e mercados do Comando Vermelho, o maior grupo traficante do estado do Rio de Janeiro. No entanto, como Silvia remarca, este é um fenômeno novo e muito complexo. Logo, em algumas localidades, observaram-se alianças formadas entre milícias e o CV. Ela ressalta que há uma articulação de traficantes passando a fazer parte das milícias e milicianos integrando o tráfico de drogas.
“O que a gente tem hoje é um cenário muito complexo de ‘milização’ das facções de drogas e de ‘traficanização’ das milícias. Começamos a ver uma contaminação de práticas, normas.” — Silvia Ramos
A socióloga explica que, na prática, a milícia passou a adotar esquemas típicos do tráfico, como ter gerente e vender drogas. O tráfico, por sua vez, começou a realizar a exploração da venda de serviços, monopolizando e obrigando moradores a comprarem alguns produtos exclusivamente do tráfico. De acordo com o Mapa dos Grupos Armados, um estudo realizado pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), a milícia sofreu uma redução de 19,3% do domínio de território no Rio de Janeiro, seguido pelo TCP, com 13%, e a facção Amigo dos Amigos (ADA), registrando diminuição de 16,7%. Já o CV avançou e registrou aumento de 8,4% de domínio de território entre 2022 e 2023. As milícias deram lugar ao CV, que concentrou 51,9% dos territórios controlados por grupos armados na região metropolitana do Rio em 2023.
O miliciano Luiz Antonio da Silva Braga, conhecido como Zinho, se entregou à polícia na véspera de Natal. Ele é o principal chefe da milícia que atua na Zona Oeste e o mais procurado do estado. Antônio Carlos dos Santos Pinto, o Pit, de 44 anos, braço direito de Zinho, foi morto durante uma operação policial na comunidade de Três Pontes. Perguntada se acredita no desmantelamento da milícia, Silvia Ramos afirma que é possível, baseando ações de inteligência da polícia, com investigações contundentes.
Número de Homicídios na Zona Oeste do Rio Cresce em 2023
Em 2023, a Zona Oeste do Rio de Janeiro foi palco de uma intensa disputa entre o Comando Vermelho e as milícias, resultando em um aumento expressivo da violência. Os ataques a ônibus em outubro evidenciaram o poder da milícia na Zona Oeste, que impõe taxas de segurança e controla a venda de gás, subjugando a população local. Os números traduzem a triste realidade: de janeiro a dezembro de 2023, a Zona Oeste e parte da Zona Norte registraram 733 homicídios, um aumento de 44% em relação ao mesmo período de 2022. Em setembro, o número de mortes chegou a 75, mais do que o dobro do registrado no mesmo mês do ano anterior.
Em 2023, o Rio de Janeiro ficou marcado por diversos conflitos gerados pela milícia, colocando em xeque as ações de segurança pública do Governo do Estado. Após os ataques a ônibus, que ganharam repercussão midiática, houve tentativas do governo para conter a milícia e o tráfico de drogas na região metropolitana. No entanto, Silvia Ramos avalia a iniciativa como “pouco consistente”.