Violência Adoece: Relatos de Uma Mãe Corroboram Pesquisas Provando Que Violência Policial e Negação do Direito ao Luto de Familiares de Vítimas do Estado Geram Doenças Físicas e Mentais

Os familiares sofrem de maneira desproporcional com problemas de saúde por causa das inúmeras violações perpetradas pelo Estado. Foto: Ramon Vellasco
Familiares de vítimas sofrem de maneira desproporcional com problemas de saúde por causa das violações perpetradas pelo Estado. Foto: Ramon Vellasco

“Tem dias que a gente só quer chorar, não quer levantar da cama, não quer falar com ninguém. Porque a gente não tem mais o filho para abraçar.” — Gilsara Mendes, mãe de Thiago

A história de Gilsara*, moradora do Jacarezinho há 24 anos e mãe de três filhos, é um retrato pungente da realidade imposta pela violência armada nas favelas. Ela perdeu seu filho mais velho, Thiago*, assassinado pela polícia durante a Chacina do Jacarezinho em 6 de maio de 2021.

Para além da dor da perda, Gilsara enfrenta os desafios de criar seus outros dois filhos, Jorge* e Saulo*, em um ambiente marcado pela insegurança e pela constante ameaça de novos conflitos. A saúde mental de toda a família está fragilizada e o acesso a serviços de saúde pública de qualidade é difícil.

A Chacina do Jacarezinho, que resultou na morte de 28 pessoas, incluindo Thiago, evidenciou a falha do Estado em garantir a segurança pública e o direito à vida de seus cidadãos. A comunidade vive sob o constante medo de novas operações policiais violentas, o que gera um clima de terror e desamparo.

No Ano Novo, a gente pensou em organizar algo. Eu ia para a casa da minha cunhada, que sempre faz alguma coisa. Ela estava fazendo um churrasco e convidou a gente para ir para lá, mas a gente não conseguiu sair de casa. Meu filho Jorge conseguiu sair mais cedo e ficou na casa de um amigo. Mas eu, meu marido e meu filho mais novo ficamos presos… Às 21h já estava tendo tiroteio e a gente não conseguiu sair.” — Gilsara Mendes

Apesar das denúncias de violações de direitos de moradores terem circulado nas redes sociais e na mídia, as operações policiais foram constantes no Jacarezinho, durante quase todo o mês de janeiro de 2024, criando uma atmosfera tensa na comunidade, sobretudo na virada de ano, com tiros e abuso de autoridade.

Para além disso, desde a morte de Thiago em 2021, o que deveriam ter sido momentos de alegria geram reflexões tristes para Gilsara:

[Thiago] amava festas, fazer reflexo [no cabelo e] sair para curtir com os amigos. Ficava com a gente até meia-noite e depois ia para os bailes da vida… Toda violência cometida pelo Estado cai sobre uma família, pois ele não se responsabiliza em cuidar da gente após as operações e as violações da polícia.”

A “política antidrogas” do Rio de Janeiro é uma política bélica falida, de insegurança pública que foca em operações policiais nas favelas ao invés de investir em mecanismos de inteligência. Quanto mais se investe em armas, mais a população sofre com a violência policial. Em 2023, uma pesquisa inédita chamada Favelas na Mira do Tiro: Impacto da Guerra às Drogas na Economia dos Territórios, lançada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), apontou que as ações policiais nas favelas causaram um prejuízo de, pelo menos, R$14 milhões por ano aos moradores dessas comunidades, sem contar com as inúmeras consequências piores, como mortes e a fragilização da vida dos que ficam, que poderiam ser evitadas. Quem mais sofre com essa equivocada política são as pessoas que não fazem parte do crime organizado. Tais acontecimentos desestabilizam a vida econômica e a saúde física e mental das famílias e dos vizinhos.

“Nem tudo pode ser resolvido com armas e polícia invadindo favelas, tratando qualquer pessoa em vulnerabilidade social como criminosa.” — Gilsara Mendes

Durante sete anos, o Instituto Fogo Cruzado realizou uma pesquisa sobre violência policial no Rio de Janeiro, apresentando dados sobre crianças e jovens vítimas das operações policiais: 601 crianças e adolescentes foram baleados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro no período de 5 de julho de 2016 e 8 de julho de 2023. Os adolescentes representam 78% das vítimas (231 mortos e 237 feridos). Entre as crianças, das 133 baleadas, 36 morreram e 97 ficaram feridas. Ao menos 63 crianças e adolescentes foram baleados quando estavam dentro de casa. Entre as vítimas, 37 foram mortas e 26 ficaram feridas dentro de residências. Em sete anos, 12 jovens foram baleados dentro de escolas, entre os atingidos, um morreu e onze ficaram feridos. Outras sete vítimas foram atingidas quando estavam indo ou voltando das unidades de ensino. As ações e operações policiais foram o principal motivo de morte entre crianças e adolescentes nos sete anos da pesquisa. São as mulheres que mais sofrem com a dor de perder seus filhos. Historicamente, são elas as responsáveis por manter a estabilidade afetiva e econômica das famílias.

Registro do ato um dia após a chacina do Jacarezinho, maio de 2021. Foto: Ramon Vellasco
Registro do ato um dia após a chacina do Jacarezinho, maio de 2021. Foto: Ramon Vellasco

Saúde em Risco: Armas de Fogo e Doenças Crônicas

Durante 2017 e 2022, o CESeC realizou uma série de pesquisas inéditas que comprovam o óbvio, sobre segurança e justiça, educação, saúde e território resultando no projeto Drogas: quanto custa proibir. Ao todo, foram entrevistados 1.500 moradores de seis regiões do Rio de Janeiro. Foram avaliadas três localidades mais afetadas por tiroteios com envolvimento de agentes do Estado: Complexo da Maré, Vidigal e Manguinhos. Lembre-se que os dados a serem citados abaixo têm cor: a população nas favelas é, em sua maioria, formada por pessoas negras já em situação de vulnerabilidade: 66,2% das casas em favelas são ocupadas por pessoas negras.

De acordo com a pesquisa, onde operações policiais são mais constantes, ao menos 51% dos entrevistados sofrem com algum transtorno físico ou mental, como hipertensão arterial, insônia prolongada, ansiedade ou depressão. Já em regiões com menos casos de conflitos armados, este indicador cai para 35,9%. Em regiões em conflito constante, o risco dos moradores desenvolverem hipertensão é de 42%, e 73% para desenvolver insônia prolongada. A depressão alcança 29,6% das pessoas entre 18 e 45 anos, em regiões com mais tiroteios, enquanto que, em regiões com menos casos, são 15,7% de moradores que sofrem desse mal.

“Eu estou com a saúde muito debilitada e fraca. Estou com diabetes, pressão alta, estou tendo muitas crises de ansiedade… A gente acaba revivendo tudo de novo e isso, muitas vezes, faz a gente ficar ainda mais cansada.” — Gilsara Mendes

Depressão é um sintoma comum em familiares da vítimas do Estado. Na foto, familiar de vítima da Chacina de Jacarezinho olha a cova de seu filho durante a exumação de restos mortais. Foto: Ramon Vellasco
Depressão é um síndrome comum em familiares de vítimas do Estado. Na foto, familiar de vítima da Chacina de Jacarezinho olha a cova de seu filho durante a exumação de restos mortais. Foto: Ramon Vellasco

Outro dado apontado pela pesquisa é que ao menos 30% dos moradores submetidos à violência armada relataram efeitos negativos imediatos, como sudorese, falta de sono, tremor e falta de ar durante episódios de tiroteio, e 43% relataram sentir o coração acelerado ao ouvir tiroteios próximos às residências.

Em 2022, foram contabilizados 445 fechamentos de unidades de saúde, segundo os registros da Secretaria Municipal de Saúde. A pesquisa do CESec mostra que em comunidades mais expostas à violência do Estado, pelo menos 59,5% das pessoas disseram que, em algum momento, elas já haviam sido fechadas por conta dos riscos de segurança e violência policial. Em favelas menos expostas, o número de unidades fechadas cai para 13%. Aproximadamente 26% dos moradores de regiões mais afetadas por conflito armado precisaram adiar a procura por um serviço de saúde. Em regiões com menos conflitos, só 6% foram afetados. Sobre os profissionais de saúde, em regiões mais conflituosas, 31,6% dos moradores dizem que deixam de trabalhar por conta de tiroteios. Em regiões com menos conflito, os números não passam de 12%.

O custo anual do fechamento das unidades de saúde representa mais de R$300.000 em gastos públicos. Há também os custos com o tratamento de pessoas adoecidas por esse quadro necropolítico. Neste cálculo, o investimento anual do Estado com o tratamento de pacientes com hipertensão arterial e depressão pode variar entre R$69.000 e R$95.000 (em valores de 2022). São muitas pessoas assassinadas, feridas e adoecidas pela violência do Estado. Muito dinheiro gasto, sem efeitos concretos.

O Impacto do Silêncio

Falecimentos oriundos de operações se estendem para além das vítimas fatais diretas. Gilsara relata a morte de pelo menos três mães e um pai que não suportaram a dor de perder seus filhos naquela fatídica ocasião. Em janeiro de 2022, um ano após a Chacina do Jacarezinho, Dona Rosangela*, mãe de outra das vítimas, sucumbiu à depressão e passou a ter crises de ansiedade, desenvolvendo outros problemas de saúde que, por fim, a levaram à morte. Em dezembro de 2022, Dona Lúcia dos Santos*, mais uma mãe enlutada, foi vítima de crises de ansiedade e depressão. Devido à falta de atendimento rápido, ela faleceu a caminho do hospital. Entre novembro e dezembro de 2023, Dona Denise Miranda*, também mãe de um jovem morto na chacina, sucumbiu à depressão e ao isolamento social, o que agravou seu estado de saúde e resultou em seu falecimento.

Mãe de vítima da Chacina do Jacarezinho segura a urna que guarda o que restou do corpo de seu filho, logo após o Dia das Mães de 2024. Foto: Ramon Vellasco
Mãe de vítima da Chacina do Jacarezinho segura a urna que guarda o que restou do corpo de seu filho, logo após o Dia das Mães de 2024. Foto: Ramon Vellasco

Em março de 2023, essa dor aguda atingiu o Sr. Jorge da Silva*, pai de uma das vítimas e marido de Dona Angela*, que também faleceu em decorrência da tragédia. Afundado em profunda depressão, ele buscava incansavelmente pelo filho, perambulando pela favela a qualquer hora do dia ou da noite. Em uma dessas buscas, durante uma operação policial, foi baleado no peito e faleceu.

“Atualmente, estou tentando voltar a fazer algumas coisas da minha rotina, para cuidar um pouco mais de mim. Dar um pouco mais de atenção para os meus filhos. Com a morte do Thiago a gente ficou bem perdido. O Jorge, por exemplo, tem 17 anos, ele foi aquele tipo de menino que acompanhou tudo na internet e brigava por tudo e por todos. Com a morte do irmão, ele não conseguiu focar nos estudos e esse ano ele repetiu pela terceira vez o primeiro ano do Ensino Médio. O Saulo, de 10 anos, tem um quadro de autismo leve. Ele sofreu muito com a perda do irmão. Após a chacina e a morte do meu filho, eu só chorava pelos cantos da casa, sem dar aos meus outros filhos a atenção necessária. Agora, eu estou buscando assistência e suporte médico e acompanhamento de psicólogo.” — Gilsara Mendes

*Os nomes nesta reportagem são fictícios, para preservar a privacidade e a segurança dos entrevistados.

Sobre o autor: Ramon Vellasco é fotojornalista e repórter freelance, cria da Vila da Penha. Atua em temas sobre direitos humanos, cultura, educação, diversidade e grupos sociais em situação de risco. Trabalha a partir de territórios periféricos, favelados e suburbanos.


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