A Prefeitura do Rio de Janeiro quer transformar a Zona do Porto em um polo tecnológico. O Prefeito Eduardo Paes tem como plano fazer da Região Portuária um lugar para empresas de alta tecnologia e inovação. A este projeto, foi dado o nome de Porto Maravalley, em referência ao Vale do Silício (ou Silicon Valley), no estado da Califórnia, nos Estados Unidos. A construção deste polo voltado às big techs está previsto dentro do âmbito do megaprojeto Porto Maravilha, que tem investimentos da ordem de bilhões de reais.
No Hub de Inovação, que conta com espaço físico e virtual, estão presentes as maiores empresas de tecnologia do mundo, como Google e Meta (dona do Facebook e do Instagram). O polo, que reunirá grandes companhias, alunos e startups, foi inaugurado no dia 11 de abril, em um evento que contou com a presença do Presidente Lula, do prefeito e de empresários. No entanto, moradores de favelas vizinhas ao projeto relatam desconhecimento sobre o Porto Maravalley e seus impactos na vida das comunidades da região.
Pequena África: História e Presente de Higienização e Gentrificação
Não é recente o fato de que a Prefeitura do Rio de Janeiro perpetra mudanças urbanísticas no Centro da cidade. Em 1903, o Prefeito Pereira Passos implementou a política do “Bota Abaixo”, que resultou na retirada forçada de moradores do Centro do Rio para dar uma nova cara à região. Dezenas de milhares de pessoas foram removidas de suas casas em um processo de higienização social do Centro da cidade.
A região vem continuamente passando por transformações há décadas, com obras que transformaram a área, também conhecida como Pequena África, com infraestrutura raramente voltada para atender às necessidades de moradores locais dos bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Morro da Providência, Morro do Pinto e Morro da Conceição. Exemplos mais recentes são a construção do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), do Museu do Amanhã e do Museu de Arte do Rio (MAR). Com esses aparelhos públicos, mais pessoas circulam pela região e passam a se mudar para lá, levando a um aumento generalizado dos preços, enquanto os moradores sofreram com muitos anos de obra para verem poucos benefícios concretos, em seu dia a dia.
Os impactos da mudança são relatados por Miriam dos Santos Generoso, coordenadora de projeto da Casa Amarela Providência, nascida e criada na favela. “Eu nem conhecia o Porto Maravalley”, relatou a moradora, que afirmou só ter tomado conhecimento do projeto quando foi buscar mais informações a partir desta reportagem do RioOnWatch. Mesmo sendo liderança de uma importante e conhecida instituição do Morro da Providência e já morando na Zona Portuária há 23 anos, ela não foi escutada e nem mesmo informada sobre a implementação desse projeto pela prefeitura, o que demonstra a falta de participação básica de quem faz parte da história viva de um território crítico para a memória e ancestralidade brasileira.
Muitos tentam entender o porquê da prefeitura não dialogar com os moradores e organizações locais sobre o Porto Maravalley. Questionamento antigo que persegue os empreendimentos do Porto Maravilha desde o início das obras, no período pré-Olímpico.
“Quando me mudei, fui para os prédios na Saúde. Na época, não tinha nada disso de Porto Maravilha. A Zona Portuária ainda era outra coisa em relação ao que é hoje [em relação à maneira como a região se organizava]. A gente foi percebendo algumas mudanças. Minha família, em 2006, comprou outro apartamento na Providência e, desde 2018, venho entendendo este lugar [como moradora da Providência]. O meu sentimento de pertencimento veio de 2018 para cá e partiu das construções da identidade, de perceber o lugar onde a gente mora, que reflete quem nós somos… [Os urbanistas e políticos que empreendem essas transformações] não vêm pensando em quem mora no território e isso vai sufocando quem está no território.” — Miriam dos Santos Generoso
Para ela, um complexo de empreendimentos imobiliários dessa natureza poderia trazer retorno para o território, mas, aparentemente, não vai. Não foi pensado levando em consideração as favelas da Pequena África e seus moradores. Pelo contrário, reforça o abismo entre as pessoas que historicamente moram lá e as que estão mais recentemente migrando para a Zona Portuária depois das intervenções urbanísticas. Políticas e empreendimentos como Porto Maravalley visam gentrificar a área, atraindo um novo perfil de moradores. Por isso, não consideram os moradores mais antigos e vulneráveis dos arredores em sua concepção.
Cria-se um abismo entre uma classe média, cada vez mais atraída para o bairro por essa política urbanística da prefeitura, e uma classe socioeconomicamente vulnerável, formada, em sua maioria, por moradores tradicionais do bairro. Uma população majoritariamente negra que se vê cada vez mais obrigada a se mudar e é gradativamente substituída por populações brancas de classe média. Fábricas e prédios abandonados, que poderiam servir para garantir o direito à moradia e ao pertencimento da população, têm sido ferramentas da especulação imobiliária e passaram a abrigar galerias de arte, eventos de nicho e outros empreendimentos que ajudam a gentrificar a área.
A moradora sinaliza que esse processo impulsionou o preço dos aluguéis na favela, que subiram desde as primeiras construções pré-megaeventos na região. O que, segundo ela, traz prejuízos, inclusive, à identidade local:
“Conforme esses empreendimentos chegam, eles tiram o contexto histórico desse território. Hoje, por exemplo, está caro morar no morro, não encontramos casa para alugar. Estão encarecendo mais os lugares e também embranquecendo o território. O processo de gentrificação vai colocando gente preta para a Zona Norte e outros lugares.”
Ellen Costa é nascida e criada na Providência e trabalha como gestora cultural. Ela conta que a favela tem sofrido com as construções que vêm ocorrendo na região. Desde o VLT, os impactos são significativos na vida das pessoas. “A gente desce para trabalhar, mas a região não se conecta com o que acontece na favela”, ressalta.
“Só tem o VLT como transporte dentro do bairro, as linhas de ônibus não circulam mais. E aí, é claro que vai impactar no deslocamento das pessoas para o trabalho. Por exemplo, hoje, você vai para a Central para pegar o metrô… Depende[ndo]… do lado da favela que você mora, você vai andar bastante pra pegar o metrô pra ir pra Zona Sul. Ou então, você tem que ir para o Terminal Gentileza. Se o ônibus é a única opção para chegar ao trabalho, isso faz com que as pessoas tenham que sair de casa mais cedo, o que vai impactar também na qualidade de vida das pessoas.” — Ellen Costa
Assim como Ellen e Miriam, Eron Cesar dos Santos, de 57 anos, também não sabia da existência do projeto Porto Maravalley. O professor de biologia e mestre de capoeira, cria da favela, compartilhou suas expectativas sobre.
“Tenho esperança que revitalize essa região e amplie o mercado de trabalho para a população local. Espero que os impactos positivos superem os impactos negativos… que traga investimentos na área de infraestrutura, distribuição de água e energia elétrica.” — Eron Cesar dos Santos
Em nota, a Prefeitura do Rio, por meio da Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos (CCPar), “informa que o projeto do Porto Maravalley é uma iniciativa da Prefeitura do Rio que reúne educação e inovação no Porto Maravilha. O município investiu na aquisição de equipamentos e na estadia subsidiada dos alunos que vêm de todo o país para o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa)”.
Ainda segundo a nota, “além do Impa, o espaço é ocupado pelo Hub de Inovação e Tecnologia, administrado pela Rio Energy Bay. O investimento na gestão e administração do local é privado, sem custos para o município. O Impa é 100% gratuito com apoio do Governo Federal no financiamento dos cursos de graduação via Ministério da Educação (MEC)”. A prefeitura não informou se há algum braço do projeto voltado para as favelas da Pequena África, que são impactadas com as mudanças urbanísticas na região há quase duas décadas.
Sobre o autor: Igor Soares é jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é redator de home no Portal iG, contribui com o #Colabora e atua como freelancer. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos e segurança pública, já tendo passado pela redação do Estadão e produzido reportagens para a Folha de São Paulo.