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Realizado em 22 de maio, o evento “Chá de Memórias” celebrou o aniversário de 18 anos do Museu da Maré, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, e sua relevância para a história mareense. Realizado na sede do museu, na comunidade do Morro do Timbau, o encontro teve como objetivo principal resgatar as memórias do Complexo da Maré, através de objetos doados por moradores e do compartilhamento das memórias afetivas atreladas a esses e a outros artefatos.
O encontro deste ano apresentou uma proposta de intervenção diferenciada, que motivou a reflexão de aproximadamente 40 participantes sobre “12 tempos da Maré”, nome da exposição permanente do museu. Os doze tempos são categorias temáticas que organizam e conduzem o visitante no decorrer da exposição, mostrando a diversidade de assuntos em torno da história da Maré. Moradores, estudantes, professores e representantes da instituição escreveram sobre o tempo da água, casa, migração, resistência, trabalho, festa, feira, fé, cotidiano, criança, medo e futuro.
A professora de Língua Portuguesa, do Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) da Maré, Helaine Alves, falou sobre o tempo da casa e suas lembranças da infância.
“O objeto que eu mais amo no museu é a palafita. Porque eu gosto de casas e acho que eu poderia ser uma arquiteta. Adoro casas e miniaturas. E quando eu entro na palafita eu reconheço muitos objetos que fizeram parte da minha infância. Por exemplo, tinha a bacia… e eu lembro que como era fininha a minha mãe lavava louça nessa bacia. Eu morava numa casa muito pequena, só tinha um cômodo. Meu banheiro ficava do lado de fora, então, eu lembro dessa bacia. Para mim, é uma recordação muito forte, muito profunda. E esse prato também, tem muitos objetos que quando ali na palafita eu reconheço, é o tempo que eu mais amo. Eu amo o Museu da Maré, amo todo o estilo da palafita. A casa é o tempo [da exposição] que eu mais amo.” — Helaine Alves
A Associação Especiais da Maré falou sobre o tempo do futuro em texto lido pela professora e fundadora do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) e do Museu da Maré, Cláudia Rose: “Nós dos Especiais da Maré , estamos muito felizes pela inclusão feita pelo Museu da Maré. No tempo do futuro esperamos estar em todos os lugares e com acessibilidade, respeito e inclusão para todos”.
João Pinto Oliveira, pai do aluno autista, George Armede, do CEJA Maré, escreveu para o filho sobre o tempo do medo. O texto foi lido pela professora Helaine:
“O tempo do medo, só o nome já assusta, pois é um período em que as pessoas vivem até hoje com operações policiais. Conflitos entre policiais e bandidos, ou entre eles mesmos, por domínio de território. O povo pede paz. Chega de balas perdidas. Chega de mães sofrendo, chorando pelos filhos, filhas ou parentes por causa de tiroteios. Paz para todos.”
Inicialmente, o evento seria realizado no dia 9 de maio, porém, teve que ser adiado devido a uma incursão policial na Maré. O tempo do medo, no entanto, não foi capaz de cancelar o evento, só o adiou em alguns dias.
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Já entre as memórias relacionadas aos objetos, Angélica Pinheiro, dona de casa, destacou a lamparina de querosene e a relação com as memórias que tem com sua avó nordestina, que atuava como costureira:
“Me lembra a minha vó, no Rio Grande do Norte. Aí não tinha luz. Então, ela comprou um galão de cinco litros de querosene por um mês. E essa era a iluminação que ela tinha na casa dela… Aí, sentava na mesa para costurar e ficava costurando roupa e isso aqui me lembra muito lá atrás. Olhar para todos os objetos aqui lembra minha infância. O penico… essa maleta aqui que era onde ela guardava as roupas dela e do meu avô, era uma maleta bem parecida com essa. Isso aqui é muito minha infância em casa. A gente morava na cidade. Isso vale muito, sabe. Ela pegava algodão e botava para queimar até um certo horário porque não podia ficar a noite toda para não acabar o querosene.”
Marli Damascena, responsável pelo Arquivo Dona Orosina Vieira (ADOV), criado em 26 de abril de 2002, data anterior ao surgimento do próprio Museu da Maré, que reúne livros, trabalhos acadêmicos, jornais, revistas, filmes, DVDs, VHSs, fitas cassete, mini DVDs, fotografias, negativos, slides, panfletos, folders, cartazes, banners, mapas, plantas e documentos, conta que os encontros são realizados desde 2008:
“No início, fizemos o Chá com os moradores mais antigos e, ao longo dos anos, foi ficando bem diversificado. Começamos a convidar os estudantes do CEJA Maré e a Clínica da Família. Já tivemos alunos de universidades e depois, ao longo dos anos, os jovens. Porque eles também têm histórias, memórias deles. Então, o Chá de Memórias é muito importante nesse sentido: das pessoas virem, ver, participar, conversar, lembrar dos objetos, lembrar das histórias… Essa reunião das pessoas né, cada um pertencendo àquele lugar, aqueles objetos. Os objetos que temos aqui na exposição, não [são] objetos [apenas daqui, mas também de quem]… morou, principalmente do nordeste. Têm muitos objetos, lamparina, filtro… quando vêem, têm aquela emoção [transmitida] pelo objeto.”
Durante o evento, Cláudia Rose compartilhou um pouco sobre a história do museu.
“O museu foi fundado em 2006, mas a gente já começou a pensar num museu em 2001… [Pensávamos assim]: ‘Será que vai dar certo? Será que não vai? Mas é dentro de uma favela. Como é isso?’ E ver que assim, a gente chegou aos 18 anos com tanta gente participando, colaborando e ainda emocionando pessoas. Para mim, essa é uma realização. Para as pessoas que estão aqui e para a Maré de uma forma geral, acho que ter a memória, a história desses moradores preservada, divulgada e valorizada é algo de extrema importância porque não é uma história só daqui, só de uma pessoa. Claro, a história local, a história de uma pessoa tem extrema importância, mas é pensar que todas essas histórias podem ser compartilhadas com pessoas de vários lugares.
Através de um museu físico, através das redes sociais, através do site do museu, do acervo que a gente tem online. É saber que essas histórias não vão ser esquecidas, são parte de uma história maior, que é a história do Brasil e que elas têm que ser valorizadas como patrimônio do Brasil. Não apenas pensar a Maré dentro dela mesma, mas pensar a Maré como parte dessa cidade e que os moradores e as moradoras aqui contribuem para construir História do Brasil.” — Cláudia Rose, professora e fundadora do CEASM
O Coletivo TV Maré e o Nascimento de um Museu
A história do Museu da Maré não se inicia em um único momento, mas sim se desdobra a partir de inúmeras ações realizadas ao longo do tempo, tecendo um rico mosaico de memórias e vivências da comunidade.
Entre os anos de 1989 e 1992, um marco importante foi estabelecido com o surgimento do TV Maré. Composto por moradores engajados na valorização da história e identidade local, o TV Maré tinha como objetivo principal a produção de materiais que retratassem a realidade da comunidade
Em 1997, houve a criação do CEASM, espaço dedicado a trabalhar com assuntos pertinentes à comunidade. Nessa ocasião o coletivo TV Maré doou seu acervo ao Centro de Estudos, que foi um dos primeiros a compor a narrativa sobre a Maré a partir dela mesma.
Já entre os projetos do CEASM, havia um voltado para memória, o Rede Memória da Maré, também formado por moradores. A iniciativa voltada para trabalhar a memória e história da comunidade, ampliou o acervo sobre a comunidade através de projetos de pesquisa. O Rede Memória foi responsável por promover a capacitação para pesquisas em acervos públicos a também em estimular moradores a doarem materiais que pudessem narrar a história da Maré. Parte do acervo atual também é decorrente da pesquisa feita nessa época em instituições como Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, Casa de Oswaldo Cruz e Arquivo Geral da Cidade.
Em 1998, uma parceria entre o CEASM e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) promoveu a realização de um projeto para formação de monitores, que atuariam no Museu da Vida da Fiocruz, inaugurado em 1999. Essa parceria foi um dos fatores que motivaram o CEASM a pensar na possibilisade da criação do Museu da Maré, fundado anos depois, em 2006, no Morro do Timbau. O Museu ocupa o espaço da antiga fábrica de transportes marítimos Cia. Libra de Navegação, cedida ao CEASM, com um prazo inicialmente previsto de dez anos, que, porém, ganhou caráter definitivo.
A entidade tem como foco central a exposição permanente que conta a história do Complexo da Maré e coordena outras atividades correlatas, como a organização de acervo documental, pesquisas em história oral, o Arquivo Dona Orosina Vieira, a Biblioteca Elias José, e eventos dos mais variados gêneros. Além disso, detém mais de 4.000 objetos museológicos sob sua guarda. Em seu acervo digital, gradualmente alimentado, estão mapas, vídeos, fotografias, recortes de jornais e outros documentos textuais, além de alguns itens museológicos (como objetos de uso doméstico, alfaias de faina, alfaias religiosas e brinquedos).
A memória é de suma importância para a existência humana, tanto para o aprendizado, quanto para o reconhecimento e o pertencimento dos indivíduos ao tempo e espaço que vivem. É através da memória que são retidos os conhecimentos, saberes, cultura e narrativas sobre algo ou alguém. É ela a responsável pela construção de uma identidade no meio social. É nesse contexto que eventos como o Chá de Memórias assumem um papel crucial na valorização e celebração da memória. Através da partilha de histórias e lembranças entre diferentes gerações, são fortalecidos os laços comunitários.
Assista à curta videorreportagem de Amanda Baroni Lopes no “Chá de Memórias” de 18 anos do Museu da Maré:
Sobre a autora: Amanda Baroni Lopes é estudante de jornalismo na Unicarioca e foi aluna do 1° Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias. É autora do Guia Antiassédio no Breaking, um manual que explica ao público do Hip Hop sobre o que é ou não assédio e orienta sobre o que fazer nessas situações. Amanda é cria do Morro do Timbau e atualmente mora na Vila do João, ambos no Complexo da Maré.