‘Roda a Saia, Gira a Vida com Beatriz Nascimento’: 14ª Festa Literária das Periferias Promove Contranarrativas

A pensadora Beatriz Nascimento, historiadora e pioneira do movimento negro brasileiro. Foto: Arquivo Nacional
A pensadora Beatriz Nascimento, historiadora e pioneira do movimento negro brasileiro. Foto: Arquivo Nacional

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A Festa Literária das Periferias (Flup) deu o pontapé inicial em sua 14ª edição no sábado, dia 11 de maio, em um evento realizado no Circo Crescer e Viver, na região hoje conhecida como Cidade Nova, antiga zona da Praça XI, um dos berços do samba carioca, casa e terreiro de mulheres fundamentais como Tia Ciata, no coração do Centro do Rio de Janeiro. A programação para 2024 promete ser rica e diversificada, com a oferta de cursos formativos e oficinas de junho a agosto. A intelectual sergipana, historiadora, pioneira do movimento negro brasileiro, poeta e cineasta Beatriz Nascimento é a homenageada nesta edição de 2024.

Visibilidade às Narrativas Negras e Periféricas: Beatriz Nascimento e os Quilombos

A gira, a roda e a circularidade são movimentos ancestrais que expressam o sentido dos valores civilizatórios africanos e afro-brasileiros. Essas expressões cheias de significados foram entoadas durante a 14ª edição do evento e apresentam vozes insurgentes para a realidade do mercado editorial brasileiro. Pesquisas concluem que o perfil racial dos escritores brasileiros é composto de 93,9% de autores brancos. Dentro dessa realidade, quase todos estão em posições e profissões de privilégio de produção de discurso: os meios jornalístico e acadêmico.

A Flup tem como objetivo tensionar esta atmosfera hegemônica ainda tão presente no cenário literário brasileiro, o que torna possível a acessibilidade ao livro e à escrita literária, o debate literário e a visibilidade de intelectuais negros, favelados e periféricos, que foram silenciados no decorrer da história.

A escritora Conceição Evaristo, presente na Flup, destacou o grande potencial da feira periférica em democratizar o acesso à literatura e difundir o legado de intelectuais negros(as), como Beatriz Nascimento. Conceição Evaristo ainda ressaltou a importância desta pensadora para os estudos historiográficos sob a perspectiva negra.

“Beatriz Nascimento era historiadora do começo ao fim.” — Conceição Evaristo

A historiadora revolucionou os estudos historiográficos sobre os quilombos contemporâneos. Ela investigou os quilombos como unidades de protesto e resistência negra. Tese antes apresentada pelo intelectual negro Clóvis Steiger de Assis Moura e publicada em seu livro Quilombos: resistência ao escravismo, Beatriz atualizou este conceito, tecendo paralelos com os espaços por excelência da cultura negra brasileira contemporânea: as favelas, as comunidades carnavalescas e os centro de religiões de matriz africana.

Beatriz Nascimento, historiadora e pioneira do movimento negro no Brasil. Foto: Educação e Território
Beatriz Nascimento, historiadora e pioneira do movimento negro no Brasil. Foto: Educação e Território

Em 1977, ainda no início de sua carreira, na Quinzena do Negro na Universidade de São Paulo (USP), Beatriz lançou algumas bases de sua hipótese de quilombo como estratégia ancestral de resistência:

“Então, nesse momento, a utilização do termo ‘quilombo’ passa a ter uma conotação basicamente ideológica, basicamente doutrinária no sentido de agregação, no sentido de comunidade, no sentido de luta, como se reconhecendo homens, como se reconhecendo pessoas que realmente devem lutar por melhores condições de vida, porque merecem essas melhores condições de vida na medida em que fazem parte dessa sociedade.”

O diretor fundador da Flup, Julio Ludemir, destacou a importância do pensamento da escritora para a historiografia sob a perspectiva negra:

 “A palavra quilombo não existia como símbolo de estratégia e inteligência de sobrevivência. Queremos que sua obra seja cada vez mais conhecida, mais lida, mais publicada, que chegue ainda mais longe.”

A autora ainda produziu, em 1989, o filme Ôrí que, em uma percepção amefricana, pode significar ‘cabeça’, física ou interior, aquela que guia, referencia, orienta, reúne intelecto, memória e pensamento, articulando presente, passado e futuro, podendo assumir o sentido político de consciência negra. Não é apenas a cabeça concreta acima do pescoço, mas a cabeça espiritual, que representa o ‘eu’ mais profundo. Orí foi dirigido por Raquel Berger e teve sua pesquisa, roteiro e narração feitos por Beatriz Nascimento.

Nessa obra, Beatriz põe o quilombo como o centro da existência negra. Relatando a história dos movimentos negros entre 1977 e 1988, a fim de traçar um panorama social, político e cultural do país, em busca de uma identidade e destacando a importância dos quilombos na formação da nacionalidade.

Seguindo uma perspectiva centrada no afrobrasileiro, adotada pela pensadora, a Flup organizou mesas de debates e atividades sobre literatura e questões raciais. Familiares e amigos da intelectual prestigiaram o evento, emocionados com a justa homenagem.

“Apesar de muito criança, ela me plantou esta sementinha, o quilombo para Beatriz Nascimento é uma forma de organização política e social com forte influência ideológica.” — Evorah Nascimento, sobrinha de Beatriz Nascimento

Mesa: ‘Deixa a Gira Girar’ Traz o Tema do Racismo Religioso e a Literatura nos Terreiros

Mesa: “Deixa e gira girar” com a matriarca da Casa do Perdão, Flávia Pinto (à esquerda) mediação de Natara Ney (no meio) e a matriarca do Ilê Asé D'Oluaiyè, Márcia Marçal (à direita). Foto: Divulgação
Mesa: “Deixa e gira girar” com a matriarca da Casa do Perdão, Flávia Pinto (à esquerda) mediação de Natara Ney (no meio) e a matriarca do Ilê Asé D’Oluaiyè, Márcia Marçal (à direita). Foto: Divulgação

Esta programação reuniu a escritora e matriarca do Ilê Asé D’Oluaiyè Ny Oyá, a Yalorixá Márcia Marçal, a socióloga, escritora e matriarca da Casa do Perdão, Mãe Flávia da Silva Pinto, e teve a mediação da cineasta pernambucana Natara Ney, também curadora da Flup. Nesta mesa, o objetivo foi abordar o empoderamento feminino, o racismo religioso e a educação e a literatura nos terreiros.

“Vou reverenciar as duas Beatrizes que a Flup escolheu homenagear. Ano passado, Beatriz Moreira Costa (Mãe Beata de Iemanjá), uma ancestral hoje, e, neste ano, Beatriz Nascimento. Ambas comprometidas em combater a intolerância religiosa e promover o letramento racial. Beatriz Nascimento, junto com Lélia González, se voltou para a África, a fim de entender a história, porque parte do racismo religioso vem de uma memória não contada.” — Flávia Pinto

Nesse sentido, Márcia Marçal continuou o diálogo sobre o racismo religioso no país.

“A intolerância religiosa acontece porque é uma religião de preto. Tudo o que vem do preto é mal falado e mal visto. Eles acham que é para o mal sempre. Eu queria que as pessoas chegassem em nossos terreiros para saber como acolhemos.” — Márcia Marçal

 

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Tanto Márcia Marçal, quanto Flávia Pinto, além de se dedicarem às religiões de matrizes africanas, são escritoras. Em 2021, a matriarca do Ilê Asé D’Oluaiyè Ny Oyá, Márcia Marçal, publicou a obra Faria tudo outra vez. Em 2021, Flávia Pinto lançou Salve o matriarcado: manual da mulher búfala e, em 2022, Umbanda Preta: raízes africanas e indígenas. Márcia comentou sobre a importância das crianças de terreiro terem acesso a livros.

“Quando criei o espaço literário no terreiro foi acontecendo. Com a vida que tive, saí da escola desde muito cedo, mas sempre quis aprender. E os orixás foram me dando filhos de santos cultos e fui aprendendo, quando vi que tinha um terreno que podia fazer uma biblioteca criei este espaço, porque não queria que as crianças de onde eu vim [da Carobinha, Campo Grande, Zona Oeste] passassem pelo que eu passei.” — Márcia Marçal

Nos intervalos, entre uma mesa e outra aconteceu o Sarau Beatriz Nascimento com a participação de Carol Dall Farra, Josi de Paula, Winona Evelyn e MC Martina. A cada rima, antes de começar a recitar suas poesias autorais e de Beatriz Nascimento, cantavam:

“Onde começa o mundo. Começa Beatriz. E tô dentro do Sarau Beatriz Nascimento.”

“Sarau Beatriz Nascimento” com as poetas: Josi de Paula( à esquerda), com a Carol Dall Farra(no meio), a Winona Evelyn (à direita) e Mc Martina. Foto: Divulgação
“Sarau Beatriz Nascimento” com as poetas: Josi de Paula( à esquerda), com a Carol Dall Farra(no meio), a Winona Evelyn (à direita) e Mc Martina. Foto: Divulgação

Mesa: “A Noite Não Adormece nos Olhos das Mulheres”

Nesse encontro, estiveram presentes a escritora Conceição Evaristo e a filósofa Helena Theodoro, ambas tiveram uma relação íntima de amizade com a pensadora Beatriz Nascimento. Esta mesa recebeu este nome devido a uma história que aconteceu com Beatriz e Conceição Evaristo.

“Ela fez esse serviço no Centro Cultural José Bonifácio pela prefeitura. No dia que saiu, o pró-labore, eu peguei o da Beatriz e marquei com Beatriz no [bar] Amarelinho, em dado momento ele fechou. Fomos em direção a Botafogo, pois ela [Beatriz] morava na Urca, [Zona Sul] e nós fomos gastando todo o pró-labore. Quando chegamos em Botafogo, não tínhamos mais dinheiro para voltar. Sentamos na calçada do Canecão [casa de espetáculo] e Beatriz disse: ‘vamos esperar o dia clarear’ e passamos a noite ali. Daí veio: ‘A noite não adormece nos olhos das mulheres.’” — Conceição Evaristo

Mesa “A noite não adormece nos olhos das mulheres” com mediação de Bianca Santana (à esquerda) a escritora Conceição Evaristo (no meio) e a filósofa Helena Theodoro. Foto: Divulgação
Mesa “A noite não adormece nos olhos das mulheres” com mediação de Bianca Santana (à esquerda) a escritora Conceição Evaristo (no meio) e a filósofa Helena Theodoro. Foto: Divulgação

Com mediação da escritora Bianca Santana, a mesa pôde abordar memórias afetivas sobre Beatriz Nascimento e seu pensamento sobre quilombo.

“O que a comunidade preta traz está muito presente na obra de Beatriz. Antes dos estudos de Beatriz, o quilombo era tido como um lugar folclórico e era caracterizado como um lugar de escravizados foragidos e que tinham de quatro a dez pessoas. E Beatriz colocou tudo isso abaixo! Ela retrata o quilombo como outra política de Estado, diferente da portuguesa e da espanhola.” — Helena Theodoro

 

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O Aquilombamento Continua

O evento também marca a abertura das inscrições, abertas até dia 25 de maio, para a formação de escritoras e escritores “Yabás, Mães Rainhas“, que vai resultar no 32º livro lançado pela Flup. Serão sete encontros, em sete sábados consecutivos, ainda sem previsão de data, em terreiros que cultuam cada uma das yabás: Iemanjá, Oxum, Obá, Iansã, Nanã e Ewá, incluindo a entidade feminina Pomba gira. Os 50 participantes selecionados vão escrever contos a partir dos itans, relatos míticos que envolvem essas importantes protagonistas da cosmologia afro-brasileira.

“A resistência de nossa cultura está nos terreiros, mães que alimentam, contam histórias e cuidam de seus filhos. Orí-entação. Este processo formativo traz a beleza dos encontros, da fabulação e oralidades. Acredito que cada visita nos trará ensinamentos únicos, não apenas para as nossas escritas, mas para a nossa vida.” — Natara Ney

Em junho, a Flup inicia um outro processo formativo: o Slam de Quilombo, ecoando a obra de Beatriz Nascimento e homenageando o intelectual quilombola Nêgo Bispo, que morreu em 2023. Participarão dez quilombos de dez diferentes estados brasileiros, que recebem slammers, poetas performáticos que participam de batalhas de poesia falada, também conhecidas como slam, experientes para dar oficinas de poesia e performance nos quilombos. Cada quilombo promove uma batalha de slam local. Os vencedores de cada estado viajam para o Rio de Janeiro, para a grande final, em novembro.

Além disso, em agosto, será lançada a oitava edição do Laboratório de Narrativas Negras e Indígenas para Audiovisual — Lanani. A parceria com a Globo já formou mais de 200 roteiristas nos últimos sete anos. Serão três meses de formação com dois encontros semanais, um para aulas sobre formatos narrativos e estruturas de roteiro audiovisual e o segundo para mentorias de discussão dos projetos individuais dos participantes. O objetivo é a produção de um argumento para audiovisual, seja filme, série ou mesmo novela.

Assim sendo, aquilombar é preciso, conforme proposto por Beatriz Nascimento, para que haja a manutenção da memória e da ancestralidade negra e indígena. Neste sentido, a Flup, por meio de oficinas e eventos, se torna um potente canal para a circulação desses saberes e conhecimentos na sociedade brasileira. Segundo a organização, o evento inaugural da Flup teve uma média rotativa de 1.200 pessoas.

 

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Sobre a autora: Carol Marinho é cria do Complexo do Alemão, mestra em Relações Étnico-Raciais, educadora e jornalista.


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