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Mais de três anos após a Chacina do Jacarezinho, a mais devastadora ação policial da história do estado do Rio de Janeiro, perpetrada pela Polícia Civil (PCERJ), e que assassinou 28 moradores, a dor ainda assola a favela, sobretudo, no Dia das Mães. Já no dia seguinte à data que celebra a maternidade, Maria da Conceição* e Solange Silva* tiveram que continuar a luta por seus filhos falecidos. Com o objetivo de forçar as autoridades a reabrir as investigações e garantir dignidade funeral a seus entes queridos, as mães decidiram exumar os corpos deles por conta própria. Em seus colos, não carregavam presentes ou flores, mas sim caixas de ossos. Estas mães não querem flores. O presente que elas pedem é justiça por seus filhos.
A Vida de Quem Ficou Não Pode Parar
A Chacina do Jacarezinho foi um evento traumático que marcou profundamente a história do Rio de Janeiro, gerando grande comoção social. Mesmo assim, as famílias das vítimas ainda lutam para lidar com a dor da perda e com a impunidade que cerca o caso. A exumação dos corpos de seus filhos, embora dolorosa, é vista como uma oportunidade de reabrir as investigações e garantir que os responsáveis sejam punidos.
Para as famílias, a exumação representa um passo crucial na busca por justiça e verdade. Através da análise dos corpos, espera-se obter mais informações sobre as circunstâncias das mortes e, assim, fortalecer os pedidos de responsabilização dos agentes do Estado envolvidos. No entanto, os preços praticados pelos cemitérios são proibitivos, o que, mais uma vez, vitimiza essas famílias.
“Quando chegar [o fim de] maio, eles vão ter que sair dessa gaveta porque o prazo é de três anos. E nós temos três opções: cremar, que é R$4.000; columbário, que é mais de R$7.000; ou uma gaveta, que é quase R$15.000. Então, você vê que é um valor fora da realidade de muitas mães e famílias. Porque a maioria é mãe solo.” — Maria da Conceição*
O depoimento acima é de Maria da Conceição*, 52, uma das mães que sofre pela perda do filho durante o massacre de 2021 na favela do Jacarezinho. Além dela, ainda há mais 27 famílias que vivem essa realidade de correr contra o tempo para arrecadar dinheiro o suficiente para garantir o mínimo: um local digno para a memória de seus filhos e retirar os corpos de um túmulo anônimo.
“Assim como eu, muitas famílias e mães de favela não temos condição de pagar para tirar o número do túmulo e cobrir com o nome dos nossos filhos, com foto, com data de nascimento e morte. O meu filho se tornou um número como os outros meninos.” — Maria da Conceição*
Ela conta que toda a família se mobilizou para arrecadar o dinheiro. Ela também começou uma rifa para garantir o dinheiro da exumação. Apesar de todo o esforço, a mãe ainda não conseguiu o dinheiro necessário, mas continua acreditando no suporte que o Ministério Público e a Defensoria têm dado às famílias e na possibilidade de conseguirem a gratuidade para a exumação. Assim como Maria da Conceição*, dezenas de outras famílias não conseguem arcar com a exumação e a destinação desejada para os restos mortais de seus filhos e continuam pagando o preço pela injustiça que os levou à morte.
Apesar dessas famílias sofrerem graças às violações perpetradas pelo Estado, segundo o Guilherme Pimentel, ex-ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e coordenador técnico da Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado (RAAVE), no Brasil, as políticas públicas que garantem o direito ao luto para pessoas em vulnerabilidade socioeconômica são muito precárias. Não existe previsão legal e nem parâmetros definidos para se conferir a gratuidade de serviços funerários, como a exumação, por exemplo.
“O fato é que a legislação brasileira é falha e não prevê o direito à exumação gratuita e esse é um problema que deve ser resolvido, pois, o direito ao luto é muito precário. Todos os direitos relativos ao luto, desde os serviços cemiteriais, remoção de cadáver, roupas, caixão, velório, sepultamento, cova, lápide e etc. Todos esses serviços, até a exumação, são um conjunto de direitos, chamado direito ao luto, mas eles são muito precários no Brasil. No caso da exumação, a pessoa não tem acesso à gratuidade. Não tem nenhuma lei, nenhuma norma ou regra que defina esse direito. Sepultamento gratuito existe, mas é um negócio tão precário, baseado em decretos municipais, não tem direito à velório, o caixão é muito ruim…. É a precariedade total do direito ao luto! Em alguns casos, ainda tem algum tipo de gratuidade, como no caso do sepultamento, mas, ainda assim, muito capenga, de difícil acesso… péssima qualidade… [A falta do] direito ao luto e essa precariedade [causam] uma dor que nunca passa…. O luto tem uma função na vida das pessoas que é virar a página… é quando essa dor vai poder passar… e essa página nunca vira quando você não tem o direito ao luto garantido.” — Guilherme Pimentel
Solange Silva*, 49, mãe solo, contou ao RioOnWatch sobre a perda de seu filho para a violência do Estado e um pouco de como foi a preparação para a exumação do corpo do filho, que aconteceu no dia 13 de maio.
“Eu tenho que pagar aproximadamente R$9.000 para a exumação do meu filho… Fora a caixa que preciso para colocar os ossos dele, que custa um pouco mais de R$1.000… Eu vendia roupa e tênis na rua. Vendia na Uruguaiana, em Madureira, em São Cristóvão e não tinha hora para sair. Eu me organizei para tirar um dinheiro de janeiro até agora. De tanto trabalhar, eu não lembrava de nada, só parava para descansar quando ia comer pão com mortadela e um refrigerante no final da tarde. No final de abril para maio, eu não aguentei. Agora estou à base de remédio para conseguir dormir.” — Solange Silva*
Fabbi Silva, atual ouvidora da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, explica como o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH) e a RAAVE estão trabalhando junto ao grupo de mães do Jacarezinho, proporcionando atendimento e cuidado em saúde mental. “O ponto central da RAAVE e do NUDEDH é o acolhimento das famílias e a efetivação dos direitos e serviços públicos, para que os familiares saiam do ciclo de dor e luto com dignidade”, reforça a ouvidora.
Há aproximadamente um ano, as mães pedem apoio e buscam alternativas para conseguir a exumação e a dignidade funeral para seus filhos. Além da luta pela gratuidade do serviço, existe a esperança na produção de novas provas a partir de novas análises dos restos mortais exumados e a preocupação com o desarquivamento dos processos.
“No caso do sepultamento, existem normativas que garantem a gratuidade do serviço… no entanto, há vários questionamentos sobre a qualidade do serviço… O que está acontecendo com as familiares do Jacarezinho é que elas—são mais de 20 mães—, neste momento, estão brigando pelo processo de exumação que, ao contrário do sepultamento, não é gratuito, é um serviço bem caro… Há um ano, elas vêm lutando e pedindo apoio para pensar em alternativas, tendo em vista que muitas têm esperança de reabrir os processos relacionados a seus filhos. E aí, se houver o descarte da forma como é realizado, com a incineração dessa ossada, essas mães temem perder provas que podem ser solicitadas pelo juíz, se houver a reabertura dos processos.
Logo, a briga pela exumação é para garantir esse cuidado com relação a provas que, por acaso, possam estar ali. E também para garantir um lugar de guarda dessa ossada, levando em conta que essa mãe, esse familiar, não quer se despedir dessa forma, não saber onde esse ente querido está sepultado, seja na caixinha, seja em urna… O que a Defensoria vem produzindo, a partir da RAAVE, do Núcleo de Fazenda Pública e Tutela Coletiva e do NUDEDH, é uma escuta sobre esse processo… e pensar em meios menos dolorosos na fase da exumação, garantindo o direito à família da guarda dessa ossada por tempo indeterminado.” — Fabbi Silva
No entanto, apesar dessa luta pela exumação, muitas mães decidiram pela cremação das ossadas, pois, assim, pelo menos, saberão o que aconteceu com os corpos de seus filhos e terão suas cinzas para darem a destinação desejada. Passados três anos e um mês do sepultamento em gavetas temporárias ou sepulturas alugadas, caso não haja possibilidade financeira ou manifestação de interesse na remoção e destinação dos restos mortais por parte da família, a retirada da ossada será feita pelo próprio cemitério. Nesse caso, os ossos são encaminhados para o ossário geral do cemitério, onde se misturarão aos restos mortais de outras pessoas para posterior incineração coletiva. Assim sendo, os corpos não poderão mais ser identificados e essas mães, mais uma vez, não teriam seu direito ao luto garantido.
Muitas mães decidiram pelo caminho da cremação, porque muitas delas não têm o dinheiro necessário—milhares de reais—para arcar com os custos da exumação e nem querem ver o que sobrou de seus filhos desaparecer para sempre. Portanto, nesse momento, uma das prioridades do NUDEDH tem sido distribuir ações para obter as autorizações para a cremação dos restos mortais das vítimas da Chacina do Jacarezinho. No entanto, segundo a ouvidora, o prazo para resolver essa questão é muito curto: elas têm só até o dia 30 de maio para impetrarem os pedidos de cremação. Até agora, 16 mães já assinaram os documentos.
‘É Aqui Onde Ele Vai Ficar? Eu Não Vivo Mais o Dia das Mães.’
No dia 13 de maio, durante a exumação dos restos mortais de seu filho, Solange* estava acompanhada de seu companheiro e de três funcionárias da Defensoria Pública, duas psicólogas e uma ouvidora.
“Essa semana foi muito difícil para mim. Meu filho foi morto na quinta-feira, no dia 6 de maio, e eu fiz aniversário no dia 1º de maio… Três colegas minhas, que faziam parte do nosso grupo, não aguentaram e entraram em estado grave de depressão. E, agora, estão mortas… Eu também estou vivendo uma depressão horrível!” — Solange Silva*
Na época da chacina, Solange* lembra que seu filho deu a ideia de comemorar o aniversário da mãe junto ao Dia das Mães, mas, no dia em que seria a comemoração, ela estava deitada em cima do caixão dele.
“Se a gente pudesse falar tudo o que viu, para mobilizar uma investigação que apresentasse tudo o que a polícia fez… mas, infelizmente, muitas pessoas também sentem medo e é um sentimento horrível. Parece que a gente não tem mais vida porque vivemos em uma situação de descaso. Se a gente não puder trabalhar com nomes, trabalhar com todas as informações que temos dos policiais, nós não vamos ter justiça.” — Solange Silva*
Mesmo com acompanhamento psicológico oferecido pela Defensoria Pública, ela afirma que os dias têm sido bastante difíceis. Além da morte do filho, ela lembra da desinformação propagada pelo Estado e das fake news que ainda circulam nas redes sociais sobre seu filho, seu assassinato e até mesmo sobre ela, mãe de vítima do Estado. Solange* desabafa que, agora, precisa tomar mais de dez remédios para controlar os problemas de saúde decorrentes dos três anos que viveu após a chacina. Maria* também sofre com problemas de saúde devido às consequências da chacina: pressão alta, diabete, crises de ansiedade e depressão.
“Quando a gente vive esse tipo de situação de violência policial, eles esquecem que esses jovens têm uma família. A justiça só quer saber se eles apresentam alguma ficha criminal.” — Maria da Conceição*
Operações Que Matam e Não Trazem Justiça
De acordo com um estudo sobre chacinas, em um período de sete anos, que vai até o final de 2023, o Instituto Fogo Cruzado levantou 283 operações policiais no Rio de Janeiro que se caracterizariam como chacinas, resultando em 1.137 civis mortos. Em média, três chacinas por mês.
Segundo o Instituto, entre as chacinas mapeadas, 18 aconteceram depois que um policial foi morto ou ferido. Essas chacinas são chamadas por moradores de Operações de Vingança. Em média, estas operações são 71% mais letais que uma chacina policial em que não houve agente público baleado ou morto. As Operações de Vingança deixaram 117 mortos no Grande Rio desde 2016.
Esse também foi o caso do Jacarezinho. A Polícia Civil realizou uma operação que durou cerca de 10 horas. No começo, ela foi relativamente tranquila. A matança só começou depois que um policial foi alvejado e morto em confronto, pouco tempo depois do início da operação. Além do intenso conflito que se seguiu à morte do agente da Polícia Civil, meses depois, policiais foram acusados de torturar, além de forjar, fraudar e mentir para esconder execuções. Durante a ação policial, graças aos tiroteios, a circulação de trens nos ramais de Saracuruna e Belford Roxo e da Linha 2 do metrô foi interrompida; uma Clínica da Família e postos de vacinação contra a COVID-19 foram fechados; mais de 2.000 estudantes não tiveram aula; e pessoas foram baleadas, inclusive, fora da favela, até mesmo dentro de um vagão do metrô que passava pela Estação de Triagem.
As chacinas policiais acontecem em todo o Grande Rio, mas não da mesma maneira. Na Zona Sul da capital, foram registradas nove chacinas, quatro delas na favela da Rocinha. Já na Zona Norte, são 73 casos que deixaram 373 pessoas mortas. Na Baixada Fluminense, foram mapeados 72 casos, com 255 mortos. E, no Leste Metropolitano, 70 casos, com 252 mortes.
O Complexo do Salgueiro, conjunto de favelas na cidade de São Gonçalo, no Leste Metropolitano, foi a localidade com mais chacinas registradas no período. Apenas lá, 14 chacinas policiais resultaram em 66 mortes. Para que se tenha dimensão do que acontece no Complexo do Salgueiro, as outras quatro localidades com mais chacinas são: Complexo da Maré, com 10 chacinas e 51 mortos; Complexo da Penha, 8 chacinas e 55 mortos; Cidade de Deus, 8 chacinas e 27 mortos; e Vila Kennedy, com 8 chacinas e 26 mortos.
O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) apresentou um relatório com dados do período de 2007-2022. Foram realizadas 19.198 operações policiais no Rio de Janeiro. Deste total, 629 operações policiais resultaram em chacinas, totalizando 2.554 mortos. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, as chacinas ocorreram em 3,3% das operações policiais, mas são responsáveis por 40% das mortes em operações policiais. Historicamente, a população vítima das chacinas promovidas pelo Estado é negra e moradora de favelas—sobretudo, de favelas em áreas periféricas. Esse também foi o caso na Chacina do Jacarezinho: 28 homens negros jovens assassinados em uma favela da Zona Norte.
A reportagem do RioOnWatch entrou em contato com a assessoria de imprensa do Estado do Rio de Janeiro, perguntando sobre as possibilidades de suporte para as famílias que estão na fase de exumação dos corpos de seus familiares vítimas do Estado. Até o fechamento da matéria, não obtivemos resposta.
*Os nomes das entrevistadas são fictícios para preservar suas identidades e privacidade.
Sobre o autor: Ramon Vellasco é fotojornalista e repórter freelance, cria da Vila da Penha. Atua em temas sobre direitos humanos, cultura, educação, diversidade e grupos sociais em situação de risco. Trabalha a partir de territórios periféricos, favelados e suburbanos.