Violência Armada Que Impacta as Infâncias: Prefeitura e Estado do Rio Fracassam ao Reforçar Tragédia Infantil

Muitas famílias alteraram as suas rotinas para estarem na reunião na prefeitura. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ
Muitas famílias alteraram as suas rotinas para estarem na reunião na Prefeitura. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ

Desde 2016, foram 710 crianças e adolescentes baleados no Grande Rio, uma média de quase duas vítimas infantis por semana. Segundo um relatório do Instituto Fogo Cruzado divulgado em fevereiro de 2025, esse número se deve ao aumento de operações policiais com crianças e adolescentes vitimados. 36% dos tiroteios registraram envolvimento de agentes de segurança, ante 28% em 2017. Não é coincidência o número recorde de crianças vítimas de balas perdidas: 26 casos no ano passado. 

Das 268 crianças que morreram violentamente desde 2016, 59% dos casos foram por balas perdidas, 26% em operações policiais e 10% em conflitos entre facções. Apesar da gravidade, 60% não tiveram investigações concluídas, segundo outro relatório, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. 

Por trás dos números, histórias como a de Kamila Vitória, 12 anos, morta em 2024 ao brincar em Del Castilho, na Zona Norte, e de Diego, 4 anos, que, neste mesmo ano, foi atingido com os pais em Paty do Alferes, no interior do estado, revelam a urgência de políticas que protejam vidas. A remoção do memorial da Lagoa Rodrigo de Freitas, instalado em memória das crianças vítimas da violência armada, simboliza a tensão entre apagar a dor e enfrentá-la.

O Prefeito Eduardo Paes mandou retirar as fotos das crianças mortas por bala perdida. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ
O Prefeito Eduardo Paes mandou retirar as fotos das crianças mortas por bala perdida. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ

O Relatório Anual do Instituto Fogo Cruzado revela um cenário paradoxal da violência armada no Rio de Janeiro em 2024. Embora o número total de tiroteios tenha caído para 2.535—o menor índice em oito anos—as ações de segurança pública estão cada vez mais associadas a confrontos na capital. Em 2024, 36% dos tiroteios ocorreram durante operações policiais, ante 28% em 2017.

Por muito pouco, uma criança de 7 anos não foi atingida por uma bala perdida na operação do dia 8 de janeiro na favela do Mandela, na zona norte do Rio. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ
Por muito pouco, uma criança de 7 anos não foi atingida por uma bala perdida na operação do dia 8 de janeiro na favela do Mandela, na Zona Norte do Rio. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ

O ano de 2024 também registrou 26 casos de crianças atingidas por armas de fogo na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sendo 16 por balas perdidas. A Baixada Fluminense liderou as ocorrências (13 casos), seguida pela Zona Oeste (6) e Zona Norte (5). Ainda em 2024, do número total de pessoas vitimadas por balas perdidas na cidade, a Zona Norte concentrou 48% (51 casos), superando a Baixada Fluminense (24) e Zona Oeste (20). Dentre as principais causas de tiroteio estavam as disputas entre facções e milícias (11 casos), ataques a civis (7), homicídios (5), e ações policiais (4).

Ainda que 2024 tenha registrado a menor incidência de tiroteios dos últimos oito anos, a Região Metropolitana registrou 32 pessoas baleadas só nos primeiros dois meses de 2025. Este é o maior número para o período desde 2021, sendo 72% durante ações policiais.

Além disso, neste início de 2025, os eventos com bala perdida aumentaram 58% em relação ao mesmo período de 2024, com casos como o de um adolescente de 17 anos, que foi atingido dentro de casa no Complexo do Chapadão, o de José Murilo, de 10 anos, baleado no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, ou o de Pedro Henrique, de 11 anos, atingido em Realengo. Toda essa tragédia social mostra que o risco de morte violenta para jovens e crianças de favelas e periferias persiste. E, segundo Antônio Carlos Costa, fundador da ONG Rio de Paz, a solução não é simples.

“Nenhuma medida isolada dará conta do problema da violência no Estado do Rio. Precisamos de um pacote. E esse pacote envolve o combate à desigualdade social, implementação de políticas públicas nas favelas, reforma e valorização da polícia, rediscussão da guerras às drogas. Ou seja, precisamos daquele estado que entra em sua plenitude nas comunidades, levando áreas de lazer, educação pública de qualidade, saúde, empregabilidade, o que hoje inexiste. Estamos fazendo há dezenas de anos as mesmas coisas e esperando resultados diferentes.” — Antônio Carlos Costa

Há 18 anos, a Rio de Paz atua na defesa dos direitos humanos, denunciando violações, promovendo justiça e fortalecendo a solidariedade. Sua trajetória é marcada por ações em defesa da democracia, da memória das vítimas da violência de Estado, do apoio às comunidades vulnerabilizadas, e em defesa de vítimas da violência policial.

“Nosso movimento surgiu em 2007 quando vimos os índices de homicídio muito altos e pensamos que deveríamos fazer algo porque aquilo era um absurdo. A redução de homicídios é um dos pilares da ONG. Desde então, cobramos dos governos do estado e federal um projeto de segurança pública para o Rio, com protocolos para operações em favelas, com metas e cronogramas a serem seguidos para a redução de homicídios e o combate ao tráfico de armas e munição no Rio de Janeiro, já que o estado não as fabrica, mas sabe que tem um arsenal nas mãos de bandidos.” — Antônio Carlos Costa

‘Operações Policiais Precisam Considerar o Horário Escolar e Poupar o Entorno dos Espaços Educacionais’

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar a ADPF das Favelas para conter o aumento da violência policial, que disparou durante a pandemia, visando garantir a vida daqueles moradores de favelas e de comunidades do Rio de Janeiro que tinham que ficar em casa por causa do coronavírus, mas que, estando em casa, ficavam na linha de tiro de operações policiais violentas.

A medida exigia que operações policiais em favelas fossem devidamente justificadas, planejadas e monitoradas pelo Ministério Público. Nos primeiros meses, os resultados foram positivos: redução de 23% nos tiroteios e 26% nas vítimas de disparos. Além disso, reduziu-se em 45% o número de pessoas baleadas e em 57% o de vítimas de ações policiais.

Reunião com a Secretária de Meio Ambiente e Clima, Tainá de Paula, em 9 de janeiro de 2025, debateu a criação de um memorial oficial, permitindo a recolocação provisória das imagens. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ
Reunião com a Secretária de Meio Ambiente e Clima, Tainá de Paula, em 9 de janeiro de 2025, debateu a criação de um memorial oficial, permitindo a recolocação provisória das imagens. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ

Os dados do Instituto Fogo Cruzado comprovam a eficácia da medida. Antes da ADPF, em 2023, o Grande Rio registrava 2.881 pessoas baleadas. Após a implementação, em 2024, esse número caiu 45% (1.566 casos). Além disso, o número de vítimas de bala perdida em operações caiu pela metade (de 62 para 31) e o número de agentes de segurança baleados em serviço reduziu 60% (de 40 para 16).

No entanto, em 2025, a flexibilização de algumas regras da ADPF pelo STF reacendeu o temor de retrocessos. Essa flexibilização ampliou para 180 dias o prazo para instalação de câmeras em viaturas e retirou, salvo em casos desproporcionais, restrições ao uso de helicópteros e operações próximas a escolas e hospitais.

Segundo Carlos Nhanga, analista do Instituto Fogo Cruzado, enquanto o governador do Rio, Cláudio Castro, celebrou as mudanças, organizações de direitos humanos alertaram para os riscos de abusos, criticando, principalmente, a falta de critérios para afastar policiais envolvidos em execuções.

“Muitas vítimas crianças são atingidas durante ações policiais mal planejadas, frequentemente realizadas em horários e locais sensíveis, como próximo a escolas, no horário de entrada ou saída. O planejamento das operações policiais precisa considerar o horário escolar e poupar o entorno dos espaços educacionais. É necessário equipar a polícia para aumentar os índices de investigação. A maioria dos casos de crianças atingidas termina sem punição alguma.” — Carlos Nhanga

Além disso, decisões das esferas estadual e municipal caminham na direção contrária ao combate da violência armada contra crianças. Enquanto o Governo do Estado apresentou seu plano de segurança, o Decreto nº48.138, sem medidas específicas para proteger crianças e adolescentes, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou, em primeira votação (por 43 votos a 7), o Projeto de Lei 23-A/2018, que autoriza o armamento da Guarda Municipal.

Críticos a este projeto de lei, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro alertam para os riscos de aumento da violência e de repetição de falhas já conhecidas.

“Enquanto a letalidade for vista como medida de eficiência policial, as investigações seguirão em segundo plano. É necessário implementar uma política de segurança que priorize a investigação e a inteligência. Isso inclui investimento em capacitação técnica das equipes de investigação, fortalecimento das corregedorias e maior transparência nos processos investigativos. Sem informação qualificada e sistematizada, o planejamento de ações eficazes seguirá comprometido.” — Carlos Nhanga

A reportagem entrou em contato com o gabinete do governador e a Secretaria de Segurança Pública sobre a existência de outras políticas públicas de proteção à criança, já que o Decreto nº 48.138 não prevê medidas específicas para esse fim. Até o momento, RioOnWatch não obteve resposta.

Mobilização Social Conquista Vitória Simbólica, Mas Memorial na Lagoa Ainda Não Saiu do Papel

Em 28 de dezembro de 2024, a Rio de Paz realizou um protesto na Lagoa Rodrigo de Freitas contra as mortes de crianças por balas perdidas, substituindo as placas do memorial local por 49 fotos de vítimas. A ação buscava pressionar autoridades e conscientizar a sociedade.

No entanto, no dia seguinte, o Prefeito Eduardo Paes ordenou a retirada das fotos sob alegação de falta de autorização por parte da ONG—embora tenha mantido, no mesmo local, homenagens a PMs mortos. Paes já havia criticado a instalação do memorial às crianças em 2022 no documentário A Estética da Luta, apesar de afirmar reconhecer sua relevância.

Assassinato de crianças é a face mais hedionda da Guerra aos Pobres, declarada pelo Estado como Guerra às Drogas. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ
Assassinato de crianças é a face mais hedionda da Guerra aos Pobres, declarada pelo Estado como Guerra às Drogas. Foto: Rafael Henrique Brito/ONG RIO DE PAZ

A decisão indignou familiares e ativistas, pois o memorial existia desde 2015 sem interferência da Prefeitura. Em resposta, a Rio de Paz organizou um novo ato em 4 de janeiro de 2025, reunindo familiares e voluntários que, situados no antigo do memorial, exibiram as fotos das crianças.

Após a mobilização de uma reunião com a Secretária de Meio Ambiente e Clima, Tainá de Paula, em 9 de janeiro, debateu-se a criação de um memorial oficial, permitindo a recolocação provisória das imagens.

A pressão resultou em uma nova reunião em 13 de janeiro, que autorizou oficialmente a reinstalação das fotos e prometeu a construção de um memorial permanente. O prefeito pediu desculpas pelo sofrimento causado e reconheceu para os familiares das crianças vitimadas a importância da homenagem. As imagens retornaram ao local em 15 de janeiro, marcando uma vitória simbólica na luta por memória e justiça.

“Tivemos reunião com o prefeito em 13 de fevereiro. Ele reconheceu o erro, pediu desculpas e nos prometeu fazer um memorial. No dia 15 de fevereiro, portanto, dois dias depois, retornamos com os familiares das crianças ao mural onde recolocamos as fotos. Ficou decidido na reunião que profissionais ligados à área de patrimônio da prefeitura vão nos apresentar alguns projetos para nossa avaliação e para avaliação das mães das crianças. Tudo será feito de forma conjunta. No entanto, ainda não tivemos retorno. Estamos sempre cobrando, mas a informação que temos é que ainda estão preparando os projetos. O local também ainda será definido. A nossa condição é retirar as fotos somente quando o memorial for erigido, o que foi aceito também pelo prefeito. Lembrando que toda essa ação junto à prefeitura foi articulada pela vereadora Tainá de Paula, com quem estamos em constante contato.” — Antônio Carlos Costa

A reportagem entrou em contato com o gabinete do prefeito e com a Secretaria de Segurança Pública para obter informações sobre a construção do memorial—incluindo local, data e projeto—sobre o plano municipal de segurança pública e sobre a posição do prefeito e do secretário em relação ao armamento da Guarda Municipal. No entanto, até o momento, RioOnWatch não obteve resposta.

“Não há como prever o futuro, mas a tendência é que, com mais uma força armada, tenhamos mais registros de tiroteios. A prefeitura tem papel essencial no ordenamento urbano, que é parte de um planejamento amplo de segurança pública. Ela também tem potencial para gerar dados sobre a cidade que, em um cenário onde a segurança fosse planejada em parceria por todos os entes governamentais com a participação da sociedade civil, seria de grande valor. Infelizmente, não é a realidade com a qual vivemos hoje.” — Carlos Nhanga

Sobre o autor: Felipe Migliani é formado em Jornalismo pela Unicarioca e tem especialização em jornalismo investigativo. Atua como jornalista independente e repórter freelancer nos jornais Meia Hora e Estadão. É colaborador do Coletivo Engenhos de Histórias, que investiga e resgata histórias e memórias da região do Grande Méier, e do PerifaConnection.


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