Cerro Corá Moradores em Movimento: Coletivo Desenvolve Território Através da Alfabetização, Memória, Cultura e Cinema [PERFIL]

Jeferson Dias, integrante do Cerro Corá Moradores em Movimento, à frente da contação de história para cerca de 20 crianças na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias
Jeferson Dias, integrante do Cerro Corá Moradores em Movimento, à frente da contação de história para cerca de 20 crianças na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias

Em 2013, na favela do Cerro Corá, entre os bairros de Cosme Velho e Santa Teresa, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, o Coletivo Cerro Corá Moradores em Movimento foi fundado junto com o nascimento do projeto de memória social Memórias do Cerro Corá. Após ocupar a sede desativada da Associação de Moradores local em 2014, o grupo inaugurou a Biblioteca Comunitária do Cerro Corá, que, hoje, funciona como um dos mais importantes pólos da comunidade.

“A primeira exposição aconteceu em 13 de agosto de 2013. A gente começou meio inocente, sem saber o que estava fazendo… O intuito principal [era] trazer à tona essa importância da memória, sobretudo, das pessoas que fazem e fizeram parte da construção do que é o Cerro Corá… Nós, no Cerro Corá, temos os nossos micro-heróis, pessoas super importantes, tipo o Seu Murciano Marinho, que foi responsável, na época, pela água, pela luz e por outros feitos grandiosos para o morro. Dona Baia, que foi parteira, a gente conversou muito com ela, mas ela não quis ser gravada, não permitiu ser gravada… A gente pensa muito nessa construção de identidade [a partir] do passado. — Ricardo Rodrigues

Atualmente, ao chegar na sede da Biblioteca Comunitária do Cerro Corá, é possível ver as fotos antigas na parede: imagens cotidianas das moradias no início da ocupação do morro, das festas e bailes da favela. Ricardo, um dos co-fundadores do coletivo, conta o que os motivou a criar Memórias do Cerro Corá e explica como foi o processo de pesquisa e de participação dos moradores, que emprestaram seus arquivos pessoais para a montagem do acervo, hoje à disposição da comunidade.

“A gente, na primeira exposição, fez um mutirão de porta em porta, recolhendo fotos antigas e tal. Escaneava e aí devolvia na semana seguinte. A Dona Sulica participou muito disso, porque convencia as outras pessoas a darem suas fotos. E aí, às vezes, o filho dá a foto, mas não lembra mais de quem era a casa, quem era a pessoa e tal. E aí, ela falava: ‘aqui era a casa do fulano e tal, aqui tinha uma árvore, tal história da árvore, tal história da pessoa, quem morou antes daquela pessoa vir morar e tal’. Ela foi muito importante nessa construção das histórias.” — Ricardo Rodrigues

Ricardo Rodrigues posa ao lado da exposição "Memórias do Cerro Corá”, exposta permanentemente na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias
Ricardo Rodrigues posa ao lado da exposição permanente “Memórias do Cerro Corá”, na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias

A biblioteca comunitária possui também um amplo acervo de livros e desenvolve diariamente atividades junto aos moradores. André Martins, coordenador da biblioteca, explica que o trabalho desenvolvido no espaço inclui mediação de leitura, empréstimo de livros, oficinas e ações pedagógicas. Ele informou que o público que frequenta a biblioteca diariamente busca essas atividades. O público predominante corresponde a crianças entre dois e 14 anos de idade, mas a biblioteca possui um acervo de livros que atende a todas as faixas etárias.

“A gente abre a biblioteca de segunda a sexta e opera dessa maneira: sempre fazendo uma mediação de leitura e alguma oficina. Mas sempre com essa entrada pela literatura. E é sempre o Jeferson que está à frente [da contação de histórias]. Eu fico ali coordenando junto com ele, mas as mediações é ele que faz.” — André Martins 

Da esquerda para direita, os integrantes do coletivo: Ricardo Rodrigues, Luciane Medeiros, André Martins e Jeferson Dias na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias
Da esquerda para direita, os integrantes do coletivo: Ricardo Rodrigues, Luciane Medeiros, André Martins e Jeferson Dias na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias

André mencionou também o Cine Morrão, o cineclube dos moradores do Cerro Corá. Ao exibir filmes gratuitamente, em espaços públicos e com eventos abertos à comunidade, o coletivo audiovisual garante acesso ao cinema na favela. As sessões, em geral, são seguidas de debate.

“[A gente] faz o Cine Morrão num espaço aberto, para atender todo mundo, inclusive, quem está passando, que vai ver o filme que está sendo exibido… Todos os moradores do território podem chegar para assistir e participar do debate.” — André Martins

Durante uma atividade recente, Jeferson Dias contava a história afroreferenciada Eré mi: mitologia africana para crianças para aproximadamente 20 crianças que estavam presentes na atividade. É a partir das leituras mediadas que estimulam as crianças a ler e pegar gosto pelos livros. Durante a contação da história, Jeferson estimulou algumas crianças em fase de alfabetização a ler junto com ele. Ao final da leitura coletiva, as crianças foram convidadas a expressar sua opinião sobre o livro em uma oficina de criação de desenhos. Após a oficina, Jeferson, que é responsável pela parte pedagógica da biblioteca, comentou sobre a importância deste trabalho.

“[Em] toda parte da biblioteca, eu sou responsável pelo livro e leitura com as crianças. Então, aqui, eu faço parte da mediação de leitura. Eu tenho a prática de toda semana fazer esse trabalho de livro e leitura, de incentivar a leitura, de [incentivar] pegar no livro. Porque, assim, a grande maioria das nossas crianças, elas vêm com déficit muito grande na escola. E a gente não tem a estrutura necessária para trabalhar a alfabetização com as crianças. Mas a gente entende que passando o incentivo da leitura, por mais que eles não saibam ler, eles gostam de história, eles gostam de entender história, de ler e de ver. Tem criança que ainda está no processo de alfabetização, ou ainda na creche, que quer ler, quer ver as imagens. Então, a gente faz esse trabalho de fomento à leitura.” — Jeferson Dias

Jeferson Dias, integrante do coletivo, conta a história “Eré mi: mitologia africana para crianças” e incentiva a leitura de uma jovem moradora na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias
Jeferson Dias, integrante do coletivo, conta a história “Eré mi: mitologia africana para crianças” e incentiva a leitura de jovens moradores na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias

No que diz respeito à curadoria dos livros que compõem o acervo, Jeferson explica que a seleção das obras e das temáticas se preocupa com o desenvolvimento de um trabalho educativo com as crianças que frequentam a biblioteca.

“Eu faço um apanhado dos livros que eu vou ler durante a semana. Eu vou lendo os livros que eu vou [apresentar às crianças] para pegar a prática da leitura, vou fazendo as pesquisas do que precisa [para apresentar o] livro, e aí eu trago um tema referente àquele dia. Pode ser a água, a terra… Então, eu busco alguns temas que estão dentro do cotidiano deles para fazer essa introdução à leitura. E aí vem a prática no desenho. Tem vezes que eu faço desenho, tem vezes que a gente faz isso no cineclube. Então, a gente vai fazendo esse trabalho de acordo com o dia e com o tema.” — Jeferson Dias

Por trás de todos os bastidores está Luciane Medeiros, também integrante do Coletivo Cerro Corá Moradores em Movimento e coordenadora administrativa. Luciane cuida da captação de recursos para manter o projeto funcionando e do dia a dia administrativo da biblioteca. Às vezes, ela participa de oficinas e de toda a organização das aulas-passeio, quando a Biblioteca Comunitária do Cerro Corá leva as crianças que frequentam o espaço a museus, parques e, inclusive, a outras bibliotecas.

“O coletivo realiza o acesso à cidade com passeios para outros espaços, outras culturas, [incluindo] museus, bibliotecas, parques e exposições. Costumam ser um diferencial para nossos leitores. Sou também responsável por ministrar oficinas de culinária e artesanato, que complementam as atividades da biblioteca.” — Luciane Medeiros

Bernardo Medeiros e Francisco Rodrigues participam das atividades de leitura e contação de histórias na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias
Bernardo Medeiros e Francisco Rodrigues participam das atividades de leitura e contação de histórias na Biblioteca Comunitária do Cerro Corá. Foto: Bárbara Dias

Dentre as crianças que participaram da atividade de contação de histórias, Francisco Rodrigues*, de seis anos de idade e em processo de alfabetização, fala que gosta da biblioteca porque “na minha idade, eu só gosto de ler as figuras dos livros”. Já Bernardo Medeiros*, de sete anos, diz que frequenta o espaço porque “aqui tem livros, brincadeiras, histórias e lanches”.

Em favelas, onde a negligência do Estado é uma realidade, o Coletivo Cerro Corá Moradores em Movimento resiste na construção de um ponto de educação, cultura e memória por meio de iniciativas como o Cine Morrão, a Biblioteca Comunitária e o Memórias do Cerro Corá. Além de oferecer atividades aos moradores, principalmente às crianças, essas frentes de trabalho criam espaços de pertencimento e vivências que valorizam as histórias do Cerro Corá, de forma autônoma, afetiva e coletiva.

*As crianças foram entrevistadas com autorização de seus responsáveis.

Sobre a autora: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.


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