
Na Maré, complexo de favelas com 140.000 habitantes na Zona Norte do Rio de Janeiro, o projeto Especiais da Maré atende mais de 700 famílias atípicas de toda a região. Neste 21 de setembro, Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, o RioOnWatch celebra o Especiais da Maré, iniciativa fundamental que cria laços de identidade e de afeto entre os mareenses com deficiência, bem como para a criação de uma tão necessária rede de apoio.
Quem conta a trajetória do coletivo Especiais da Maré é Alusca Cristina Silva Sousa, 33 anos, gestora, responsável pelo projeto e mãe de Pedro Henrique, diagnosticado com paralisia cerebral e epilepsia de difícil controle. Alusca morou no Parque União, uma das 16 favelas que compõe o Complexo da Maré, durante toda a sua vida. Recentemente, mudou-se para a Ilha do Governador, mas, por conta do projeto e de toda a sua história, ela está diariamente na Maré, trabalhando junto com as outras gestoras.
“O projeto começou em 2018, em um grupo de WhatsApp, atendendo oito mães. A ideia partiu do incentivo de Luiz Costa, professor do Pedro Henrique. De lá para cá, nós cadastramos tantas famílias que criamos dois grupos de WhatsApp. O primeiro grupo da Kelson’s até o Morro do Timbau, e o segundo grupo do Timbau até a Vila do João.” — Alusca Cristina Silva Sousa
O Especiais da Maré desenvolveu parcerias com a Fiocruz e a UFRJ, oferecendo, através de um projeto de extensão, oficinas de culinária para as mães, para promover informação sobre saúde e alimentação através da gastronomia. Toda segunda-feira, a maternidade atípica tem centralidade através de uma roda de conversa que, realizada na Escola Municipal Teotônio Vilela, oferece acompanhamento psicoterapêutico em parceria com a Associação Allos. Além disso, no Museu da Maré, todas as segundas e quartas, às 15h, as crianças do Especiais da Maré têm atividade de teatro inclusivo.
O projeto Especiais da Maré também realiza atendimentos através de dois grupos de WhatsApp com mães e pais atípicos e promove o encontro mensal do Guarda-Roupa Solidário, na Vila Olímpica Seu Amaro, onde as gestoras distribuem materiais de doação para mães atípicas.
De 2018 para cá, o projeto não para de se desenvolver. Alusca conta que, “com a demanda de famílias e as atividades do projeto crescendo, estamos pensando em um novo espaço para a sede”.
“O espaço que temos agora para a sede é a minha antiga casa. Eu dividi ela em duas partes. Uma parte continua como casa e eu coloquei para alugar. E a outra parte ficou como a sede do Especiais da Maré. Além disso, temos também o espaço cedido pelo falecido Seu Amaro, na Vila Olímpica Seu Amaro, onde realizamos o Guarda-Roupa Solidário. Um dia, conversando com as meninas da gestão, nós queríamos melhorar os encontros entre as mães e precisávamos de um espaço para isso. Nós fomos até o Seu Amaro, que era o responsável e gerenciava a Vila Olímpica da Maré, e ele cedeu o espaço para a gente guardar as nossas doações, roupas, brinquedos, fraldas geriátricas e até cadeiras de roda. Ele foi uma pessoa muito importante para a gente, porque foi graças a ele que nós conseguimos ampliar a nossa visibilidade e conquistar mais um espaço de acolhimento para as famílias.” — Alusca Cristina Silva Sousa
As gestoras do projeto—Alusca Cristina Silva Sousa, Lorrayne Gomes dos Santos, Valéria Oliveira Viana, Antônia Maria Souza Pirangi, Francisca Juliana Mesquita e Marcelly Olinto—têm o objetivo de mudar o local da sede, que, hoje, se encontra no Parque União, na Rua Larga, 25. Isso ampliaria a estrutura para receber mais mães atípicas da Maré.

“A maioria do nosso projeto é formada por mães solo, mas nós temos alguns pais e companheiros que são presentes e participativos no grupo. Esse que tá aqui é muito participativo”, diz Alusca, apontando para fora da sede, onde está Adilson da Conceição Santos, enquanto ele, pai atípico, organiza os materiais de doação no carro que irá para a Vila do João.
O grupo se formou quando estes familiares identificaram que, em seu cotidiano, enfrentavam problemas comuns, como falta de informação e de acompanhamento para pais e mães atípicos nos serviços públicos de saúde e de educação, além de dificuldades em relação à acessibilidade e à mobilidade. Soma-se a isso a vontade de combater o preconceito e o capacitismo, sobretudo, dentro da favela.
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Flávia de Lima Andrade, 52, conta que seu maior problema com a filha Juliana, 21, é a mobilidade e a acessibilidade pela favela. A jovem tem Atrofia Muscular Espinhal (AME) e, por conta da dificuldade de se locomover dentro de seu próprio lar, vive somente no segundo andar da casa.
“O diagnóstico da Juliana foi dado com seis anos de idade. Ela ficou internada no CTI muitas vezes. E, com o tempo, ela foi perdendo cada vez mais o movimento do corpo. Devido à demora do laudo, a gente teve dificuldade de conseguir atendimento, fisioterapia e medicamentos.” — Flávia de Lima Andrade
Flávia conta que os remédios de que Juliana precisa para o tratamento são muito caros: “O valor mínimo que já vi desse remédio foi de R$90.000, com três frascos. Ele já foi mais caro ainda. Se eu tivesse acesso a esse medicamento, se tivéssemos acesso prévio à informação da doença dela, talvez ela estivesse curada”.
Desafios e Conquistas na Educação de Crianças Atípicas na Favela
Apesar das dificuldades enfrentadas, a filha de Flávia conseguiu concluir o ensino médio.
“Ela estudou no CIEP Yuri Gagarin, em Bonsucesso, e tinha uma van que [a] levava. Ela estudou no Colégio Estadual Olga Benário Prestes, em Ramos, e tinha um carro que [a] levava. E teve a última escola, que foi a Escola Municipal Dilermando Cruz. Essa época foi muito ruim porque não tinha nenhum transporte e nós precisávamos pegar o BRT [pra levar Juliana pra escola].” — Flávia de Lima Andrade
Agora, que Juliana está formada, Flávia conta que sua filha quer prestar vestibular: “Está estudando e se preparando para isso”.
Luiz Costa, 66, é psicólogo e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e, atualmente, mora em Magé. Atuou como professor do município por 20 anos e, durante 15, deu aulas na Maré. Em 2015, a Escola Municipal Teotônio Vilela foi a última em que lecionou dentro de uma sala de aula. Também foi o ano em que começou a ter mais contato com Alusca e seu filho, Pedro Henrique.
“Eu trabalhei com turmas de projetos que tinham alunos com defasagem idade-série, alunos com problemas pedagógicos de aprendizagem, e trabalhei durante um ano só com turmas de alunos autistas. Em toda escola pública, há pelo menos uma criança com deficiência. Então eu estava acostumado a trabalhar com esse tipo de rotina.” — Luiz Costa
Foi na Escola Municipal Teotônio Vilela que o professor se envolveu com o atendimento pedagógico domiciliar e teve seus primeiros contatos com Alusca, Pedro Henrique e outras tantas famílias atípicas da Maré. A partir da rotina compartilhada com essas famílias no ambiente escolar, Luiz incentivou a criação do Especiais da Maré, reconhecendo a necessidade de auxílio mútuo baseado na coletividade, no pertencimento e na rede de apoio.
“Além de professor, o Luiz morava na Maré, então ele viu eu cuidar do Pedro. Aí, ele sugeriu essa ideia do grupo. Ele dava aula para outras crianças com deficiência e sabia da vida de outras famílias também. O objetivo era acolher e fortalecer o vínculo entre as mães e pais de crianças com deficiência, compartilhar informação e melhorar a vida de famílias atípicas.” — Alusca Cristina Silva Sousa
Para Luiz, os profissionais de educação e de saúde devem ser comprometidos e humanizados, pois podem mudar a vida de muitas crianças atípicas para melhor. Infelizmente, o professor lidou com muitos casos como o de Pedro Henrique, em que, seja por omissão, seja por erro médico, as crianças não têm direito ao desenvolvimento pleno.
“Eu estava presente quando o Pedro falou ‘mamãe’ pela primeira vez. Ele tinha por volta de seis ou sete anos. Os médicos disseram para a Alusca que ela devia ir para casa, mas não esperar muito do filho. E, na verdade, eles deveriam ter informado a dificuldade do parto e que ela devia ter um acompanhamento médico e fazer trabalhos e atividades de terapia, para minimizar os problemas que ele poderia vir a ter. E isso é um erro médico que acontecia muito naquela época. Atualmente, ainda acontece, mas está surgindo esse movimento de institutos que estão preocupados com a saúde dessas crianças.” — Luiz Costa
Silêncio no Parto, Silenciados na Vida
Segundo o Censo Populacional da Maré de 2019, realizado pela Redes da Maré, em 1.678 dos domicílios habitava alguma pessoa com transtorno psíquico, déficit cognitivo ou deficiência física. Assim, é possível afirmar que, de toda a população mareense de 140.000 moradores, pelo menos 1,2% são pessoas com deficiência. E 3,5% dos 47.758 domicílios contados no censo servem de lar para esta população.
Alusca conta que viveu momentos de muito sofrimento e dúvidas durante a internação do filho no Hospital Fernando Magalhães, devido a um erro e ao silêncio dos médicos sobre o parto do Pedro Henrique. Seu filho ficou 22 dias no CTI, de onde ele saiu com paralisia cerebral.
Alusca também afirma que, durante seu pré-natal, realizado na Maré, não houve nenhum sinal de problema na gestação, o que reforça sua tese de erro médico. “Eu só queria saber como estava o meu filho e eles [do hospital] não falavam nada. Não deixaram nem eu segurar ou vê-lo. Na época, eu só queria sair daquele lugar e segurar o Pedro Henrique,” conta Alusca.
Alusca descreve sua emoção enquanto, junto com Adilson, 50, pai atípico de Jhovane e membro do Especiais da Maré, organiza materiais de doação de todos os tipos—fraldas geriátricas, remédios, cadeiras de roda e andadores—para entregar para famílias na Vila do João.

Alusca conta que foi atrás de justiça depois de muito tempo, buscando informação sobre todos os serviços disponíveis para a criança. Frente à negligência do Estado, foi obrigada a recorrer à rede privada de saúde para resguardar o direito ao desenvolvimento pleno de seu filho.
Quando Pedro Henrique tinha dois anos de idade, Alusca começou a ver os gastos para o cuidado com o filho aumentarem rapidamente. Então, ela decidiu entrar com um processo contra o Estado. Já se passaram 13 anos e, apesar do processo ter sido decidido em favor da família, o poder público, segundo Alusca, ainda não ofereceu suporte de nenhum tipo a Pedro Henrique e familiares.
“Eu só soube da deficiência do Pedro três meses após o parto, indo a uma consulta particular. É muito comum as mães descobrirem o diagnóstico meses depois do parto. Nós não temos um bom acompanhamento médico, não temos acesso a serviços de qualidade e não temos informação sobre o parto.” — Alusca Cristina Silva Sousa
Assim como Alusca, Adilson relata o mesmo tormento frente ao Estado no cuidado por seu filho Jhovane.
Com uma estrutura familiar diferente de Alusca, Adilson é amigo da mãe da Jhovane e divide casa com ela. Apesar de não ter genes compartilhados com a criança, ele conversou com a mãe de Jhovane sobre a possibilidade de assumir a responsabilidade de pai, e ela aceitou. Seu filho, Jhovane, é uma criança de 11 anos que está no quinto ano da escola regular, no CIEP Leonel de Moura Brizola, em Ramos. Ele tem paralisia cerebral, microcefalia e é cardiopata.
O pai conta que reconheceu em cartório a paternidade do filho, quando ele tinha somente três anos de idade.
“Jhovane apareceu na minha vida quando ele tinha um só ano de idade. Foi uma relação de amor e cuidado entre nós e eu decidi que queria estar cada vez mais próximo dele. Então, eu conversei com a mãe e nós começamos a morar juntos: eu, Jhovane, a mãe do Jhovane e a outra filha dela… A mãe do Jhovane só descobriu a gestação com sete meses e, durante esse tempo, ela trabalhava de carteira assinada. Nesse período, ela já deveria estar fazendo o pré-natal, no entanto, o chefe dela começou a assediá-la, dizendo que, se ela faltasse para fazer os exames, ela seria demitida. Com isso, ela não fez o pré-natal.” — Adilson da Conceição Santos
O pai diz que Jhovane nasceu no Hospital Miguel Couto e que, durante o parto, os médicos identificaram que a mãe tinha um caso de sífilis congênita. Para a criança não ter problemas de saúde, passaram dez dias de antibiótico para Jhovane. No entanto, os profissionais de saúde não fizeram o teste de microcefalia em Jhovane—o que era necessário devido à doença da mãe.
O diagnóstico de microcefalia de Jhovane foi informado à sua família no Hospital Geral de Bonsucesso quando ele tinha pouco mais de um ano de vida. Só então os pais conseguiram dar entrada ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), direito da pessoa com deficiência em situação de vulnerabilidade socioeconômica, como previsto pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).
Aos quatro anos, Jhovane passou a ter atendimento na Rede Sarah e, desde então, tem seu acompanhamento no hospital. “[Hoje,] Jhovane consegue comer, consegue beber e com a cadeira de rodas ele consegue se locomover. Tudo isso, ele faz com dificuldade, mas ele consegue”, diz Adilson, ressaltando que, apesar de Jhovane fazer muitas coisas sozinho, seu filho ainda depende de muito suporte.
“Ele usa fralda, não consegue ir ao banheiro, não consegue levantar da cama, então ele ainda é muito dependente. Agora que ele está maior, a locomoção dele pela casa piorou. O caminho dele é cama, cadeira de rodas, sofá e vice-versa. Durante e depois da pandemia, Jhovane parou de fazer o atendimento de fisioterapia devido à paralisação e a dificuldade de atendimento dele por conta da saúde, então isso dificultou ainda mais os movimentos dele, e ele teve atrofia no joelho. Infelizmente, as pessoas não têm ou não querem ter conhecimento sobre a realidade de outras pessoas, e tratam uma pessoa com deficiência com preconceito, diminuindo as suas vidas e suas vivências. Normalmente, querem colocar tudo em padrões e caixinhas, e acabam excluindo as pessoas com deficiência. O Especiais da Maré se torna esse espaço de aproximar as famílias atípicas e trazer melhores condições de vida para as crianças e jovens com deficiência.” — Adilson da Conceição Santos
Gabriele da Conceição, 30, mãe do Gael, 5, diagnosticado com epilepsia aos oito meses, concorda com Alusca e Adilson sobre o papel fundamental do Especiais da Maré em sua vida. Foi somente através do grupo que, alertada por outras mães, Gabriele tomou ciência de que seu filho poderia estar também no espectro autista, o que a levou a procurar ajuda. Em agosto de 2024, aos quatro anos, Gael recebeu oficialmente o diagnóstico de autismo nível dois, com comprometimento de linguagem funcional.
“Eu tive o Gael durante a pandemia. Foi muito difícil. Mesmo tendo o meu marido, eu me senti muito sobrecarregada cuidando do Gael. A família toda percebia que ele tinha alguma coisa, mas ninguém falava nada. Ele demorou a falar e também apresentava comportamentos diferentes. Eu demorei muito para ter o laudo de autismo do meu filho. Eu só fui saber do autismo dele quando conheci o Especiais da Maré, quando outras mães compartilharam suas experiências comigo” — Gabriele da Conceição

Mesmo com as mães compartilhando suas vivências, Gabriele só podia fazer algo pelo filho com um laudo médico que atestasse sua neuroatipicidade.
“Os médicos se negavam a dar o laudo médico de autista para o Gael. Isso dificulta muito cuidar da criança. Foi muito difícil ter acesso a tratamentos sem ter a confirmação do laudo médico… Eu não podia recorrer a terapias ou tratamentos… A gente também fica sem acesso a benefícios da assistência social, como o BPC.” — Gabriele da Conceição
Sem acompanhamento médico, sem os benefícios sociais—aos quais as famílias têm direito, mas não têm acesso—e com poucas possibilidades de serviços públicos de qualidade e sem rede de apoio, muitas mães de pessoas com deficiência sobrevivem com bastante dificuldade à vulnerabilidade socioeconômica e à falta de suporte do Estado. Essas mães, de maneira solitária, assumem os custos e o cuidado de seus filhos. Com isso, frequentemente sofrem de depressão, desenvolvem ansiedade e outros tipos de transtornos.
Como mostrou o Censo Populacional da Maré, essa é uma das facetas da negligência do Estado com relação às pessoas com deficiência e moradoras de favela.
“Em um contexto social de limitado acesso a serviços de saúde e baixo grau de instrução, não é difícil supor que há pessoas com deficiência intelectual sem diagnóstico ou acompanhamento médico e, por conseguinte, a deficiência pode não ser reconhecida por si ou por familiares… O problema maior é que as condições precárias de acessibilidade e de limpeza urbana, de acesso a equipamentos e profissionais de saúde, de renda e outros fatores, como, por exemplo, o cotidiano de violência derivado do combate e das disputas relativas ao comércio de drogas, geram dificuldades severas para a garantia do direito de ir e vir das pessoas em situação mais grave de deficiência e/ou transtorno. Nesse quadro, os limites físicos e psíquicos dos indivíduos são agravados pelas restrições de atendimento, acessibilidade e de cuidados especializados.” — Censo Populacional da Maré
Diante de uma realidade em que o poder público oferece pouco ou nenhum suporte e acolhimento, o Especiais da Maré oferece uma rede de apoio, de acolhimento e de acompanhamento para famílias atípicas mareenses. No melhor estilo nós por nós, o Especiais da Maré é formado, majoritariamente, por mães que, apesar de todas as dificuldades, conseguem melhorar a vida de crianças e famílias atípicas da Maré.
Para apoiar financeiramente, doe através do Pix da Associação Especiais da Maré: (CNPJ) 48.448.101/0001-56.
Para saber do que a instituição precisa, basta acessar as redes sociais do Especiais da Maré (Instagram e Facebook) ou contactá-los pelo WhatsApp: 21 97222 8603.
Sobre o autor: Ramon Vellasco é fotojornalista e repórter freelance, cria da Vila da Penha. Atua em temas sobre direitos humanos, cultura, educação, diversidade e grupos sociais em situação de risco. Trabalha a partir de territórios periféricos, favelados e suburbanos.
